Capítulo 9 - Trapaceiros (1/3)
Capítulo 009
Trapaceiros
“Majara,” entoou Zorian, terminando o feitiço com a palavra que queria procurar. Ele sentiu o feitiço estender-se ao seu redor, escaneando as prateleiras próximas por qualquer menção da palavra em questão, e colocou um pouco mais de mana no feitiço para expandir seu raio.
Seus esforços para sobrecarregar o feitiço quase o desfizeram, forçando-o a gastar vários segundos para estabilizar sua estrutura, mas no fim o fluxo de mana estalou em seu lugar apropriado e o feitiço terminou sua tarefa como planejado. Sete fios dourados surgiram, ao que parecia crescendo do seu peito e conectando-o a vários livros nesta seção em particular da biblioteca.
Zorian sorriu. Era um feitiço de adivinhação que Ibery lhe ensinara, um que procurava por livros contendo uma palavra específica ou uma sequência de palavras. Era um feitiço um tanto frágil, falhando se o números de resultados positivos excedesse um certo número — o exato número dependendo da habilidade do conjurador. Era mais usado para pesquisar citações ou termos muito exóticos.
Termos exóticos como, digamos, a língua morta de Majara. Zenir não estava brincando quando disse a Zorian que ele não conseguiria encontrar nenhum livro sobre ela — não havia nenhum livro que focasse na língua Majara, e muito poucos livros sequer a mencionavam. Até agora, só tinha encontrado 13 outros livros que continham a palavra, e a maioria apenas na forma de um dois comentários descartáveis.
Era possível que o conhecimento que procurava existisse em algum lugar na biblioteca, só que em uma forma que fosse invisível para as adivinhações que usava — Ibery apenas o ensinou o básico da magia da biblioteca, como ela a chamou, então suas pesquisas eram grosseiramente dolorosas no grande esquema das coisas — mas se fosse o caso, havia pouco que pudesse fazer.
Ele olhou para os fios crescendo do seu peito e acenou sua mão por eles, assistindo-a atravessá-los sem efeito. Nunca se cansaria disso. Bem, provavelmente alguma hora, mas a novidade ainda não havia passado. Os fios eram uma ilusão, existindo apenas na privacidade da própria mente.
Cada feitiço de adivinhação exigia um meio que poderia fornecer a informação ao conjurador, desde que era impossível para mentes humanas processar a saída bruta de uma adivinhação. Uma ilusão auto-imposta como os fios que ele observava no momento era um meio de adivinhação de grau avançado, ou então Ibery clamou quando tentou contá-la que conseguiu fazer o feitiço funcionar em 30 minutos depois de ver uma demonstração. Teve a nítida impressão de que ela pensou que ele estava mentindo.
Não entendia o que deveria ser tão difícil sobre isso, para ser honesto — os fios era uma pura construção mental que nem exigia muito das habilidades de modelagem… apenas visualização. Parecia simples para ele. Natural até.
Ele balançou a cabeça e seguiu atrás de um dos fios dourados até chegar a um livro ao qual estava preso. Era um livro enorme e intimidador de 400 páginas sobre a história de Miasina, e Zorian não tinha nenhuma intenção de se debruçar sobre ele até chegar à pequena parte que realmente o interessava, então lançou outra adivinhação que Ibery havia lhe ensinado. Esta destacou cada menção da palavra escolhida (neste caso Majara) em verde brilhante, então apenas folheou o livro até pegar um flash de verde.
“Zorian? O que você está fazendo aqui?”
Zorian no mesmo momento fechou o livro e o colocou de volta na prateleira. Embora não estivesse fazendo nada proibido, realmente não queria explicar a Ibery o que era Majara e por que estava procurando na biblioteca por qualquer menção a isso.
A réplica que planejava usar morreu em seus lábios quando ele se virou para dar uma boa olhada em sua visitante. Ibery estava uma bagunça. Seus olhos e nariz estavam vermelhos, como se tivesse chorado há pouco tempo, e havia uma mancha roxa feia cobrindo sua bochecha direita e pescoço. Não parecia um hematoma, era mais como…
Oh infernos, não.
“Ibery…” ele começou hesitante. “Você não estudaria na mesma classe que meu irmão, estudaria?”
Ela recuou e desviou o olhar. Ele soltou um suspiro pesado. Simplesmente ótimo.
“Como você sabia?” ela perguntou depois de um segundo de silêncio.
“Meu querido irmão veio até mim hoje cedo,” disse Zorian. “Disse que empurrou uma garota para uma trepadeira roxa e queria que eu fizesse uma poção anti-assadura. Eu não estava com vontade, então meio que o dispensei.”
Isso era mentira, na verdade. Ele havia descoberto, durante as últimas três reversões, que Fortov era incapaz ou não queria rastreá-lo se não voltasse para seu quarto depois da aula. Essa era na verdade a principal razão pela qual passava o dia inteiro na biblioteca em vez de dentro de seu quarto. Ainda assim, devido à sua situação bastante única, sabia o que teria acontecido se ele estivesse presente.
“Ah,” ela disse baixinho. “Eu…. Eu estou bem.”
“Não,” discordou Zorian. “Não, não está. Se eu soubesse que ele estava falando de você, eu o teria ajudado. Bem… ajudado você1. Ele pode morrer em um incêndio, tanto quanto eu me importo.” Ele parou por um momento, considerando as coisas. “Sabe, não há nenhuma razão para que eu não possa fazer isso agora. Vou ter que passar no meu quarto para pegar os ingredientes e…”
“Você não precisa fazer isso,” Ibery logo interrompeu. “É… não é tão importante.”
Zorian observou sua aparência mais uma vez. Sim, ela definitivamente estava chorando antes de vir aqui. Além disso, sua escolha de palavras foi notável — ela disse que ele não precisava fazer isso, não que não deveria, e que não era tão importante assim, não que não fosse.
“Não é um grande problema,” ele a assegurou. “A principal razão pela qual recusei em primeiro lugar é porque foi Fortov quem pediu, não porque fosse tão difícil de fazer. Apenas me diga onde encontrá-la quando eu terminar.”
“Hum, eu gostaria de ir com você, se não for um problema,” ela disse hesitante. “Gostaria de ver como é feita a cura. Apenas no caso.”
Zorian fez uma pausa. Isso era… um problema potencial. Afinal, a oficina alquímica estaria fechada tão tarde da noite, e ele teria que empregar alguns métodos pouco ortodoxos para obter acesso. Mas que diabos, não era como se ela fosse se lembrar disso na próxima reinicialização.
Assim partiram em direção ao apartamento de Zorian. Claro, ter Ibery olhando por cima do ombro não era suficiente, então quando ele chegou ao seu quarto, encontrou outra pessoa familiar esperando por ele. Sendo mais específico, Zach.
Ele não ficou muito surpreso ao ver Zach esperando por ele, para ser honesto. O menino estava ficando cada vez mais nervoso durante as sessões de prática à medida que o festival de verão se aproximava, sem dúvida enervado pela invasão que o impedia.
Não que ele tenha contado a Zorian sobre a invasão — Zach manteve a boca fechada sobre isso com teimosia, independentemente de Zorian tentar incitá-lo a deixar escapar alguma coisa. Nos últimos dias, seu companheiro viajante do tempo o questionou sobre seus planos para o festival de verão várias vezes, insinuando sem sutileza que ficar dentro de seu quarto seria uma má ideia.
Como Zorian ainda se lembrava de forma vívida de como um dos fogos de artifício destruiu todo o seu prédio quando a invasão começou, estava inclinado a concordar com Zach sobre isso.
No entanto, Zach parecia ter dificuldade em acreditar que Zorian estava de acordo com ele nesse ponto. Sem dúvida, veio para garantir (mais uma vez) que Zorian iria ao baile. Ele se perguntou o que exatamente aconteceu entre Zach e suas encarnações anteriores para produzir esse tipo de impressão. Ele era tão teimoso antes do loop temporal?
Ele caminhou até Zach, que estava sentado no chão ao lado de sua porta, sem nenhuma consciência do que o rodeava enquanto se concentrava em algo em sua palma. Não, agora que ele se aproximou, pode ver que na verdade era algo acima de sua palma. Um lápis, girando lentamente no ar sobre a palma da mão de Zach.
Ao que parecia, Zach também conhecia o exercício de girar a caneta e estava praticando enquanto esperava. Zorian teve um forte desejo de jogar uma bola de gude na testa de Zach e exigir que recomeçasse, mas decidiu contra isso.
Principalmente porque não tinha nenhuma bola de gude consigo no momento.
“Olá Zach,” disse Zorian, assustando Zach de seu devaneio. “Você está esperando por mim?”
“Sim,” confirmou Zach. Ele abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas então notou Ibery atrás de Zorian e fechou a boca. “Err, estou interrompendo alguma coisa?”
“Não, nem um pouco,” Zorian suspirou. “Eu só vim pegar alguns suprimentos alquímicos e então vou fazer algo para a senhorita Ambercomb aqui. O que você queria comigo?”
“Eh, isso pode esperar um pouco,” disse Zach com desdém. “O que você está fazendo? Talvez eu possa ajudar — sou muito bom em alquimia.”
“Existe alguma coisa em que você não é bom?” perguntou Zorian com um bufo.
“Você ficaria surpreso,” murmurou Zach.
Ibery observou a interação deles em silêncio, mas Zach era uma pessoa bastante sociável, então, quando Zorian voltou de seu quarto com uma caixa de suprimentos, os dois estavam conversando com animação. Principalmente sobre a condição atual de Ibery.
“Cara, eu não sabia que seu irmão era tão idiota, Zorian,” Zach comentou. “Não é de admirar que você tenha se tornado tão… uh…”
Ele parou quando Zorian ergueu a sobrancelha para ele, desafiando-o a terminar a frase. A reação de Ibery foi mais vocal.
“Ele não é um idiota!” ela protestou. “Ele não queria que isso acontecesse.”
“Mas ele deveria ter consertado,” Zach insistiu. “Se foi intencional ou não, foi culpa dele. Ele não deveria ter despejado sua responsabilidade em seu irmão mais novo assim.”
“Ninguém forçou Zorian a fazer nada,” disse Ibery. “Ele está fazendo isso por vontade própria. Certo, Zorian?”
“Certo,” concordou Zorian. “Estou fazendo isso porque quero.”
Ele concordou de verdade com Zach, mas optou por não dizer isso. Se ele aprendeu alguma coisa sobre Ibery ao passar um tempo inteiro perto dela, foi que ela tinha uma queda enorme por Fortov. Nada de bom poderia vir de falar mal dele na frente dela. Além disso, para ser honesto consigo mesmo, Zorian tinha que admitir que era incapaz de ser objetivo sobre Fortov. Havia muito sangue ruim entre os dois.
Por sorte, os dois logo concordaram em discordar sobre o assunto e um silêncio confortável desceu sobre o grupo. Bem, era confortável para Zorian — ao que parecia, Zach não concordava.
“Ei, Zorian,” Zach disse. “Por que estamos indo para a academia?”
“Para que eu possa acessar a oficina alquímica, é claro,” disse Zorian. Ele sabia onde Zach queria chegar, é claro, mas ainda esperava escapar sem revelar um de seus truques mais bem guardados.
Sem essa sorte.
“Mas todas as oficinas estão fechadas tão tarde da noite,” comentou Zach.
“Ah!” Ibery exclamou. “Ele tem razão! Fecharam há duas horas!”
“Não será um problema,” Zorian assegurou. “Desde que a limpemos, ninguém saberá que estivemos lá.”
“Mas a porta está trancada,” apontou Zach.
Zorian suspirou. “Não para magia.”
“Você sabe feitiços de desbloqueio?” perguntou Zach em um tom surpreso.
Zorian entendeu sua surpresa — feitiços de desbloqueio eram magia restrita, devido ao seu óbvio potencial de abuso. A menos que você possuísse uma licença especial, saber como lançá-los era um crime. Não é um crime muito grave, mas ainda assim um crime.
Talvez fosse bom, então, que Zorian não conhecesse um único feitiço de desbloqueio.
“Não, eu não conheço,” disse Zorian. “Mas é apenas uma fechadura mecânica simples. Vou apenas manipular os acrobatas com telecinesia. Fácil.”
Eles lhe deram um olhar vazio. Como a maioria das pessoas, eles não tinham ideia de como as fechaduras de fato funcionavam e como era fácil contornar a maioria delas. Zorian, devido à sua infância um tanto colorida, sim. Na verdade, ele podia arrombar uma fechadura comum sem usar magia alguma — era apenas muito mais lento do que seu pequeno truque de mágica e exigia que carregasse um conjunto de gazuas2.
Ele parou em frente à porta que dava para a oficina alquímica e experimentou a maçaneta. Como Zach disse, estava trancada. Dando de ombros, Zorian colocou a palma da mão sobre o buraco da fechadura e fechou os olhos. Podia sentir Zach e Ibery agrupados ao seu redor para ver melhor o que estava fazendo e fez o possível para ignorá-los. Ele precisava de concentração total para isso.
Ele desenvolveu esse truque em particular no segundo ano, depois de se cansar de refinar os exercícios de modelagem padrão que recebiam. Envolvia inundar o mecanismo de bloqueio com sua mana, usando o campo de mana resultante como uma espécie de visão de toque para sentir a fechadura e, em seguida, mover com cuidado os fechos para a posição adequada para que ele pudesse neutralizar a fechadura. Levou meses de prática teimosa, mas agora era bom o suficiente para destrancar a maioria das portas em 30 segundos ou menos.
Mesmo as protegidas. Ele não disse isso para Zach e Ibery, mas a porta que estava tentando abrir estava na verdade protegida. Qualquer coisa com alguma importância na academia estava, incluindo a maioria das portas.
No entanto, Zorian descobriu logo que experimentou a habilidade recém-desenvolvida que as proteções de baixo nível eram muito específicas – elas neutralizavam um punhado de feitiços de desbloqueio comuns e nada mais. O pequeno truque de Zorian não era um feitiço estruturado e, portanto, não ativava essas proteções rudimentares.
A porta clicou e Zorian tentou mover a maçaneta da porta mais uma vez. Desta vez a porta se abriu sem resistência.
“Uau,” disse Zach quando todos entraram na oficina. “Você pode abrir uma fechadura apenas pressionando sua mão contra ela por alguns segundos!”
Zorian deu a ele um olhar azedo. “É muito mais complicado do que isso — essa é apenas a parte visível.”
“Oh, eu não duvido nem por um segundo,” Zach disse.
Ainda assim, enquanto Zach parecia muito impressionado com a conquista de Zorian, Ibery permaneceu quieta com estranheza e continuou dando a ele olhares engraçados. Era por isso que odiava contar às pessoas sobre suas proezas de arrombamento — a maioria presumia no mesmo momento que ele era algum tipo de ladrão.
Bem, isso e não queria que as autoridades da academia descobrissem sua conquista. Elas sem dúvida mudariam seu esquema de proteção e então ele não seria capaz de fazer o que acabou de fazer.
Por sorte, Ibery não era tão condenatória quanto algumas pessoas que Zorian conheceu em sua vida e superou suas suspeitas assim que começou a preparar a pomada. De alguma forma, Zach não sabia como fazer uma, embora fosse uma coisa bastante simples de criar e ele já tivesse demonstrado algum trabalho alquímico muito impressionante em sala de aula.
Ele também não parecia muito interessado em aprender — ao que parecia a pomada anti-assadura era muito mundana para o seu gosto, e só estava interessado em coisas como poções de força e elixires para fechar feridas. Parecia tentar construir uma casa sem se preocupar em estabelecer fundações adequadas, mas não era Zorian quem era um viajante do tempo há mais de uma década. Ainda.
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