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    “Conveniente,” Zorian disse em apreciação. Esse feitiço o teria poupado de tantos problemas ao longo dos anos. “Mas eu pensei que a matéria orgânica não pode ser reestruturada por meio de feitiços de alteração?”

    “No geral não, mas é porque a maior parte dela é muita complexa e mal compreendida, não porque os compostos orgânicos são de alguma forma impossíveis de replicar,” disse Haslush, estudando vários sinais de taberna enquanto caminhavam. 

    Ao que parecia, não estava só procurando a mais próxima. “Tanto o etanol quanto a glicose são moléculas bastante simples e muito bem compreendidas, portanto não há dificuldade em converter uma na outra.”

    De repente, ele parou em frente a uma placa próxima, estudando-a por um momento antes de se virar para encarar Zorian mais uma vez. “Eu acho que este é um lugar legal. O que você acha?”

    As experiências de Zorian com tavernas eram muito limitadas e na maioria desagradáveis, então apenas gesticulou para Haslush entrar antes de segui-lo.

    Não era tão ruim quanto Zorian temia: o interior da taverna estava escuro e o ar um pouco parado, mas as mesas estavam limpas e o barulho era administrável. Haslush escolheu uma mesa fora do caminho no canto e lançou um longo e complicado feitiço sobre ela depois que ambos pediram uma bebida. Provavelmente uma proteção de privacidade de algum tipo.

    Zorian esperava que o homem começasse a interrogá-lo no momento em que o feitiço se encaixasse, mas não foi assim. Se Haslush o interrogava, fazia isso de forma muito sutil para Zorian perceber. Inferno, o homem nem sequer perguntou a ele sobre Daimen, o que era sempre bom. 

    Com o passar do tempo, Zorian começou a relaxar e começou a fazer suas próprias perguntas. Perguntas como: como um detetive tem tempo e inclinação para ensinar um aluno do terceiro ano em magia de adivinhação?

    “Hah,” bufou Haslush. “Uma boa pergunta. Na maioria das vezes algo assim seria a última coisa em minha mente, mas ontem meu comandante jogou um caso bem bobo no meu colo. Parece haver um boato circulando pela cidade sobre aranhas mentalistas1 à espreita nos esgotos, e devo verificar isso. Ele revirou os olhos com um suspiro. “Aranhas mentalistas, de verdade…” ele murmurou.

    Zorian lutou para não deixar transparecer sua surpresa e de alguma forma conseguiu — muito porque Haslush prestava mais atenção à sua bebida do que a ele no momento. Ele começou um boato sem nem perceber? 

    Supôs que não deveria estar surpreso, já que contou a Taiven sobre as aranhas bem na frente de Imaya e sua irmã — entre Taiven e aquelas duas, elas provavelmente tagarelaram sobre isso para pelo menos uma dúzia de pessoas.

    “De qualquer forma, depois do trabalho, fui encontrar minha boa amiga Ilsa para que pudéssemos reclamar sobre nossos problemas um com o outro durante uma ou duas bebidas, quando ela me disse que tinha problemas para encontrar um professor de adivinhação para você. E nesse ponto percebi que tinha uma solução perfeita para o meu problema. Eu poderia penhorar o caso para algum outro pobre idiota, ajudar um amigo em necessidade e resolver uma discussão de longa data entre mim e meu comandante de uma só vez. Veja, alguns anos atrás, os burocratas de Eldemar decidiram lançar uma iniciativa para atrair mais magos interessados ​​em uma carreira na aplicação da lei. Só que, em vez de fazer algo concreto para atrair novos talentos, pediram aos magos que já trabalhavam na polícia para apresentar a profissão aos magos em treinamento por iniciativa própria.”

    “Ah,” disse Zorian. “Então você deveria fazer coisas assim de qualquer maneira?”

    “Sim, mas eu tenho meio que relaxado a esse respeito, então meu comandante me importuna com frequência por ter perdido minha cota. Você pode me culpar? Recebemos um pagamento extra para fazer isso, mas é uma ninharia considerando o incômodo.”

    “Você sabe melhor do que eu,” Zorian deu de ombros. “Como, err, apresentar-me à profissão tira você do caso da aranha?”

    “Não tenho tempo para fazer as duas coisas,” disse Haslush. Ele franziu a testa por um segundo e então balançou a cabeça, como se para clareá-la. “Sim. Essa é a minha história e estou me apegando a ela.”

    A discussão acabou depois disso, e Haslush prometeu encontrá-lo de novo na segunda-feira. Zorian estava perdido em pensamentos enquanto voltava para a casa de Imaya, imaginando se alguma coisa sairia de toda a investigação da aranha. 

    Bem provável que não, considerando o quão sério foi levado por Haslush, mas quem sabe. Ele teria que cutucar o homem para obter detalhes adicionais depois de uma semana ou mais.

    * * *

    Zorian bateu o pé com impaciência enquanto esperava que Imaya abrisse a porta. Ele tinha a chave da porta da frente, mas isso não ajudou — Imaya tinha o hábito irritante de deixar a chave na fechadura, e hoje não foi exceção. Não podia entrar sem a ajuda dela.

    Ela provavelmente gostou desse jeito.

    O som de destrancar trouxe sua atenção de volta para a própria porta, que se abriu para revelar um olhar preocupado de Imaya.

    “Umm… aconteceu alguma coisa?” ele perguntou. Kirielle fez algo estúpido enquanto estava fora?

    “Eu deveria estar perguntando isso,” disse ela. “Onde você estava? Você deveria estar de volta horas atrás.”

    “Uh…” Zorian se debateu. “Qual é o problema? Não é como se eu estivesse vindo no meio da noite ou algo assim…”

    O olhar irritado que ela deu a ele disse que não deveria ter dito isso. Não que entendesse o porquê — não é como se houvesse uma regra dizendo que tinha que voltar correndo para casa depois da aula, afinal. 

    De volta a Cirin, seus pais nunca se importaram com o que ele fazia em seu tempo livre, desde que não negligenciasse seus deveres ou os envergonhasse no processo. Era uma sensação estranha ter alguém preocupado com ele só porque não voltou para casa na hora.

    “Olha, sinto muito, mas tive que me encontrar com meu instrutor de adivinhação depois da aula e a reunião meio que se arrastou,” disse ele. “De verdade, senhorita Kuroshka, você vai perder os nervos se surtar toda vez que eu me atrasar das aulas. Não é a primeira vez que fico retido depois da aula e com certeza não será a última.”

    Ela suspirou e o enxotou para dentro, ao que parecia um tanto apaziguada por seu discurso.

    “No futuro, tente me avisar quando você vai se atrasar,” disse Imaya. “Certamente existe algum tipo de magia que pode transferir mensagens dentro dos limites da cidade, certo?”

    Essa foi uma boa ideia, Zorian teve que admitir. “Vou ver o que posso encontrar,” ele prometeu.

    “Bom,” disse Imaya. “Sua irmã pergunta por você já faz um tempo, sabia?”

    Zorian suspirou. “Ela é um incômodo, não é?”

    “Não, ela é um anjinho,” disse Imaya, afastando suas preocupações. Zorian revirou os olhos de forma discreta com a ideia de Kirielle ser um anjo. Se Kirielle era tão legal, então por que Imaya queria tanto que ele voltasse para casa? 

    “Ela passou a maior parte do dia desenhando, brincando com o cubo mágico que você deu a ela e conversando com Kana. Ou deveria ser falar para Kana? Eu juro, aquela criança é muito quieta. Eu tenho que falar com Kael sobre isso um dia desses. Não é normal uma criança ser tão retraída…”

    Zorian assentiu em silêncio, satisfeito pelo cubo que fez ter sido um sucesso. Não era nada de especial, apenas um simples cubo de pedra com um monte de sigilos2 emissores de luz organizados em um quebra-cabeça infantil. 

    Ele encontrou um design3 em um dos livros recomendados por Nora enquanto ela o ensinava fórmulas de feitiço e decidiu que fazer um seria útil por dois motivos: daria a ele alguma experiência prática usando fórmulas de feitiços e daria a Kirielle algo para passar o tempo.

    “Parece que ela se divertiu hoje,” comentou Zorian. “Para que precisa de mim, então?”

    Imaya deu a ele um olhar estranho. “Você é o irmão mais velho dela. Ela não precisa de um motivo especial para sentir sua falta.”

    “E o verdadeiro motivo?” Zorian pressionou.

    “Kana cochilou e seu brinquedo ficou sem mana e ficou inerte,” Imaya por fim admitiu após um segundo de silêncio.

    “Ah,” Zorian assentiu. Ele notou que o design tinha muito pouco em termos de armazenamento de mana, mas não se sentia confiante o suficiente para redesenhá-lo enquanto criava o cubo. Afinal, havia uma razão pela qual o cubo tinha reservas de mana tão rudimentares — grandes concentrações de mana tendiam a explodir se manuseadas de forma inadequada, e o cubo foi feito para ser uma prática para iniciantes. 

    Iniciantes que poderiam estragar tudo durante as primeiras tentativas. Considerando quantos problemas teve só para recriar o design no cubo de pedra, sentiu que tinha feito a escolha certa quando decidiu não mexer no projeto base. 

    Ele apenas faria mais deles se Kirielle ainda quisesse brincar com um — era uma boa prática, de qualquer maneira. “Ela está no quarto dela, certo?”

    “Não, ela está no seu quarto, lendo seus livros,” Imaya disse de forma casual.

    O olho de Zorian estremeceu, resistindo ao desejo de marchar direto para seu quarto e expulsar Kirielle. Na realidade, teve sorte de ter um quarto para chamar de seu. Imaya ainda não havia encontrado ninguém disposto a alugar o outro cômodo da casa, e Zorian ficou grato por isso, pois significava que poderia ficar com o quarto para si. 

    No entanto, sua capacidade de manter Kirielle fora dele era inexistente. Kirielle não tinha inibições sobre ir e vir quando quisesse, e Imaya estava ainda menos inclinada a impedi-la do que a mãe deles em Cirin. Ela parecia achar o comportamento de Kirielle natural.

    E a pequena diabinha sabia disso! Ela sabia que poderia se safar de quase tudo, já que Imaya gostava mais dela do que dele, e explorou isso ao máximo. É por isso que, quando Zorian entrou de forma ruidosa no quarto, ela o ignorou completamente. 

    Estava deitada na cama dele com um livro aberto à sua frente, os pés descansando com conforto no travesseiro dele. Enquanto ele a observava, ela estendeu a mão para o prato de biscoitos que Imaya havia trazido para ela, com a intenção de espalhar ainda mais migalhas sobre os lençóis da cama.

    “Ei!” ela protestou. “Esses são meus! Pegue seus próprios biscoitos!”

    Zorian a ignorou e estudou o prato cheio de biscoitos que roubou de sua irmãzinha travessa. “Sabe, no começo só queria chamar sua atenção e impedi-la de fazer uma bagunça ainda maior do que já fez, mas eles parecem bem gostosos…”

    “Nãoooo!” Kirielle lamentou quando ele abriu a boca, ameaçando engolir um punhado de biscoitos de uma vez. Ela parecia relutante em deixar a cama dele para recuperá-los, no entanto. Provavelmente sabia que ele não permitiria que ela reclamasse seu lugar de volta com facilidade caso ela o abandonasse, era uma pequena diabinha esperta.

    “Vou dizer uma coisa,” ele disse, fechando a boca e colocando os biscoitos de volta no prato. “Eu te dou seus biscoitos se você se livrar de todas as migalhas que colocou na minha cama.”

    Kirielle no mesmo momento passou as mãos sobre os lençóis algumas vezes, jogando todas as migalhas no chão em frente à cama. Terminada a tarefa, lançou-lhe um sorriso atrevido.

    “Ha ha,” disse Zorian sem humor. “Agora vá pegar uma vassoura e faça direito. Vou comer um biscoito para cada minuto que essa bagunça permanecer no quarto.”

    Ele pontuou suas palavras enfiando um dos biscoitos na boca. Eles eram muito bons, na verdade.

    Kirielle soltou um grito de protesto e pulou da cama bufando. Ela tentou, sem sucesso, recuperar seu prato de biscoitos, mas quando percebeu que não poderia fazê-lo devolver (e quando ele comeu um segundo), correu para pegar uma vassoura e uma pá de lixo. 

    Ao que parecia, também reclamou para Imaya, porque alguns minutos depois ela apareceu com outro prato de biscoitos, para que ele não tivesse que roubar de sua irmãzinha. Qualquer que seja.

    Infelizmente, mesmo depois que Zorian recuperou sua cama das garras de Kirielle, ela ainda voltou para seu quarto. No momento, estava esparramada sobre o peito dele, caindo sobre ele quando ele fechou os olhos por um segundo.

    “Por que você ainda está aqui, Kiri?” Zorian suspirou.

    Kirielle não respondeu a princípio, ocupada demais escalando o corpo de Zorian como se ele fosse um objeto inanimado que não sentisse dor e desconforto. Uma vez que se deitou firmemente na cama, contorcendo espaço livre suficiente para si mesma, ela falou.

    “Estou entediada,” disse ela. “Seu cubo mágico quebrou, a propósito.”

    “Não quebrou,” disse Zorian. “Só ficou sem mana. Posso fazer um novo para você amanhã, se quiser.”

    “OK.”

    Um breve silêncio desceu entre eles e Zorian fechou os olhos para tirar uma soneca.

    “Zorian?” Kirielle de repente perguntou.

    “Sim?” Zorian indagou.4

    “O que é um morlock?”

    Zorian abriu os olhos e olhou para o lado, fixando Kirielle com uma expressão curiosa.

    “Você não sabe o que é um morlock?” ele perguntou incrédulo.

    “Só sei que são essas pessoas de cabelos brancos e olhos azuis,” disse Kirielle. “E que as pessoas não gostam muito delas. E esse Kael é um. Mas mamãe nunca quis me dizer qual é o problema com elas.”

    “Ela não disse, hein?” murmurou Zorian.

    “Não,” confirmou Kirielle. “Ela disse que uma dama como eu não deveria falar sobre esse tipo de coisa.”

    No interesse de evitar uma discussão, Zorian se absteve de fazer um comentário sarcástico sobre se Kirielle se qualificava ou não como uma dama. Nem mesmo um bufo de escárnio. Alguém deveria dar-lhe uma medalha por autocontrole.

    “Basicamente,” Zorian disse, “eles são uma raça de humanos subterrâneos. Embora a maioria deles não viva mais no subsolo. O desaparecimento dos deuses atingiu muito sua civilização, e os outros habitantes da Masmorra os expulsaram em grande parte para a superfície. Os colonos ikosianos meio que ajudaram no processo, chutando-os enquanto estavam caídos e queimando alguns de seus assentamentos mais proeminentes.”

    “Ah,” disse Kirielle. “Mas isso não explica por que as pessoas não gostam deles. Parece que eles deveriam estar com raiva de nós mais do que nós deveríamos estar com eles. E Kael não parece que nos odeia.”

    “Kael provavelmente não tem conhecimento de sua cultura ancestral. Eu entendo que muitos morlocks são como ele. E a razão pela qual as pessoas não gostam deles é que os velhos morlocks tinham alguns costumes bastante bárbaros. Eles gostavam de sacrificar pessoas aos seus deuses e eram canibais,” disse Zorian.

    “Canibais!?” Kirielle gritou. “Eles comiam pessoas!? Por que!?”

    “Difícil dizer,” Zorian deu de ombros. “Os colonos ikosianos estavam mais interessados ​​em condená-los por suas práticas do que em entender seus motivos.”

    “Bem, sim, eles comiam pessoas,” disse Kirielle. “Isso é mau e nojento. Não me diga que eles ainda estão fazendo isso?”

    “Não seja ridícula,” Zorian zombou. “As autoridades nunca os deixariam escapar impunes de algo assim.”

    “Ah,” disse Kirielle. “Isso é bom. É por isso que as pessoas não gostam deles? Eles estão com medo que os morlocks vão comê-los?”

    “Isso contribui,” Zorian suspirou. “Perdi a conta do número de rumores que ouvi sobre morlocks sequestrando crianças na rua para comê-las. Mas há mais do que isso. Os morlocks tinham sua própria marca de magia, que hoje em dia é proibida em quase todos os lugares, mas muitos morlocks ainda a praticam. A guilda chama isso de magia de sangue.”

    “Parece sinistro,” comentou Kirielle.

    “É, não é?” disse Zorian. “Não há informações oficiais sobre o que realmente é a magia do sangue, mas a maioria das pessoas pensa que tem algo a ver com sacrifício. A história é que os morlocks poderiam usar um ritual de matar uma pessoa ou animal para fortalecer seus feitiços. Morlocks modernos não podem matar um monte de gente por capricho, mas há rumores que eles ainda se envolvem em sacrifícios de animais, tanto por razões mágicas quanto religiosas.”

    Kirielle se aconchegou mais perto dele, estremecendo.

    “Estou feliz que Kael e Kana não são assim,” disse ela.

    “Eu também, Kiri,” disse Zorian, dando um tapinha na cabeça dela. “Eu também.”

    1. mentalista = mago mental
    2. símbolos mágicos
    3. assim mesmo
    4. sinônimo de perguntou

    Nota