Capítulo 18 – O Pacto está Selado (2/2)
por 444.EXE“Que surpreendentemente prático da guilda, então,” disse Kael. “Acho que até eles recebem um ataque de bom senso de tempos em tempos.”
Zorian não disse nada. Ele não precisava de empatia para deduzir que seu companheiro morlock tinha um pouco de rancor contra a Guilda por algum motivo. Por si mesmo, Zorian achou que a guilda dos magos fazia um bom trabalho no geral, mas não ao ponto de defendê-los na frente dos outros.
O resto da caminhada passou em relativo silêncio.
* * *
À medida que o início do festival de verão se aproximava, Zorian ficou cada vez mais certo de que Haslush não faria muito pela invasão. Ele não tinha certeza se o homem decidiu que as suspeitas de Zorian eram apenas um boato ou se ele recebeu ordem para desistir do problema, mas ele não parecia mais muito interessado em todo o assunto. Para Zorian, isso era um sinal de que deveria levar Kirielle e sair da cidade antes do início da invasão — ele não tinha interesse em ser assassinado pelos invasores de novo, e menos ainda em ter Kirielle morrendo ao lado dele.
Ele teria que ver se poderia convencer Kael e Imaya a sair com eles.
Mas, embora a data estivesse se aproximando logo, esses problemas ainda não eram uma preocupação premente. No momento, ele só queria ter algo para comer e se deitar um pouco. Kirithishli deu-lhe algumas tarefas muito entorpecentes para realizar hoje, e ele não estava com disposição para tramar. Por coincidência, no momento em que entrou na casa, foi agredido pelo cheiro de comida saindo da cozinha. A insistência de Imaya em mantê-la informada sobre suas idas e vindas era um tanto irritante, mas Zorian teve que admitir que era conveniente como ela cronometrou suas refeições para corresponder à agenda dele e de Kael.
Ele entrou na cozinha e foi de imediato abordado por Kirielle.
“Irmão, machuquei minha mão!” ela lamentou, acenando com a mão na frente do rosto dele. “Rápido, você tem que curá-la!”
Zorian pegou seu pulso para impedi-la de mover tanto a mão e inspecionou a lesão grave. Era um corte raso — um arranhão — que provavelmente curaria sozinho até o final do dia. Do canto dos olhos, ele podia ver Imaya tentando não rir.
Zorian suprimiu o desejo de suspirar. Ele sabia que sua família zombaria dele se soubessem que era um empata, mas não esperava mesmo que Kirielle descesse a esse nível. Ela sabia que ele não era um curandeiro, apesar da associação entre empatia e artes de cura. Embora considerando suas excelentes habilidades de modelagem de mana, poderia ser um bom curandeiro com treinamento suficiente… algo a considerar, pelo menos.
Fazendo uma expressão séria, ele lentamente virou a mão ferida de Kirielle várias vezes, fingindo estudá-la em detalhes. Por fim, depois de um zumbido atencioso, olhou Kirielle direto nos olhos.
“Receio que não haja nada a ser feito, senhorita. Teremos que cortá-lo,” concluiu ele com seriedade. Ele então virou para Kana, que estava sentada à mesa, mas observando com atenção toda a troca, e deu a ela um olhar profundo e significativo. “Pegue a serra.”
Kana acenou com a cabeça para ele e fez um movimento para deixar a mesa, apenas para ser parada por uma Imaya rindo que lhe garantiu que ele estava apenas brincando. Zorian tinha certeza de que a garotinha entendia isso muito bem e só seguiu a brincadeira. Eles tinham uma serra em casa?
De qualquer forma, Kirielle arrancou o pulso do seu alcance na declaração dele e fez beicinho para ele.
“Idiota,” declarou ela, mostrando a língua para ele.
A refeição foi tranquila, exceto por explosões ocasionais de Kirielle. Mas essa era Kirielle para você — ela era barulhenta por natureza, embora Zorian tenha o prazer de dizer que ela tinha períodos calmos de tempos em tempos. Principalmente quando estava lendo ou desenhando. Ainda o surpreendeu um pouco toda vez que a via fazer isso, já que parecia bastante fora do caráter dela. Duplamente porque sabia por experiência pessoal que mãe e pai não pensavam muito em hobbies como esse e tentavam desencorajá-los o máximo possível.
Após a refeição, Zorian recuou de volta para seu quarto, Kirielle seguindo atrás dele. Zorian não estava com vontade de expulsá-la e a permitiu, mas ela parecia estar de bom humor hoje e o deixou em grande parte em paz. No momento, ele estava sentado de pernas cruzadas enquanto praticava suas habilidades de modelagem, ao mesmo tempo que Kirielle estava deitada de bruços e desenhando algo no chão, uma pequena pilha de papéis espalhados ao seu redor. Alguma hora, porém, sua caneta parou de se mover e ela passou os próximos minutos mastigando a ponta com nervosismo. Zorian já era versado o suficiente em seus tiques para saber que sua paz e sossego terminariam logo depois.
“Zorian?” ela perguntou de repente.
“Sim?” ele suspirou.
“Por que você estuda tanto?” ela perguntou, dando-lhe um olhar curioso. “Embora nada importe de verdade nesse loop temporal em que está preso, você continua trabalhando o tempo todo. Você não quer se divertir de vez em quando?”
“Você está errada,” disse Zorian. “Primeiro, tudo importa. Você é o que faz, e se eu começasse a fazer coisas estúpidas só porque parece não haver consequências para elas, essas ações acabariam por me definir. Em segundo lugar… acho que estudar é divertido. Bem, talvez nem tudo, mas você entendeu.” Houve um breve silêncio, mas Kirielle parecia relutante em continuar a conversa, mesmo que ela claramente quisesse dizer alguma coisa. Zorian decidiu ajudá-la. “Por que você pergunta? Existe algo que você prefere fazer?”
Os olhos de Kirielle dispararam entre ele e a pilha de desenhos no chão várias vezes, antes que ela enfim tomasse uma decisão. Ela pegou os papéis em uma pilha limpa e sem demora pulou no colo de Zorian.
“Você pode olhar para os meus desenhos e me dizer o que acha?” ela perguntou animada.
Oh. Bem, isso não era tão ruim. Ele nunca prestou muita atenção aos desenhos dela, ainda mais porque ela tendia a escondê-los sempre que tentava dar uma olhada melhor, mas pelo que vislumbrou, eles eram muito bons. Inferno, ele estava de bom humor para nem zombar tanto… ela…
Droga.
Zorian assistiu e ouviu em silêncio enquanto Kirielle exibia com entusiasmo os frutos de seu trabalho, explicando o que os desenhos representavam. Não que precisasse, porque os desenhos eram muito realistas. Ela não era apenas boa — ela era incrível. Zorian poderia jurar que estava olhando desenhos de um artista profissional, em vez de alguns desenhos infantis de sua irmãzinha. Um dos desenhos foi uma cena muito detalhada da paisagem urbana de Cyoria, tão cheia de pequenos detalhes que Zorian ficou chocado que Kirielle teve mesmo paciência para colocá-los no papel, sem contar desenhá-los corretamente.
“Kirielle, essas são incríveis mesmo,” disse ele com sinceridade. Ele pretendia dar alguns golpes na habilidade dela a princípio, mas não conseguia ver nada digno de zombaria. “Por que diabos a mãe não se gaba para todos por ter uma filha artista?”
Kirielle mudou-se com desconforto em seu colo. “A mãe não gosta que eu desenhe. Ela não compra nenhum material e grita comigo sempre que me pega fazendo isso.”
Zorian deu a ela um olhar confuso. O que? Por que diabos ela faria isso? A mãe era tacanha e obcecada por status, mas não era maliciosa de propósito ou algo assim. Ele pegou a pilha de desenhos de Kirielle e folheou-a de novo, parando em um retrato muito bonito de Byrn, o garoto com quem ele e Kirielle interagiram no trem para Cyoria. Kirielle nunca tinha visto o garoto depois daquele dia, mas conseguiu criar uma versão muito fiel dele, presumivelmente trabalhando apenas com a memória.
“Espere,” ele disse de repente. “É por isso que você continua roubando meus cadernos e materiais de escrita?”
“Ah! Eu pensei que você nem percebeu,” admitiu. “Como você nunca reclamou com a mãe. Obrigada por isso, a propósito.”
Bem, ele nunca disse nada porque achava que a mãe não faria nada a respeito, mesmo que soubesse. Mas ei, tudo estava bem quando terminou bem, e ele certamente não iria contar a verdade a Kirielle e destruir qualquer gratidão que acabasse de ganhar…
“E os livros, então? Suponho que ela também desaprova eles?” Zorian adivinhou.
“Sim,” disse Kirielle, segurando seus desenhos perto do peito. “Ela não vai comprar nenhum para mim. Ela diz que uma dama não deve perder tempo com essas coisas.”
Isso era algo que ele esperava, verdade seja dita. A mãe não gostava quando ele passava o tempo lendo, então imaginou que ela não ficaria muito feliz em ver sua querida filha pegando o mesmo hobby. Ainda não explicou por que ela não queria que Kirielle desenhasse.
“Bem, isso é a mãe para você,” disse Zorian. Ela parecia estar ficando um pouco chateada, e Zorian podia entender totalmente. Parece que a situação dela tinha mais semelhanças com a dele do que jamais sonhou. “Não se preocupe com isso. Foi o mesmo comigo no começo. Ela vai desistir quando ver que não pode intimidar você até a submissão.”
“Não é o mesmo!” Kirielle de repente bateu nele.
O que agora?
“Kiri…”
“Você não entende! Não é o mesmo, porque você está fora de casa a maior parte do ano e ela não pode fazer nada com você enquanto estiver fora! Você, Daimen e Fortov estão aqui, aprendendo magia e fazendo o que querem, e eu vou nunca fazer isso!” Ela enterrou a cabeça no peito de Zorian, seus minúsculos dedos cavando em seus braços de forma dolorosa. “Não é o mesmo porque eu sou uma menina…”
Zorian abraçou Kirielle, balançando-a com gentileza para acalmá-la enquanto digeria o que ela disse. Por fim, uma realização o atingiu. Os tradicionalistas de Cirin costumavam ter uma visão de que educar crianças do sexo feminino era um desperdício de tempo e dinheiro. Inferno, alguns deles até foram contra a lei e recusaram-se a enviar suas filhas para o ensino fundamental para aprender a ler e escrever! Não ajudou que as academias de magia tendessem a ser bastante caras, até as de qualidade inferior…
“Eles não vão mandá-la para uma academia de magia…” Zorian concluiu em voz alta.
Kirielle balançou a cabeça, o rosto ainda enterrado no peito.
“Eles dizem que eu não preciso disso,” disse ela, fungando com tristeza. “Eles já têm um casamento arranjado para mim quando eu completar 15 anos.”
“Bem, isso não é legal da parte deles,” disse Zorian com frieza. “Sabe o quê, Kiri? Você está certa. Não é o mesmo. Eu tive que desafiar a mãe e o pai sozinho… você, por outro lado, tem eu.” 1
Kirielle tirou o rosto do peito e deu-lhe um olhar perspicaz.
“Você nunca quis me ajudar antes,” ela acusou. “Toda vez que eu pedia para você me ensinar magia, você me enxotava.”
“Eu não sabia com o que você estava lidando,” Zorian deu de ombros. “Eu pensei que você estava apenas impaciente e não queria perder meu tempo com algo que iria aprender no devido tempo. Mas tenha certeza de que, se a mãe e o pai não mudarem de idéia ao longo dos anos, você sempre serei seu professor.”
Ela olhou para ele por alguns segundos antes de pegar um de seus braços pelo pulso e agarrá-lo em uma posição de juramento.
“Promessa?” ela perguntou.
Zorian apertou a mão com mais força, provocando um grito dela.
“Promessa,” ele confirmou.
* * *
Dois dias antes do festival de verão, Kael enfim apresentou seu plano a Zorian. Era muito menos concreto que o da matriarca, e em resumo envolvia conversar com várias pessoas que Kael pensava que poderiam saber algo sobre magia da alma ou viagens no tempo. Porém, nenhum deles estava em Cyoria e exigiria que Zorian abandonasse a escola para viajar pelo país (e, em alguns casos, até através das fronteiras ). O morlock comentou que conhecia algumas pessoas que moravam na Grande Floresta do Norte, mas admitiu que pode ser uma má idéia visitá-los até que ele possa se defender de forma adequada. Zorian memorizou os nomes e locais, mas levaria um tempo até que pudesse visitar qualquer um deles.
O fim do reinício foi totalmente sem intercorrências — Ele, Kirielle, Kael e Kana embarcaram no trem saindo de Cyoria na noite do festival e passaram as últimas horas restantes jogando jogos de cartas para passar o tempo. Imaya se recusou a acompanhá-los, o que era bastante surpreendente, dada a solicitação repentina e a natureza superficial de seus avisos.
E então, como sempre, Zorian acordou em Cirin, com Kirielle desejando-lhe um bom dia. Desta vez, ele não a levou com ele, o que acabou sendo uma boa ideia, pois Zach veio mesmo à aula naquele reinício em particular. O outro viajante do tempo tentou iniciar uma conversa com ele, mas Zorian estava determinado a evitá-lo e lhe deu um ombro frio. Depois de alguns dias, Zach pareceu admitir a derrota e desistiu, mas Zorian pôde ver que o outro garoto o observava muito mais de perto do que a maioria das pessoas.
A liberdade de Zorian de agir como ele achou melhor era por consequência um pouco limitada, e ele se divertia principalmente com o aprimoramento de suas habilidades de modelagem, magia de combate, adivinhações e fórmula de feitiços. Taiven não foi informada dos rumores por trás de aranhas telepáticas gigantes nos esgotos, pois ainda não queria conhecer a matriarca.
Um reinício inteiro passou dessa maneira. E o próximo. E o seguinte. No total, foram necessários seis reinícios antes que Zach parasse de se aproximar e prestasse qualquer atenção nele. Apesar disso, Zorian ficou satisfeito com o que realizou.
Ele passou três dos seis reinícios aprendendo com a sempre entusiasmada Nora Boole (os outras três foram gastos aprendendo com Haslush) e qualificou-se o suficiente na fórmula de feitiço para criar uma versão mais leve e discreta de seu interruptor explosivo de suicídio. Ainda era um cubo, embora fosse muito menor e feito de uma combinação de madeira e pedra — ele fez dois deles em cada reinício e os anexou à sua chave para que parecessem um ornamento.
Ele também encontrou um mago especializado em magia mental e o fez inspecionar sua mente quanto a compulsões implantadas e outras surpresas desagradáveis. Infelizmente, o homem ficou bastante confuso com o pacote de memória e não pôde confirmar que continha apenas memórias. Ele confirmou, no entanto, que estava inativo no momento e também que nenhum outro efeito mágico agia sobre sua mente. Se havia algum tipo de armadilha no pacote de memória, ela ainda não tinha ativado.
No sétimo reinício, Zach ainda foi à aula, mas ele parecia enfim ter desistido de Zorian. Era hora de começar a trabalhar.
- Falei pessoal, o cara tá deixando de ser Beta⤶