Capítulo 26 – Morte da Alma (3/6)
por 444.EXE[Decidimos transformar esse reinício em uma espécie de teste,] explicou a matriarca. [Como eu disse antes, o objetivo da minha teia é eventualmente se revelar para a cidade como um todo e se juntar à população como cidadãos legítimos. Embora a divulgação completa seja muito perturbadora para o que estamos tentando alcançar neste reinício, decidimos nos revelar a várias pessoas proeminentes em Cyoria durante este reinício — tanto para coordenar melhor a resposta à invasão quanto para sondar a reação deles.]
“E?” perguntou Zorian, curioso de verdade.
[É uma reação mista, e o fato de estarmos trazendo notícias de uma invasão iminente não ajuda a acalmar as pessoas. Ouvimos várias reuniões secretas que discutiram como lidar conosco de maneira hostil, por sorte com a conclusão de que deveriam esperar até depois do festival de verão antes de fazer qualquer coisa, mas também algumas reuniões que discutiram como lucrar com nossa presença.]
“Com o qual você não tem problemas,” Zorian supôs.
[Ninguém quer matar a galinha dos ovos de ouro,] concordou a matriarca. [Sem ofensa ao seu tipo, mas confio em sua ganância mais do que em sua compaixão. A propósito, conversei com Zach sobre aquele assunto sobre o qual você queria falar. Você estava certo. Ele não se lembra de nenhum reinício ter sido interrompido por qualquer motivo — sua morte não parece reiniciar o loop temporal.]
“Eu sabia disso,” disse Zorian. “Até mesmo Zach teria percebido que algo estava errado se continuasse reiniciando toda vez que eu morresse antes dele. Esta é mais uma prova de que Zach é a âncora do loop.”
A certa altura, Zorian brincou com a ideia de que havia uma mente real por trás do loop temporal — um deus que decidiu quebrar o Silêncio, talvez, ou algum tipo de espírito muito poderoso. No entanto, havia várias pequenas maneiras pelas quais a situação combinava melhor com a ideia de o loop temporal ser algum tipo de feitiço e nenhuma era tão clara quanto a maneira como o feitiço tratava a detecção do viajante do tempo.
Claramente, em algum nível, o feitiço sabia que era Zach quem era a âncora do loop temporal e que todos os outros eram acompanhantes. No entanto, ao mesmo tempo, poderia ser alterado com facilidade (através de um pouco de fusão da alma) ao incluir várias pessoas na consciência do loop. Isso soou mais como uma função de feitiço idiota tentando reconciliar diretivas incompatíveis umas com as outras do que uma mente obstinada e inteligente fazendo um julgamento.
O problema era que um feitiço implicava um lançador humano. E um lançador humano não deveria ser capaz de reverter o tempo uma vez, muito menos repetidas vezes.
[Se conseguirmos provocar o terceiro viajante do tempo a se revelar, a maioria das perguntas sobre o loop temporal deve ser respondida com bastante facilidade,] observou a matriarca. [Suspeito que ele saiba o que é o loop temporal e como ele funciona.]
“Sim,” concordou Zorian. “Esperamos que sim.”
* * *
Os dias se passaram. Quando Zorian não estava cumprindo uma de suas inúmeras obrigações (nunca tentaria fazer tantas coisas ao mesmo tempo no futuro!) — ele alternava entre criar as várias armadilhas e itens necessários para a emboscada do terceiro viajante do tempo e ajudar as araneas a erradicarem os ratos cefálicos da cidade.
Escolher o local da emboscada e prepará-lo caiu principalmente sobre os ombros de Zorian no final. Araneas sabiam como fazer armadilhas e emboscadas, é claro, mas a maioria delas se baseava em força letal ou ataques de magia mental. Considerando que o terceiro viajante do tempo quase com certeza sabia como combater a magia mental aranea e que eles o queriam vivo, pouco disso era útil para seus propósitos. Assim, coube a Zorian projetar algo que pudesse conter e desabilitar seu alvo, ou pelo menos distraí-lo até que a aranea pudesse despojá-lo de suas defesas mentais e fazer o que queriam.
Kael contribuiu ajudando Zorian a fazer uma mistura de poderosos sedativos alquímicos para fins incapacitantes e a matriarca serviu como sua assistente, já que ela era a aranea mais capaz quando se tratava de magia estruturada e sabia muito sobre o fluxo de mana local do assentamento. Ela também seria a única a liderar a execução da emboscada real com suas companheiras araneas, então ela tinha que estar muito familiarizada com o funcionamento da armadilha.
No final, Zorian decidiu por uma armadilha de três partes, colocada no meio do assentamento aranea. A primeira parte era um efeito bastante exótico no chão que transformou a pedra temporariamente em líquido. O efeito seria ativado apenas por um momento, desligando de imediato e transformando a pedra de volta em um estado sólido normal assim que o alvo afundasse de joelhos no chão de pedra. Pelo que Zorian sabia, não havia maneira fácil de um mago sair da rocha depois que o efeito terminava.
O feitiço não poderia ser dissipado — era como as cinzas de um livro destruído por uma bola de fogo — e tentar explodir a pedra poderia explodir as pernas do lançador junto com ela. A única maneira conveniente de sair era se transformar ou se teletransportar, e é por isso que a segunda parte da armadilha era uma trava dimensional que encerraria a maioria das travessuras dimensionais. Por fim, a última parte envolvia encharcar a área de combate com fumaça infundida com os poderosos sedativos que Zorian fez com a ajuda de Kael.
Era um pouco simples, mas Zorian tinha lido que os melhores planos são sempre simples. Por via das dúvidas, porém, ele construiu armadilhas reservas em várias outras cavernas araneas. Estas eram muito menos sofisticadas, porém, e resumiam-se a explosões. Um monte de explosões.
Além disso, Zorian fez uma grande quantidade de equipamentos de combate para as araneas que participariam da emboscada: discos de proteção que poderiam prender ao corpo para evitar alguns dos feitiços de ataque mais fracos, cubos de pedra e frascos alquímicos que produziam uma variedade de efeitos quando disparados, e alguns equipamentos para ele e um punhado de magos mercenários que a matriarca contratou em segredo como força adicional durante a emboscada. Claro, em um cenário ideal, Zorian não teria que lutar com ninguém e o equipamento que ele fez para si mesmo seria uma perda de tempo inútil… mas sério, quais eram as chances de um cenário ideal? As coisas estavam indo um pouco bem demais para ele.
Quanto à caça aos ratos cefálicos, na verdade foi ideia dele, e ele ficou satisfeito por ter pensado em algo que as araneas, com todas as suas conexões e poder psíquico, não tinham. A ideia básica era capturar um dos ratos e então usar esse espécime como uma conexão para adivinhar a localização do resto dos ratos. Não é uma ideia nova para as araneas, mas elas pensaram fortemente em termos de magia mental e tentaram seguir os elos telepáticos que conectavam o rato capturado ao resto da mente colmeia — algo que falhou bem rápido, já que o coletivo principal logo cortava a conexão com quaisquer ratos capturados.
Zorian, por outro lado, usava os bons e velhos feitiços de localização — adivinhações destinadas a encontrar e rastrear todos os tipos de coisas, desde que o lançador tivesse algo relacionado com o que você tenta encontrar. Um rato cefálico, mesmo que desconectado do coletivo, era suficiente para que essas adivinhações funcionassem. Zorian acabou seguindo as conexões até localizar os corpos principais dos enxames de ratos cefálicos (havia 4 deles, como se viu) e então, com um punhado de araneas atuando como suporte e supressor de poderes psíquicos, os conduziu para formações que podem ser eliminadas com um único feitiço de bola de fogo. No final do mês, os ratos cefálicos haviam sido efetivamente exterminados.
Quando Zorian terminou de incendiar o quarto enxame de ratos, uma das araneas designadas como guarda-costas durante a operação disse a ele que ela enfim entendeu porque os humanos eram tão assustadores e perigosos.
Zorian não era o único que estava ocupado. Kirielle persistiu em tentar aprender magia, com mais teimosia e diligência do que Zorian jamais a viu demonstrar. Ela estava indo muito bem para uma iniciante completa, mas o triste fato era que ela estava mais perto dele em talento do que, digamos, Daimen ou alguma outra criança prodígio. Novidades tornou-se uma espécie de ligação não oficial entre a aranea e a Casa Aope e, como consequência, foi submetida a um curso intensivo de diplomacia e conduta adequada pela matriarca — algo que ela reclamava com frequência com Zorian sempre que se encontravam.
Tinami, por sua vez, estava muito mais interessada em suas aulas com Zorian quando descobriu alguns detalhes sobre o que significa ser psíquico e parecia estar trabalhando em algum tipo de projeto pessoal que consumia a maior parte de seu tempo livre. Zorian suspeitou, pelos fragmentos de pensamentos que brevemente borbulhavam em sua consciência durante as aulas, que ela estava tentando, de alguma forma, tornar-se psíquica de forma artificial. O que lhe pareceu muito perigoso, já que significava mexer com sua própria mente e tudo mais, mas essa era a Casa Aope para você.
Kael também estava perseguindo algum tipo de projeto pessoal que ele se recusou a elaborar para Zorian — embora parecesse ter algo a ver com fórmula de feitiço, porque continuou emprestando os livros de Zorian sobre o assunto. Zorian o deixou com seu trabalho — Kael foi incrivelmente útil ao longo do mês, assumindo a responsabilidade de ajudar Zorian o máximo que pudesse por algum motivo. Zorian não achava que era apenas generosidade e não havia esquecido o quão fascinado com o loop temporal o outro garoto estava da última vez, então ele se perguntou quando o outro garoto iria abordá-lo sobre seu verdadeiro objetivo.
Ao que parecia, a resposta era pouco antes do festival de verão.
“Olá, Zorian,” Kael disse. “Você está fazendo alguma coisa?”
“Na verdade, não. Só estou esperando Akoja aparecer para que eu possa ir ao baile,” disse Zorian. “Não adianta começar nada porque ela vai chegar muito cedo. O que é?”
Ah, Akoja. Ele ainda não tinha certeza de porque a havia convidado para ser sua acompanhante naquela noite. Provavelmente porque ela deu todas as indicações que queria e ele não queria deixá-la triste sem motivo. Não que ela tivesse mesmo dito isso, porém — inferno, ela até mesmo se acovardou no encontro que havia marcado com ele e fez parecer que queria alguns conselhos escolares em vez de… bem, seja lá o que ela de fato queria falar. Esperançosamente, ela seria um pouco menos insistente desta vez e a noite não terminaria em uma catástrofe tão grande quanto na última vez.
“Eu tenho… um presente e um pedido,” disse Kael. Zorian traduziu em sua mente como um suborno e uma demanda. “Primeiro, estive pensando em suas histórias de reinícios anteriores e não pude deixar de notar a presença de um poderoso lich ao lado dos invasores. Ele é… muito difícil de lidar, ainda mais com magias clássicas.
“Mas não com a magia da alma?” supôs Zorian.
“Bem, mais ou menos. Não é fácil, mesmo com a magia da alma, mas existem alguns truques que você pode usar em um lich se souber mexer com as almas. O que você precisa lembrar é que a alma de um lich é automaticamente puxada de volta para seu filactério quando sua forma física é destruída. Isso ocorre porque a destruição de seu corpo corta a ligação entre sua alma e seu corpo… o que é óbvio, já que não há mais corpo. Ainda assim, se você pudesse cortar a ligação entre a alma e o corpo — algo que é muito mais fácil de fazer com criaturas cuja alma está conectada ao corpo de forma artificial através da magia — então suas almas seriam arrancadas de imediato de volta ao seu filactério, mesmo se seu corpo está tecnicamente intacto.
“Ele será efetivamente banido,” Zorian concluiu. “Isso não irá matá-lo, mas…”
“O processo de possuir um novo corpo não é tão rápido para um lich — eles precisam de um dia inteiro no mínimo, e isso assumindo que já tenham um novo corpo pronto para funcionar. Banir o lich de volta ao seu filactério é tão bom quanto matá-lo, pelo menos para suas necessidades.”
“Você está me dizendo que pode me ensinar um feitiço para fazer isso?” perguntou Zorian de forma animada.
“Bem, não,” disse Kael, logo estourando a bolha de Zorian. “E seria de valor duvidoso mesmo se eu pudesse. O feitiço exige que você toque o alvo.”
Zorian estremeceu. “Sim, não me vejo chegando ao alcance do lich.”
“Então eu trouxe isso para você, em vez disso,” Kael disse, entregando a ele um pequeno disco de prata, reminiscente de uma moeda de prata meio grande. Um exame mais minucioso, no entanto, rapidamente deixou claro que era algum tipo de ferramenta de feitiço, sendo coberta por uma fórmula de feitiço em vez de imagens típicas comuns à moeda.
“Eu não preciso tocar no lich!” Zorian percebeu depois de pensar na moeda por alguns momentos. “Eu só tenho que ter certeza de que a moeda o toque!”
“Sim,” Kael disse. “Percebi que seu estilo de luta parece ser baseado em itens, então coloquei o feitiço naquele disco… deve funcionar, mas não garanto, então use por sua conta e risco. Tentei torná-lo o mais pequeno e não ameaçador possível, mas…”
“Mas não há como ter certeza de que o lich vai deixar isso tocá-lo,” Zorian terminou. “Tentar impedir que um item estranho lançado por seu inimigo toque em você é senso comum. Não suponho que atingir os escudos do alvo seja suficiente, não é?”
“Receio que não.”
“Sim, era disso que eu tinha medo. Obrigado de qualquer maneira. E quanto ao seu… pedido?”
“Bem… a verdade é que eu quero um favor em troca de ajudar você. Eu sei que você com certeza fará mais uso de mim em futuros reinícios, e não tenho problemas com isso … exceto que quero tirar algo disso também.”
“Não tenho certeza do que posso fazer por você que não seja anulado pelo reinício, mas tudo bem,” Zorian encolheu os ombros. “Qual é o seu desejo, oh, grande Kael?”
“Eu quero a mesma coisa que você já está fazendo — usar o loop temporal para melhorar minhas habilidades,” disse Kael. “No caso de magias que requerem habilidades de modelagem e afins, isso é claramente quase impossível sem ser trazido para o loop temporal, mas há uma disciplina mágica que é muito menos dependente de habilidades de modelagem. Uma em que sou muito bom.”
“Alquimia,” disse Zorian.
“Exato. Agora, praticar alquimia no meu nível envolve muita experimentação — testar os efeitos das poções, melhorá-las e criar misturas originais. Essas coisas consomem muito dinheiro e muito tempo, mas uma vez que você tenha uma receita para uma poção…”
“Você quer que eu o ajude a criar receitas de poções prontas e, em seguida, forneça o resultado nos reinícios subsequentes, permitindo que você refine ainda mais suas receitas e, em seguida, pegue esses resultados e-“
“Exato!” Kael disse. “E então, quando o loop temporal terminar, você vai me dar os frutos desse trabalho e eu terei economizado meses, talvez até anos do meu trabalho! Isso exigirá que você se aprofunde mais nas complexidades da alquimia, mas não vejo isso como um grande problema para você — você claramente precisará se pretende confiar tanto em itens.”
Acontece que Kael passou a maior parte do mês realizando vários experimentos e logo trouxe para ele um caderno com os resultados. Havia muito texto lá, mas Kael explicou que só precisava que ele memorizasse as duas últimas páginas, que listavam quais pontos de pesquisa eram becos sem saída e delineavam uma receita meio pronta para algum tipo de poção anti-febre.
Kael explicou que dar a ele esses resultados nos reinícios seguintes não apenas ajudaria Kael a melhorar seu ofício, mas também permitiria que Zorian convencesse o outro garoto de que ele era mesmo um viajante do tempo muito mais rápido do que antes. E também tornaria Kael mais disposto a ajudar, mais cedo (pisca, pisca, cutuca, cutuca, você já entendeu?). Não vendo mal, Zorian passou o resto da espera memorizando os resultados e depois folheando o restante do caderno de pesquisa de Kael.
“Zorian, sua namorada está aqui!” Kirielle chamou, tentando soar provocadora, mas acabou zombando e irritando no processo.
“Estou indo,” disse Zorian, fechando o caderno e saindo para cumprimentar Akoja, que tentava não parecer muito constrangida na frente de Imaya e Kirielle. E falhando de forma miserável, pois ela parecia completamente perdida em como lidar com as provocações despreocupadas de sua irmã e o conselho de Imaya sobre o que fazer se Zorian ficasse muito agarrado durante a noite (chute-o na virilha parecia ser a essência dele). Depois de alguns minutos, ele decidiu ter misericórdia dela e arrastá-la para longe daqueles duas para que pudessem seguir seu caminho.
Era hora de colocar esse show na estrada.