Capítulo 27 - Guerra!
Depois de muitas semanas, Maria acordou em sua própria cama. Espreguiçou-se e apreciou o ambiente familiar de seu próprio quarto. Estava também ansiosa por voltar a treinar. O Sol já estava alto no céu, o que significava que tinha dormido demais, mas não se censurou muito por isso. O último trecho da viagem foi muito cansativo, e já devia passar de meia noite quando despediu-se de Tiago e entrou no castelo.
Levantou-se e trocou-se rapidamente. Passou correndo pela cozinha apenas para pegar um pedaço de bolo e engolir uma pequena xícara de leite, e logo dirigiu-se à área de treinamentos do lado de fora do castelo. Ao chegar lá, notou uma movimentação diferente. Ao invés de os soldados estarem realizando suas rotinas individuais, como de costume, estavam todos alinhados em um enorme quadrado. À frente do pelotão, viu a figura atlética do conde Alvar, fazendo uma série de movimentos com o corpo, que eram imitados pelos soldados.
Maria aproximou-se e começou imediatamente a procurar por André, mas não o encontrou em lugar nenhum. Alvar percebeu que ela estava ali e gritou:
— Capitã, que surpresa vê-la por aqui! Quer se juntar a nós para o aquecimento antes dos treinos com armas?
— Não, eu ainda não corri. Onde está André?
Alvar não respondeu. Ele começou a caminhar em direção a ela, enquanto dizia, dirigindo-se à tropa:
— Soldados! Continuem com esses movimentos!
Ouvi-lo gritando ordens em sua frente deixou Maria um pouco irritada. É verdade que ela não avisou a ninguém que tinha chegado. E na ausência dela, Alvar era o atual comandante, mas o fato a incomodou mesmo assim.
Maria olhou enquanto o conde se aproximava. Ele estava sem camisa e usava calças compridas pretas. Seus enormes músculos saltavam aos olhos, brilhantes com o suor, destacando-se no tórax, abdomen, ombros, braços e antebraços. Maria precisou lutar para não descer os olhos e admirar seu corpo bem definido.
Quando ele estava perto, disse:
— Desculpe-me, André não está. Ele pediu que você o procurasse assim que tivesse retornado. Ele está na hospedaria da cidade.
— Na hospedaria? Por que ele não está aqui?
— Ele vai explicar tudo a você, não se preocupe.
Desconfiada, Maria disse:
— Certo. E que novidade é essa? Por que estão todos se exercitando ao mesmo tempo?
— Ah, eu tomei a liberdade de mudar um pouco o estilo do treinamento. Aprendi isso com os treinadores em Montrésor, deixa o treino mais dinâmico.
— E funciona?
— Pergunte aos soldados, depois. Pelo menos eles me disseram que gostaram.
— E o que vem a seguir?
— Hoje vamos treinar com espadas. Determinei que é uma semana para cada arma. Primeiro praticamos movimentos sozinhos, depois em duplas. E no último dia, que é hoje, por coincidência, temos uma pequena competição.
— Interessante, também aprendeu em…
— Montrésor. — Ele pronunciou as sílabas pausadamente, com um forte sotaque estrangueiro. — Sim, mantém os soldados estimulados e melhor preparados para o combate.
— O que André tem a dizer sobre essas mudanças todas?
Alvar deu um sorriso impaciente. Disse:
— Ele vai explicar tudo, tenho certeza. Com licença, já temos que começar aqui. Você ainda tem que correr, certo?
Sem esperar que Maria respondesse, Alvar virou-se, correndo de volta para o lugar onde estava. No caminho, gritou:
— Quem vai vencer hoje? HEIN? Vai ser o Martim, de novo? Ou alguém vai conseguir derrotar nosso campeão desta vez?
Seu coração deu um salto ao ouvir aquele nome. Olhou para os soldados e viu que Martim estava na frente do pelotão. Alvar chacoalhou seus ombros antes de dar um tapa em seu braço, sorrindo para ele. Martim também sorria ao olhar para os colegas, enquanto ouvia as suas provocações: “Você cai hoje, Martim!”, “Seu reinado vai acabar!”. Maria sentiu o sangue ferver quando ouviu um “E você, capitão, por que não luta?”
Capitão?
Teria mesmo ouvido aquilo ou foi apenas sua imaginação? Ouviu outro soldado dizendo:
— É, mostre para o Martim como é que um capitão de verdade luta!
Com o coração acelerado, Maria começou a correr, farta de ouvir aquilo tudo. A cada volta, passava perto dos soldados que treinavam. Ouvia muitas risadas e brincadeiras, e a voz de Alvar sempre presente, gritando insultos e elogios aos homens. Ele parecia estar já bastante enturmado, apesar do pouco tempo de convivência.
Muito mais do que eu jamais consegui…
Martim também estava à vontade. Não se parecia em nada com o Martim de antes do torneio, que era um rapaz tímido e que preferia ficar isolado. Ele lutava e sorria, dando gargalhadas e conversando com praticamente todo mundo.
Parecia estar realmente feliz.
Maria não terminou seu treinamento. Foi embora logo após a corrida. Estava tarde, precisava colocar muitas tarefas em dia. A primeira delas era reportar-se à rainha sobre os resultados de sua viagem. Em seguida, precisaria fazer um catálogo de todos os equipamentos e suprimentos da guarda real, para preparar a chegada dos novos recursos que conseguiu angariar. Por fim, procuraria André.
O encontro com a rainha foi rápido. Apesar de não ter atingido sua meta, conseguiu um grande volume de doações. Em poucos dias a guarda real estaria mais bem equipada do que jamais esteve e poderia responder ao chamado de uma guerra, caso necessário. Catarina não procurou saber detalhes sobre como cada um dos seus vassalos contribuiu, contentando-se apenas com o resultado final geral.
Maria sentiu vontade de comentar sobre Alvar e todas as mudanças feitas na rotina de treinamentos, mas ponderou que não adiantaria nada. Catarina não se interessava por esses detalhes. Além disso, certamente favoreceria o novo subcapitão. Segundo suas próprias palavras, ele era um especialista em combate, enquanto ela tinha perdido um duelo para um simples soldado.
Mesmo tendo sido rápido, o encontro avançou até o horário do almoço. Ela saiu da reunião e foi para o salão da guarda, que estava lotado. Alvar estava almoçando ali e conversava animadamente com alguns soldados. Eles comentavam sobre a competição da manhã, que foi de fato vencida por Martim, pelo que pôde escutar. Mais uma vez, Maria perguntou-se por que os homens davam tanto valor a uma competição.
Tendo dificuldade para encontrar um local onde se sentar, foi até a cozinha e almoçou sozinha na enorme mesa onde os cozinheiros preparavam as refeições.
Depois do almoço, Maria dirigiu-se ao seu escritório, onde passaria a tarde toda com tarefas de contabilidade e conferência de estoque. Para sua surpresa, ao entrar na sala deparou-se com um lugar completamente diferente. Sua mesa foi movida de lugar, ficando encostada na parede do fundo. Havia outras três cadeiras na sala, assim como um largo banco de madeira revestido por almofadas macias. Prateleiras tinham sido instaladas em uma das paredes, e muitos papéis haviam sido empilhados nelas.
Enquanto tentava entender o que tinha acontecido, a porta se abriu às suas costas. Era Alvar, que assustou-se com a sua presença:
— Oh, boa tarde, capitã. Eu me esqueci que já tinha voltado de viagem.
— O que aconteceu aqui?
— Bom, eu precisava de um lugar para me organizar. E a nossa rainha não quis dispor de um lugar só para mim. Então eu pensei em usar aqui por enquanto.
— Mas onde estão minhas coisas?
— Está tudo aqui, calma, não precisa ficar nervosa. — Ele foi até a mesa, abriu a gaveta, tirou alguns papéis e os colocou sobre o tampo.
Eu estou calma… por enquanto.
— Eu acho que tem mais papéis seus em algumas das prateleiras — ele disse, apontando com o dedo de forma desleixada.
— Não tem problema — ela disse, controlando-se. — Eu procuro mais tarde.
— Você não se incomoda se a gente dividir a sala, né?
— Se não tem outra opção…
— Ótimo — ele respondeu, dirigindo-se a uma das cadeiras e sentando-se.
Maria puxou uma cadeira, sentou-se ao lado dele e começou a folhear seus papéis em busca das informações de que precisava. Não tendo encontrado, levantou-se e começou a procurar pelas prateleiras, perto de onde Alvar tinha apontado. Achou algumas das coisas que procurava, mas estava tudo espalhado e desordenado.
— Vamos receber novos equipamentos e suprimentos, né? — ele disse, sem olhar para ela. Em seguida, esticou o braço até uma prateleira, pegou um papel e entregou a Maria. — É isso que você está procurando?
Maria pegou o papel e ficou impressionada. Alvar já tinha feito todo o levantamento necessário, listando cada peça de roupa, armamento e suprimento, ao lado das quantidades exatas, cuidadosamente anotadas em uma caligrafia caprichada. Tinha poupado-lhe um grande esforço.
— Sim, na verdade era exatamente isso o que eu procurava.
— Fico feliz em ajudar. — Ele deu um sorriso que pareceu forçado, antes de retornar aos seus afazeres.
Maria voltou ao seu lugar e começou a conferir alguns valores, para ter certeza de que não havia nenhum erro. Alvar disse:
— Não precisa conferir, se é isso que está fazendo.
Segurando-se para não xingá-lo, respondeu:
— Eu preciso atualizar tudo para incluir os carregamentos que vão chegar nos próximos dias. Posso muito bem ir conferindo enquanto eu faço isso.
— Se quer mesmo perder seu tempo, vá em frente.
Para a sua irritação, Maria não encontrou um erro sequer no trabalho de Alvar. Ainda que tivesse ganhado um tempo enorme, desejou que ele não fosse tão competente.
Nesse momento, a porta se abriu, e um soldado colocou metade do corpo para dentro, chamando:
— Capitão Alvar?
Não há dúvidas desta vez. Ele o chamou mesmo de capitão!
Maria também estranhou o comportamento do soldado, pois normalmente os homens batiam na porta antes de entrar. Ele disse:
— Oh, capitã, eu não vi que a senhora estava aqui, me desculpe.
É senhorita.
— Sem problemas — ela respondeu.
— Diga, Pedro — Alvar dirigiu-se ao soldado.
Pedro, é mesmo! Droga, tinha esquecido o nome dele!
— O pessoal está esperando lá embaixo. Você vem com a gente agora ou vai depois?
— Eu vou daqui a pouco, podem ir sem mim.
— Está bem, até mais.
Maria ficou olhando para Alvar enquanto ele terminava de fazer algumas anotações. Ela disse:
— Não quero me intrometer mas… se tiver algum compromisso, fique à vontade para sair, eu termino aqui sozinha.
— Não tem problema, não é nada urgente. Nós vamos nos reunir na taverna daqui a pouco, eu vou mais tarde.
— Oh, certo.
— Não quer se juntar a nós?
— Eu já tenho outro compromisso. Desculpe me intrometer novamente, mas vocês têm folga hoje?
— Não, mas vai ser uma coisa rápida. Vamos comemorar o nascimento do filho do Ulimar. Voltaremos para o castelo antes do anoitecer.
— Certo, mas… vocês têm autorização para sair sem ser uma folga?
Com um ar de preocupação que parecia muito ser fingimento, Alvar disse:
— Oh! Me desculpe, capitã. Sim, eu autorizei a todos. É a comemoração do nascimento de um filho, né, acho que não tem problema. — Ele deu um sorriso arrogante. — Mas com você de volta, suponho que eu precise pedir a você…
— Não, neste caso — enfatizou essa parte — não tem problema nenhum.
— Obrigado. Tem certeza que não quer se juntar a nós?
— Tenho. Mande minhas congratulações a Ulimar e à família dele.
— Sim, farei isso.
Depois de mais alguns minutos, Alvar se levantou e se despediu, deixando Maria sozinha na sala que agora pertencia a ambos.
Passado um tempo, quando estava certa de que Alvar já estava longe do alcance, levantou-se e começou a andar de um lado para outro, impaciente. Durante sua ausência, Alvar não apenas tinha conquistado a simpatia de toda a guarda, algo que Maria ainda não sentia ter conseguido plenamente, mas também ter tomado seu espaço, literalmente até, no caso do escritório. Apesar de ser educado e aparentemente competente, era arrogante e presunçoso também, e estava fazendo-a se sentir inútil e deslocada.
Sua cabeça girava. Não conseguia mais ficar ali. Saiu da sala e trancou a porta.
— Por favor, André, fique — Maria choramingava.
— Eu não posso, Maria, eu não tenho mais como me sustentar aqui.
— Mas eu preciso de você aqui. A rainha não gosta de mim. Agora tem esse… conde Alvar! Argh! Que raiva desse homem! Ele não tinha o direito de mandar você embora.
— Pelo que me disse, foi ordem da própria rainha.
— Hunf! — ela resmungou. — E quando você parte?
— Amanhã mesmo, eu só estava esperando você voltar para me despedir.
— E se a gente dividisse meu salário? Eu quase não gasto nada. — Seu olhar se ergueu em direção ao dele, em uma súplica desesperada.
Ele se aproximou e a abraçou, apertando-a forte contra seu peito.
— Eu nunca poderia aceitar. — Sua voz soava tranquila. — Calma, vai ficar tudo bem.
Afastando-se dele, Maria sentou-se em uma poltrona confortável que havia no quarto da hospedaria.
— Não vai ser nada fácil sem você por perto.
— Você vai dar um jeito de sobreviver sem mim. Eu sei que sou imprescindível, praticamente a única razão do seu sucesso, mas vai sobreviver. — Ele riu.
— Eu estou falando sério!
— Eu também. Pelo que eu me lembre, você não é nenhuma garotinha perdida.
— Eu estou aqui lamentando a partida de um amigo. Estou ficando cada vez mais abandonada, não tem graça.
— Você não está sozinha, Maria, pare com isso!
— Hunf! Eu estava começando a me dar um pouco melhor com os soldados. Aí veio essa viagem maldita e tudo começou a desabar. Você precisa ver como eles estão unidos. Estão agora mesmo na taverna, acredita?
— Falando nisso, como foi a viagem?
— Ah, foi até bom sair do castelo um pouco. Eu estava sentindo falta da estrada. Mas eu não sirvo para isso. Almoços formais, negociações…
— Não se engane. Você é ótima nesse tipo de coisa. Melhor do que pensa.
— Talvez tenha razão. Aparentemente eu não sei nem mais como treinar os soldados. Você sabia que Alvar mudou todo o treinamento?
— É, eu fiquei sabendo.
— Ele ficou lá, todo arrogante, dizendo como o jeito dele era melhor do que o meu, que era mais eficiente. Eu já disse que odeio esse cara?
— Sim, já disse — André sorriu para ela.
Maria olhava para as próprias mãos, desanimada. Não estava preparada para despedir-se de André.
— Você vem me visitar? — ela perguntou.
— Pode contar com isso. Só vai demorar um pouco. Eu preciso retomar algumas atividades, trabalhar para ganhar dinheiro, né?
— O que vai fazer?
— Antes de vir para cá, eu estava trabalhando nas docas. Ajudava a carregar mantimentos e também cuidava da segurança. Eu tinha uns amigos trabalhando comigo, acho que eles continuam por lá.
— Segurança?
— É, ser um ex-soldado experiente tem suas vantagens. As pessoas me pagam para ficar olhando de cara feia para todo mundo que passa por perto.
— E não é perigoso?
— Não mais do que fazer parte do exército.
Maria olhou para ele. Sentiu uma imensa vontade de estar de volta ao passado, quando ela e André marchavam juntos com um grupo de soldados, prestes a derrotar o inimigo. Sentia constantemente um misto de medo e ansiedade, arriscando suas vidas todo dia. Não precisava se preocupar com nada além de lutar e proteger seus amigos. E ela adorava a sensação de vitória após uma batalha. Apesar de ser uma vida bem mais perigosa, era muito melhor do que tentar comandar todo um pelotão de dentro de um escritório e ter que lidar com todas as chatices, intrigas e assédios que vinham junto com seu cargo.
— Eu já estou com saudades, sabia? Eu sei que você fica dizendo que eu não estou sozinha, mas eu me sinto bastante solitária por aqui.
— Você tem as garotas, não tem? Várias amigas que trabalham no castelo.
— Sim, é claro, mas… sei lá. Eu só me sinto assim, o tempo todo.
Mais uma pausa se fez. André estava em pé, olhando para ela. Meio receoso, ele perguntou:
— E Martim?
O rosto de Maria ficou quente. Engolindo em seco, disse:
— O que tem ele?
— Não tinha algo acontecendo entre vocês?
Seu coração se acelerou.
— É, tinha, mas…
— Por que não pode perdoá-lo? Ele foi tão culpado quanto eu nessa história toda.
— Não é uma questão de perdão… — Maria voltou no tempo. O baile tinha acabado. Cansado de ser destratado por ela, Martim decidiu se deitar com Marina. Estavam nus, abraçados na cama do dormitório, rindo despreocupadamente.
— Alguma coisa se quebrou entre a gente. Eu não sei se tem mais jeito.
André deu um sorriso triste para ela.
— Sinto muito.
— Eu preciso voltar para o castelo — ela disse, levantando-se. Abriu os braços em direção a André, e eles se abraçaram mais uma vez. Ela disse:
— Se cuida, grandão.
— Você também, pequena. Posso dar um último conselho?
— Sempre.
— Tome cuidado com Alvar. É óbvio que ele quer tomar seu lugar, eu só não sei até onde ele pode ir.
— Pode deixar, eu vou tomar cuidado.
André e Maria despediram-se. Enquanto caminhava de volta ao castelo, ela só conseguia pensar na certeza de que ele faria muita falta.
O movimento em frente ao castelo estava diferente. Havia muitos homens correndo de um lado para outro. Carroças se amontoavam enquanto seu conteúdo esperava para ser descarregado. Algumas barracas foram montadas em frente à muralha, e outras seguiam o mesmo processo. Havia cavaleiros que Maria não conhecia, soldados que não pertenciam à guarda, e todo tipo de gente, formando uma pequena multidão.
Reconhecendo uma serviçal andando apressada em sua direção, Maria a cumprimentou:
— Camila?
— Maria, oi! Tudo bem?
— O que está acontecendo? Por que toda essa agitação?
— Eu ouvi falar em guerra. Parece que fomos invadidos.
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