Índice de Capítulo

    Emelia acordou enquanto a garçonete lhes servia quatro xícaras de café.

    Sua primeira reação foi olhar desesperada para todos os cantos, a fim de descobrir onde estava, enquanto passava a mão pelo corpo, como que para garantir que não tinha perdido nada; fossem membros ou dignidade.

    — Bom-dia — disse Siegfried, quando a garota o encarou confusa. Então apontou para o canto da boca: — Você tá com um pouco de baba aqui.

    O rosto dela ficou vermelho de vergonha e ela se apressou em limpar a boca.

    — O-onde a gente…?

    — Hum? Ah, é só uma padaria. Ia demorar muito pra voltar pro salão, então a gente parou aqui até você acordar.

    Mesmo que fosse uma padaria, aquele não era um estabelecimento qualquer. Tinha dois andares, o piso era de madeira polida, as mesas e cadeiras de boa qualidade, e até as garçonetes usavam uniformes; vestidos pretos de renda com decote em V e cintura marcada, saias curtas cortadas na altura das coxas e uma meia-calça branca.

    Aquele não era um lugar feito para os plebeus, mas para os comerciantes, fidalgos e cavaleiros que iam e vinham para tratar de seus assuntos com o conde.

    Com o inverno se aproximando, eles eram os únicos ali, com uma ou outra funcionária vindo realizar alguma tarefa antes de ir embora; não que houvesse realmente algo para fazer, além de esperar que os clientes pedissem alguma coisa.

    Sam e Emelia não pareciam impressionados com o local. Era mais limpo e quieto do que o Salão dos Poucos, mas eram servidos e mimados da mesma forma.

    Gwen também se adaptou depressa e parecia gostar de ser tratada como uma princesa. Sua boca estava dobrada em um sorriso desde que chegaram e ela bebia o café como se fosse uma jovem dama.

    Apenas Siegfried e a pequena Sujeirinha não se sentiam muito confortáveis.

    O rapaz já estava acostumado com as servas do salão, mas era estranho ver garotas bonitas, mais ou menos da sua idade, andando para lá e para cá em vestidos tão curtos que mal cobriam as coxas, sorrindo e oferecendo sobremesas.

    — O senhor deseja algo mais? — perguntou uma garçonete de quinze anos e longos cabelos negros, meio inclinada atrás dele, com a boca perto do seu ouvido.

    Em trinta minutos, essa já era a quarta a fazer isso.

    Quando não estavam sussurrando em seu ouvido, as garçonetes limpavam ou tentavam alcançar algo nas prateleiras de cima, com as barras da saia pregueada mostrando um pouco demais.

    “Não são rameiras, mas se comportam como se fossem.”

    E por que não deveriam?

    Serviam aos nobres, e se tem uma coisa que cavaleiros e fidalgos gostavam de fazer, era apalpar servas quando passavam por eles. Uma garota bonita e esperta poderia fazer mais dinheiro em uma semana do que o próprio lorde em um mês de impostos.

    Uma pena para elas, que Siegfried não tinha dinheiro.

    A garotinha que encontraram era a que parecia mais desconfortável com tudo. Olhava ao seu redor de olhos esbugalhados, fascinada por cada detalhe. Até mesmo quando recebeu a xícara de café, ela esperou a permissão de Siegfried para beber.

    — Que foi? — perguntou o rapaz, quando notou que a Sujeirinha o encarava sorridente.

    — Você é o Siegfried — respondeu a garota. — Minha irmã gosta de você.

    — Huh? — Gwen abriu um sorriso arrogante e se virou para a menina, bebericando o café com um súbito interesse. — Ela gosta, é?

    — Anham. — A garotinha abriu os braços. — Um montão assim, ô! Ela fala dele o teeempo todo.

    — Você viu isso, Sieg? — Gwen imitou a garota. — A irmã dela gosta de você esse tantão assim, ô!

    Então as duas riram.

    — Quem se importa!? — gritou Sam, batendo os punhos na mesa e se levantando da cadeira. — Era pra gente tá lá fora, procurando a Mira! Não aqui, brincando com essa fedelha idiota!

    — D-desculpa — sussurrou a Sujeirinha, com os braços em volta de si e a cabeça baixa. Parecia ainda menor quando fazia isso.

    Siegfried se moveu incomodado na cadeira. Só tinham parado naquele lugar até Emelia acordar, agora deviam voltar às suas buscas, mas então, o que seria feito da garotinha? Simplesmente ir embora e deixá-la à própria sorte?

    “Quem se importa?”, sussurrou uma voz em sua cabeça. “É só uma ratinha de rua. Ela não vale nada. Vai deixar a Mirabel morrer enquanto brinca de casinha?”

    Mas ele se importava.

    Gwen ignorou os gritos de Sam e acalmou a Sujeirinha:

    — Não liga pra ele. — Ela aproximou a boca do ouvido da menina e pôs a mão na frente, como se estivesse contando um segredo. — Ele só tá emburrado porque a namoradinha dele fugiu. Eu aposto que ela tá por aí, brincando com outro garoto.

    — Hum…

    — Ei, tive uma ideia. Você quer que eu apresente a sua irmã pro Sieg? Acho que ela ia gostar disso, né?

    — Ah? Hum, m-mas… E-ela já conhece ele. Ela trabalha pro conde da colina. Aquele assustador com a armadura negra.

    — Hum? É mesmo?

    — E-ei — chamou Emelia, um pouco surpresa com o que ouviu. — A sua irmã. Qual o nome dela?

    — Huh? Brynna.

    — Então… — De repente a filha do conde ficou pálida como um fantasma. — Você é a Letya…?

    — Ah! Como você sabia? Péra, você trabalha com a minha irmã? Que legal. Pra falar a verdade, era pra eu ter ido pra lá também nesse inverno, mas disseram que o conde não ia chamar ninguém dessa vez. Então meu pai me vendeu.

    — Letya — disse Gwen, de repente com a voz muito mais sombria —, aquele homem no beco…

    — Ah, ele era o meu mestre — respondeu a garota, tão tranquila como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Eu sou a mais nova dos meus irmãos, então meu pai me trocou por dois rolos de queijo e uma garrafa de vinho. Disse que assim a gente tinha mais chances de passar o inverno.

    — Que horror. — Emelia levou as mãos até a boca e seus olhos brilharam, quando ela quase chorou.

    — Até que foi um bom preço — disse Siegfried.

    — Garotas valem mais — concordou Gwen.

    — Do que vocês estão falando!? — Emelia se enfureceu. — O pai dela… Como alguém faz algo assim com a própria filha? Vender ela como uma… Ah!

    Quando seus olhos encontraram os de Gwen, a filha do conde se calou envergonhada, como se as palavras tivessem entalado na sua garganta. Então se sentou novamente:

    — E-eu não quis–

    — A escravidão não é ilegal em Thedrit — disse Gwen. — Não desde que a guerra começou. Não tem nada pra se envergonhar.

    — M-mas isso–

    — Se dois reis dizem que tá tudo bem, então é só o que importa. Fim da história. É irritante ver você chorar por causa de algo que não vai mudar.

    Emelia se calou.

    — Se você tá tão preocupada com a fedelha — disse Sam —, é só levar ela pra casa. A gente matou o mestre dela mesmo, né? Ninguém vai se importar. Era pra gente tá–

    — Indo atrás da Mirabel — disse Gwen, calando o garoto com seu sorriso desdenhoso. — Eu sei, tá legal. Por isso digo que teria sido mais fácil de achar ela sozinha. Fala sério. Vocês ainda acham que ela é só uma menininha perdida, né?

    Mesmo Siegfried não pôde deixar de ficar atento às palavras da garota. Então todos os olhos se voltaram para ela, enquanto punha o braço em volta da cadeira de Sujeirinha:

    — Então, Letya. Cadê o Eradan?

    O rosto da menina ficou pálido como leite; ela se moveu na cadeira e a Gwen chegou mais perto.

    — E-eu não…

    — Não sabe? — Gwen alisou o rosto da garota. — Então me diz, por que aquele homem te comprou?

    — P-pra servir! E-ele queria alguém… Hum, pra casa.

    — Ele deu dois rolos de queijo e uma garrafa de vinho… Por uma empregada? Um pouco caro, não acha? Ou será que ele esperava que você fizesse algo mais?

    — E-eu… — Letya abaixou os olhos e encarou os próprios joelhos. — A-aquilo…

    — Aquilo?

    — E-ele me tocou — disse a garota, erguendo a cabeça com os olhos cheios de lágrimas. — L-lá…

    Emelia deixou escapar um som abafado de horror, mas logo tapou a boca com as mãos. Até Siegfried precisou pôr a xícara de café na mesa, ou a teria quebrado quando cerrou os punhos, mas Gwen estava tão calma como antes.

    — Então é isso, ein? Uma empregada e uma esposa. Me pergunto por que ele não escolheu alguém um pouco mais velha…

    — …

    — Bem, acho que tem todo o tipo de merda no mundo, não é mesmo? Deve ter sido assustador. Era por isso que ele tava te batendo quando eu cheguei? Por que você desobedeceu ele?

    A garota anuiu com a cabeça, meio hesitante e suando frio.

    — Que garota corajosa. Não posso deixar uma criança assim na rua, não é mesmo? Já sei. O que acha da gente te levar pro conde?

    — Não! — A cadeira da Letya arrastou no chão, quando ela tentou se afastar assustada. Durou um instante, então ela se ajeitou e forçou um sorriso. — E-eu quero dizer… Bem, disseram que o conde não vai aceitar ninguém esse ano.

    — Por isso hoje é o seu dia de sorte, porque aqui estão os dois filhos do lorde e o seu escudeiro. Acho que eles podem abrir uma exceção pra você, não é? É só nos dizer onde fica a taverna que os rebeldes estão. É a do barrigudo ou a do velho caolho?

    Dessa vez Letya saltou da cadeira e se afastou da mesa:

    — E-eu já disse que não sei de nada!

    — G-Gwen — disse Emelia. — Não acha que está indo um pouco longe demais?

    — Se você sabe cadê a Mira — gritou Sam, se levantando já com a espada em punhos —, vai contar agora!

    — EU JÁ DISSE QUE NÃO SEI! — Os olhos da garotinha se encheram de lágrimas e ela começou a soluçar. — E-eu achei que iam me ajudar… Vocês são iguais aos outros!

    Foi a segunda vez que Siegfried se sentiu sujo. Da última vez, matou um velho inocente, desta, atormentou uma garotinha assustada. Que tipo de homem faz algo assim?

    Mesmo Sam hesitou e olhou para Gwen, em busca de uma confirmação, mas ela se limitou a observar Letya com um sorriso arrogante, antes de dizer:

    — Ah, acho que me enganei. Foi mal. Desculpa a tia malvada, tá bom?

    A garota engoliu o choro, mas não disse nada.

    — Aqui, toma. — Ela jogou um saco de pano na direção da Letya, que o pegou no ar e olhou seu conteúdo, com os olhos esbugalhados. — Agora você pode voltar pra casa e comprar um montão de comida pra passar o inverno, né?

    — Ah, o-obrigada — disse a garota, antes de ir embora correndo.

    — Então foi tudo uma perda de tempo? — perguntou Sam, guardando a espada depois de a garota ter ido embora.

    — Acho que sim — respondeu Gwen, sorrindo.

    — Você não devia ter sido tão dura com ela — disse Emelia, aliviada. — A garotinha vai ficar traumatizada depois disso.

    — É uma garota esperta. Ela vai ficar bem.

    Siegfried apenas a encarou. Quando ela notou, lhe deu um sorriso amigável e ele teve certeza.

    “Ela tá mentindo.”

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