Capítulo 11 – A Vítima e o Criminoso
por NaorAgora era o ceifador quem estava surpreso.
— Irmão? Aquele general?
Anayê assentiu.
— Fomos levados juntos até a fortaleza quando crianças — explicou. — Mas ele era tão firme que os generais acharam por bem treiná-lo.
— E ele aceitou…
Ela balançou a cabeça, triste. Atrás deles, os gors conversavam com a mulher e o menino.
— Primeiro, achei que ele tinha morrido. Fiquei anos sem ter notícias. Mas depois começaram boatos de um general mais jovem e eu soube que era ele. Porém… não queria acreditar. Lutei para combater a ideia de ver meu irmão trabalhando para Astaroth.
Ela fez uma pausa e suspirou profundamente. Boyak coçou a cabeça.
— Mas é verdade… ele é um dos generais… — as lágrimas vieram.
Maldição! Pare de chorar, sua idiota. Pare de ser fraca! Zafael te abandonou. Ele não merece suas lágrimas.
— Isso explica muita coisa — o ceifador falou. — Eu estava sem entender o motivo de sermos perseguidos por um general. Mesmo com o meu ataque, jurava que Astaroth não se daria ao trabalho de me encontrar. No máximo mandaria um farejador ou coisa do tipo. Quem ia imaginar que o motivo de toda essa perseguição era você?
— Ele veio atrás de mim… — ela ainda não havia pensado nessa hipótese.
Por que agora? Eu fiquei durante esse tempo sozinha, sofrendo e sobrevivendo, e ele nunca veio me procurar. Nem mesmo naquele dia que jurei tê-lo visto. Será que ele também me viu? E se me viu, por que não falou nada? Ele estava proibido de falar comigo?
Ela balançou a cabeça rejeitando a solução apresentada por sua mente.
Não. Se ele quisesse de verdade, nada impediria de me ver. A verdade é que ele realmente não sei importou.
Suas mãos estremeceram diante daquela revelação.
No entanto, bastou colocar um pé para fora da fortaleza para que ele aparecesse. Era complicado descrever o que isso significava de verdade, mas a resposta estava clara: Zafael se tornara realmente um apoiador do lorde sombrio.
Nesse caso, ele queria me levar de volta. Isso não pode ser… meu próprio irmão quer me manter escrava? O que aconteceu com você, Zafael?
— Desejo destruir Astaroth por isso — Boyak declarou. — Ele contamina a cabeça das pessoas que amamos com suas mentiras. Com o tempo, elas estão cegas e não percebem mais a diferença entre bem e mal. Passam a executar as ordens dele sem importar se vão machucar os outros.
— Eu não consigo compreender. Meu irmão também foi escravo, ele presenciou várias vezes as atrocidades causadas por esse regime. Então como pôde se tornar parte dele?
— Ele desistiu. Não viu mais esperança de superar sua condição e resolveu se juntar aos seus algozes. As aberrações trabalham assim. Manipulam nossos sentimentos de dor e esperança para nos levar ao desespero. No desespero, abraçamos a ideia de que a nossa única salvação é aceitar as condições desses monstros.
Anayê já perdera a esperança várias vezes, mas esse sentimento nunca a levara considerar uma opção se juntar ao seu inimigo. Não se enxergava maltratando pessoas ou mesmo ajudando a manter um regime assim. O mero pensar na ideia a deixava enojada.
Boyak a fitava com pena e orgulho ao mesmo tempo. Imaginar que ela tinha passado por uma vida inteira se virando sozinha era perturbador. Ninguém devia ser levado ao limite tão cedo. Porém, mais terrível era o abandono do irmão. Que espécie de parente era esse? De onde vinha essa coragem macabra capaz de esquecer uma alma menor e dependente?
— Não pense demais sobre isso. Não vale seu esforço. Por enquanto, se preocupe em chegar até o legislador para se livrar dessa runa. Talvez, depois disso, você possa pensar no que vai fazer a respeito do seu irmão.
Anayê assentiu. Era tão estranho ter alguém oferecendo conselhos lógicos e práticos. Aquela recente relação com o ceifador pesava ainda mais em sua mente. Então, é isso que chamam de amizade? Ter alguém que se preocupa de verdade com você?
Ela não considerava Boyak seu amigo. Apenas um conhecido. Nunca tinha chamado ninguém de amigo. Esse tipo de relação era novidade, mas ela adorava a sensação.
Como é bom ter alguém se preocupando comigo. Deixou o pensamento escapar e se sentiu envergonhada e culpada pela dependência emocional. Você já se decepcionou uma vez com seu irmão, não pode permitir que aconteça de novo. No momento de aperto, com certeza Boyak vai abandoná-la. Outra parte de si rebateu dizendo que ele era diferente. Poderia ter me deixado a qualquer momento, pois está sem frascos de oração. Mas não! Ele salvou até mesmo os gors.
— Ei! Você! — foi o líder dos gors quem chamou.
Os dois se viraram para ele.
A criatura esverdeada curvou a cabeça repleta de cabelos presos num coque.
— Obrigado por salvar meus amigos.
— Normalmente eu mato vocês — Boyak falou. — Mas… bem, hoje descobri que os gors também são odiados por Astaroth e, devo admitir, isso foi bastante estranho para mim. Sempre ouvi falar que vocês foram criados pelas mãos dessas aberrações.
— E fomos. Sim, criados para sermos servos de suas vontades, meras marionetes. Escravos são trabalhosos e nossos criadores acharam que nós pouparíamos essa dor de cabeça. Humpf! Tolos! — Ele cuspiu no chão em sinal de desprezo. — Acontece que os gors também tinham consciência e vontade própria e desejavam bem mais do que apenas servir de burro de carga ou serem descartáveis. Foi assim que nossos antepassados se revoltaram.
— A história que me contaram é bem diferente — Boyak revelou. — Disseram que os gors tentaram assumir o poder e foram rechaçados por Astaroth.
— Essa é a versão popular espalhada pelos maggs e já que nós estávamos escondidos tentando sobreviver não dava para contar a nossa versão. Astaroth fez de tudo para destruir nossa reputação de modo que não tivéssemos lugar para ir.
— Típico dele.
— Vivemos escondidos no subterrâneo, sobrevivendo de ataques. Não podemos ir para os reinos livres porque somos filhos das aberrações, portanto, aberrações. E, por causa das mentiras de Astaroth, não somos aceitos em lugar algum. Não desejamos essa vida, ela apenas nos foi imposta como grilhões de ferro inquebráveis. Fomos obrigados a odiar e atacar qualquer um que não fosse de nossa espécie. É assim que sobrevivemos.
Boyak suspirou. Diferente de tudo o que já tinha visto, ouvido ou enfrentado, aquele dilema era um enigma complicado de resolver. Preconceito se tornara a guerra mais difícil de ser vencida. Por um lado, humanos sentiam medo de aberrações e tinham suas razões. Porém, por outro lado, os gors podiam ser considerados aberrações de verdade? Só porque tinham sido criados por Astaroth?
O modo como os gors eram tratados não era novidade para Anayê, no entanto, não tinha parado para vê-los daquela perspectiva. De certa forma, ela tinha muito em comum com aquelas criaturas. Sou uma humana, talvez ainda seja aceita em algum lugar. Já eles…
— Deve ter algo que possa ser feito a respeito disso — o ceifador disse.
— Já foi feito. Nunca se ouviu de um humano salvando um gor — o líder continuou. — Hoje foi a primeira vez. E olha quantos gors foram salvos.
— Mas amanhã pode ser outro humano, outro magg, outra aberração. Vocês atacam, eles atacam, enquanto isso, inocentes morrem e sofrem. Se somos fomentadores de tamanha violência, não somos diferentes de Astaroth. Se nossas mãos estão sujas de sangue, não somos tão inocentes assim.
Ninguém soube responder. Era complicado saber onde a defesa virava ataque e quando a vítima se tornava algoz. E quanto menos se pensava a respeito, mais coisas ruins aconteciam.
— Não posso prometer nunca mais atacar um humano — o líder disse mexendo no seu coque. — Mas farei o possível desde que ele não esteja ameaçando a minha segurança ou a do meu povo.
— Parece um bom começo — Boyak estendeu a mão.
A criaturinha verde aceitou o gesto. Ambos apertaram as mãos.
A lua espiava entre as nuvens e testemunhava a primeira vez em que algo daquela natureza acontecia.