Índice de Capítulo

    Já era de tarde quando Siegfried deu as buscas por encerradas.

    Cobriram quase dois quilômetros de floresta, mas mesmo com todos os soldados e voluntários, não encontraram nada. Nem o assassino, nem o cadáver do segundo recruta desaparecido.

    Um dos soldados era filho de um caçador e jurava conhecer a floresta melhor do que ninguém, mas mesmo ele não foi capaz de encontrar um rastro sequer.

    E agora tinham perdido meio dia de viagem.

    — Não podemos ficar aqui pra sempre — disse o conde, em particular. — Provavelmente é só um desertor. Deve ter matado o amigo enquanto tentava fugir e agora se escondeu em um tronco qualquer ou sei lá. Seja como for, temos assuntos mais importantes a tratar do que achar um soldado desaparecido.

    Depois disso, voltaram a marchar, mas as mortes não pararam.

    Na manhã seguinte, descobriram que uma das rameiras havia desaparecido. Na próxima, um comerciante de temperos e seu filho. Hoje, a namorada de um recruta.

    Dizer que isso abalou a moral da tropa era como dizer que a água é molhada. Todos tinham medo de andarem sozinhos à noite; dormiam em grupos e até se revezavam em vigílias noturnas. Não que alguém tivesse uma boa noite de sono.

    Quando a manhã chegava, andavam arrastando os pés e tinham olheiras profundas. Os soldados esqueletos pareciam mais vivos que eles.

    “Se nos atacarem, não vão conseguir nem erguer as espadas.”

    Estava indo se deitar, quando uma garota veio até sua tenda. A irmã mais nova de um soldado, não uma prostituta. Mal devia ter treze anos.

    — Milorde, posso falar com o senhor?

    — O que foi?

    Ela hesitou, as pernas tremendo enquanto encarava o chão, até que puxou um punhado de moedas de bronze dos bolsos:

    — É-é tudo o que tenho! P-por favor… Me deixe dormir aqui essa noite! E-eu imploro!

    — Não tem que fazer isso. Já aumentei as patrulhas. Estão seguros.

    Mas quando se virou para ir embora, sentiu a garota agarrar seu braço:

    — E-espera!

    — Eu já disse–

    — U-um tear!

    — O quê?

    — M-minha família. Nós temos um tear. Foi meu bisavô quem comprou, quando era mais novo, mas ainda funciona e é muito bom. S-se vender, pode conseguir muito dinheiro. D-dez moedas de prata. N-não. Vinte! Por favor…

    Quando Siegfried não respondeu, ela entrou em pânico e seus olhos se encheram de lágrimas:

    — P-por favor. Eu nem queria estar aqui! Meus pais me obrigaram a vir. Disseram que eu tinha que ajudar o meu irmão. Cuidar dele enquanto a guerra durasse… E-eu não quero morrer!

    — …

    — Q-qualquer coisa. Eu faço qualquer coisa! É só me dizer o que quer!

    — Quero que me solte!

    — …

    — Está segura! Todos vocês estão! Desde que fiquem no acampamento. Pode dormir aqui fora se quiser, mas a noite é fria e não estará mais segura aqui do que em qualquer outro lugar.

    Ela afrouxou os dedos e então soltou seu braço, mas não se moveu até que Siegfried já estivesse dentro da tenda. O rapaz viu a sombra dela sumir por entre as luzes das fogueiras e foi só isso.

    Tentou dormir, mas estava inquieto demais. Seu coração batendo acelerado.

    A garota era muito pequena, com pernas finas e nenhum volume nos seios, mas ainda assim…

    “Qualquer coisa.”

    Tinha sido o mesmo nos dias anteriores também. Nem sempre eram garotas e nem sempre vinham sozinhas, mas fosse quem fosse, oferecia tudo o que tinha pela simples promessa de protegê-los; suas economias, barris de vinho, lojas. Tudo.

    A bem da verdade, a maioria deles parecia estar mentindo. Talvez aquela garota até tivesse um tear, mas nunca conseguiria dez moedas de prata com ele. Quem dirá vinte.

    Mas tinha outra coisa que as garotas podiam lhe dar. Não conseguia parar de pensar em Dara. Na noite que tiveram juntos. Queria ela, mas ela não estava ali. Aquelas garotas sim. E isso o estava enlouquecendo.

    “Foi um erro”, disse a si mesmo. “Não vai acontecer de novo.”

    Só percebeu que tinha caído no sono, quando acordou com os gritos e puxou a espada. Um reflexo involuntário.

    Ainda era de madrugada quando deixou a tenda, mas o acampamento dos soldados já estava em alvoroço, reunindo uma multidão furiosa ao redor de uma grande fogueira nos limites da floresta.

    O rapaz forçou o seu caminho aos empurrões até chegar do outro lado, onde encontrou uma garota de quatorze anos, ajoelhada, com um dos recrutas agarrando seus cabelos e puxando ela de um lado para o outro, como se fosse uma boneca de pano, enquanto implorava:

    — P-por favor. N-não fizemos nada. Eu juro.

    — Puta mentirosa! — gritou o recruta, puxando o cabelo dela com tanta força que o couro cabeludo começou a sangrar. — Diga a verdade!

    — P-por favor…

    Ela não era a única ali.

    Haviam outros três refugiados à mercê dos soldados.

    Uma garota de onze anos estava encolhida no chão, enquanto dois recrutas acertavam suas pernas e braços com pedaços de pau, até sangrar; um homem bem para lá dos seus quarenta anos, tinha as tripas saindo por um buraco no estômago, mas ainda estava vivo; e uma mulher de trinta e tantos anos tinha perdido a consciência ao lado da filha, não que isso tenha lhe poupado do terceiro soldado, que pisava em sua cabeça e chutava suas costas.

    — Já chega! — disse Siegfried.

    E todos pararam, mas não por obediência. Dava para ver em seus olhos. Pararam porque não conseguiam acreditar no que tinham acabado de ouvir.

    — ‘Chega’!? — repetiu um dos recrutas; aquele que segurava a garota pelos cabelos. — Eles são rebeldes!

    — N-não! — gritou a garota. — A gente não–

    — Calada!

    Ele deu um puxão tão forte que arrancou tufos de cabelo ensanguentados da cabeça dela e a derrubou no chão, soluçando de tanto chorar. Não que alguém ali parecesse se importar.

    Estavam com raiva e queriam vingança.

    Só tinha um problema…

    — Não foram eles que mataram seus amigos — disse Siegfried.

    — São rebeldes! Se não foram eles, então sabem quem foi!

    — Não parecem rebeldes pra mim.

    — Mas são! Encontramos eles se escondendo na floresta. Esses covardes estavam só esperando a gente dormir pra atacar!

    — Ou estavam de passagem. A estrada tá cheia de refugiados hoje em dia. O conde deu a eles salvo-conduto.

    — São rebeldes e sabe disso! Devíamos matá-los!

    — Não cabe a você decidir!

    — …

    — Solte-os!

    O recruta hesitou. Tinha a testa empapada de suor, os joelhos tremiam e seus olhos inquietos procuravam apoio na multidão. A perfeita imagem de um covarde. Mas quando falou, sua resposta não poderia ter sido pior:

    — N-não…

    — O que disse!?

    — E-eu disse não!

    O soldado puxou sua espada enferrujada e o ar gelou quando todos prenderam a respiração, mas Siegfried não se moveu; nem para recuar, nem para sacar sua arma. Se o fizesse, teria de matá-lo.

    — Vai fazer a barba, garoto? Abaixa essa merda, antes que se corte!

    — Eles não vão escapar dessa vez!

    A garota ainda estava encolhida no chão, com as mãos segurando o topo da cabeça, enquanto o seu couro cabeludo sangrava e ela chorava. Foi tão rápido que só deu para ouvir o ‘crack’, quando ele acertou a mão dela, que ficou no caminho do golpe.

    Não foi o bastante.

    A lâmina estava cega e velha demais. Esmagou a mão da garota, mas não atravessou seu crânio.

    Ela gritou e o recruta voltou a brandir sua espada, mas antes que pudesse acertá-la novamente, Siegfried decepou sua mão.

    Foi aí que tudo saiu de controle.

    Um dos soldados se aproximou por trás e quase arrancou sua cabeça, mas bastou um passo para o lado e tudo o que conseguiu foi aparar dois fios de cabelo, antes de cair no chão, se contorcendo de dor e gritando depois que Siegfried aproveitou a oportunidade para arrancar seu olho direito com um movimento rápido.

    Outros dois recrutas avançaram e ele recuou, mantendo a distância, enquanto cortavam o ar, tentando acertá-lo.

    — Desgraçado!

    — Fica parado!

    Não que tenha sido uma surpresa, mas um deles avançou demais e acabou com uma espada presa no ombro, quando foi atingido por trás pelo seu amigo e caiu de joelhos, sem entender o que tinha acontecido, até que o outro chutou suas costas e arrancou a lâmina com um puxão.

    Então a batalha se tornou um duelo.

    Siegfried trocou alguns golpes de espada com o último recruta e atacou por cima, forçando o seu oponente a manter a lâmina erguida para aparar os golpes. Com as mãos acima do nível dos ombros, seu corpo ficou exposto.

    Então quebrou seu joelho com um chute.

    A perna do recruta dobrou para o lado errado e ele caiu no chão, somando seus gritos com os de seus colegas.

    Ninguém disse nada. Nem se moveu. Tudo o que se podia ouvir eram os gritos de dor da garota e dos recrutas mutilados se contorcendo no chão, enquanto a multidão observava em choque.

    Talvez tenha ido longe demais, mas não tinha como voltar atrás, então apontou para o primeiro soldado que viu:

    — Você!

    — S-senhor…?

    — Esses homens atacaram seu vice-comandante. Arranje cordas e amarre-os. Eles estão presos!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota