Índice de Capítulo

    Siegfried observou em silêncio, enquanto os três recrutas que o atacaram eram amarrados em um poste de madeira. Deviam ser quatro, mas um já tinha morrido de hemorragia após ser acertado nas costas pela espada do colega.

    — Isso não está certo! — gritou um deles. O que tinha perdido a mão.

    Siegfried o ignorou e foi até os refugiados.

    Tinha ordenado que recebessem tratamento, mas sem um sacerdote, havia pouco que pudesse ser feito.

    O pai morreu enquanto costuravam sua barriga; a mãe ainda respirava, mas não voltou a abrir os olhos. Agora só restavam as filhas. Estavam sentadas juntas, cuidando das feridas uma da outra, quando se aproximou:

    — Como estão?

    A irmã mais nova tomou um susto e se escondeu atrás da mais velha assim que o ouviu. Não que ele pudesse culpá-la; a garota mal conseguia mexer as pernas desde que foi espancada e, sempre que tentava ficar de pé, elas tremiam como se fossem feitas de geleia e a garota caía no chão.

    A irmã mais velha foi mais corajosa:

    — E-estamos bem, milorde. Muito obrigada por nos salvar.

    — Sinto muito pelos seus pais.

    — Obrigada, milorde.

    A garota manteve a cabeça baixa o tempo todo. Suas palavras eram educadas e sua expressão, absolutamente neutra. Se sentia algo por ele, era medo. Não que demonstrasse.

    Foi então que viu sua mão esquerda, escondida no colo, abaixo da direita. Se ajoelhou na frente dela e, quando tomou sua mão, a garota estremeceu, mas não protestou.

    Três dos cinco dedos tinham sido esmagados; os únicos que restavam agora eram o indicador e o polegar. Até dava para sentir os ossos quebrados por baixo da pele.

    — Podia ser pior.

    — Un-unhum…

    Estava ajudando ela a enfaixar a mão, quando dois soldados esqueletos passaram pela multidão e vieram em sua direção, parando bem na sua frente.

    Não sabiam falar, mas eram sempre fáceis de se entender. Se levantou e os seguiu, enquanto todos o observavam ir embora.

    Nem precisava ouvir para saber o que estavam cochichando entre si.

    A tenda do conde era a maior do acampamento, com quatro estacas e espaço o suficiente para a sua cama, mesa, baú de roupas e uma arca para guardar a sua armadura.

    Assim que chegaram, os esqueletos assumiram seus postos em frente à entrada e Siegfried entrou sozinho, encontrando o lorde de costas para ele, afundando uma caneca de madeira em um barril de cerveja.

    — Vossa graça?

    — Sente-se!

    Foi só depois que Siegfried tomou um assento à mesa, que o conde se virou e foi até ele, servindo-lhe uma caneca, antes de se sentar na outra cadeira.

    Ficaram ali por um momento, apenas olhando um para o outro, até que o lorde finalmente perguntou:

    — E então? Quer me dizer por que tenho quatro recrutas mortos?

    — Na verdade, só um…

    — …

    — Encontrei eles torturando uma família de refugiados. Quando mandei que os soltassem, me atacaram.

    — Só isso?

    — Só isso… Vossa graça.

    O conde bebeu um gole de cerveja, antes de prosseguir:

    — Nunca comandou uma tropa antes, não é?

    — Não, senhor.

    — Mas é um mercenário, por isso devia saber. Os garotos gostam de matar. Você, melhor do que ninguém, devia saber disso.

    — Não mato inocentes!

    — Não existem ‘inocentes’, só covardes. Um cadáver não se torna mais santo só porque é um cadáver. Morrer não faz deles boas pessoas. Já devia saber disso…

    — Com todo o respeito, vossa graça, mas se não tentaram me matar, pra mim são todos inocentes.

    — O que é você? Um monge? Também pretende matar seus homens sempre que eles saquearem um lugarejo qualquer?

    — Foi diferente!

    — ‘Porque são garotas’?

    — …

    — É, eu soube dessa merda. Duas garotinhas, só um pouco mais novas que você. Aposto que são bonitas também. Sua fraqueza sempre foi um rabo de saia, né? Quase morreu pela escrava e depois por aquela serva. É só ver uma garota na merda que você pula junto!

    — ‘Se eu permitir que se faça o mal, que seja a quem merece.’

    — Que merda é essa?

    — Um juramento. Eu fiz muitos quando me tornei um guerreiro. Não matar fora do campo de batalha. Não trair quem me é leal. Proteger os inocentes. O senhor luta pela sua casa. Eu luto pela mulher que amo. E acho que ela merece mais do que um covarde sem honra. Protegi aquela família porque são inocentes. E eu jurei proteger os inocentes. Simples assim. Não tem nada a ver com o que elas têm ou deixam de ter entre as pernas.

    O conde ficou em silêncio por quase dois minutos inteiros, apenas observando. Então disse:

    — Puta que pariu! Cê tá falando sério!

    — …

    — Caralho. Não dava pra você ser um moleque normal, não?! Cê sabe, pensar um pouco com a cabeça de baixo e só? Puta merda!

    O conde terminou de beber sua caneca e então pegou a de Siegfried, esvaziando tudo em um único gole:

    — Tá legal. Escuta aqui. Muito bonito, sério. Todo esse papo de ‘defender os fracos’ e ‘faço isso pela mulher que amo’. Muito lindo, de verdade. É o tipo de cara com quem as donzelas sonham. Só tem um problema: eu não sou uma donzela! E não posso liderar esse exército se meu oficial começar a enforcar seus homens porque mijaram na frente de uma garota!

    — Está me dizendo pra soltá-los?

    — Estou dizendo que devia se preocupar mais com seus homens e menos com refugiados na estrada! Um dia será lorde, por isso é bom que aprenda: não é ao povo que você deve agradar. Caso não tenha notado, rebeldes e soldados vêm do mesmo lugar. Pouco custa a eles se virarem contra você.

    — …

    — Não que agora faça diferença. Eles atacaram um oficial superior. Isso é traição. É bom que não se esqueça disso também: certo ou errado, você é a lei! E tudo o que diz deve ser obedecido. Sempre!

    Ninguém dormiu naquela noite.

    Siegfried esperou até a primeira luz do sol, mas a multidão já aguardava por ele muito antes disso e o caminho até o local da execução pareceu mais longo do que deveria; alguns o seguiram desde a sua tenda, observando seus passos como se fosse a primeira vez que o viam.

    Mas ninguém lhe dirigiu a palavra e, conforme se aproximava, saíam do seu caminho e mantinham a cabeça baixa em uma quase reverência.

    Medo. Respeito. Era engraçado como as duas coisas quase se confundiam.

    Foi uma manhã fria.

    Amarraram as cordas em uma árvore cada, para garantir que os galhos não se partissem diante do peso. Encontrou os três prisioneiros e os guardas esperando por ele em frente a elas, rodeados por uma enorme multidão à sua espera.

    Assim que o viram sozinho, os traidores entraram em pânico:

    — Onde está o conde!?

    — Sua graça está descansando. A sentença de vocês será dada por mim.

    Fez um pequeno aceno e os guardas levaram os prisioneiros até seus respectivos laços. É claro que nenhum deles foi sem lutar; um tentou fugir, outro se jogou no chão e o último tentou atacá-lo, mas no fim todos acabaram no mesmo lugar.

    Então se aproximou deles, um por um, começando pelo maneta que tentou atacá-lo:

    — Últimas palavras?

    — Não pode fazer isso! Desde quando é crime matar rebeldes!?

    — Não estão sendo executados por matarem rebeldes. Estão sendo executados por desafiarem minhas ordens e tentar me matar. Até onde me diz respeito, vocês também não passam de rebeldes.

    Dava para ver a expressão chocada no rosto do prisioneiro, quando ouviu suas palavras.

    Os seus amigos foram menos ousados; imploraram, choraram e prometeram lealdade. Esperou pacientemente até que terminassem e então os enforcou, assistindo em silêncio, enquanto os traidores eram erguidos no ar.

    Eles se contorceram, tentando romper as cordas que prendiam suas mãos atrás das costas e se libertar, mas de nada adiantou.

    Seus rostos ficaram roxos, seus olhos sangraram e então começaram a morrer um por um. Levou quase cinco minutos até que o último parasse de se mexer.

    Só então a multidão se dispersou.

    Mas Siegfried ainda não tinha terminado. Foi até as irmãs sobreviventes e deu a elas o vagão do comerciante morto, para que levassem seus pais. A garota mais nova ainda tinha medo dele, por isso se dirigiu à mais velha:

    — Estão indo pro Salão dos Poucos, não é?

    — S-sim, milorde. Se nos permitir. Ouvimos dizer que o lorde aceita refugiados.

    — O lorde aceita. Os outros? Nem tanto.

    — …

    — O vilarejo fica a uma semana daqui. Quando chegarem, procurem por Elenor e digam a ela que foi Siegfried quem as mandou. Ela vai cuidar de vocês.

    — Muito obrigada, milorde. Faremos isso.

    Siegfried assistiu elas se afastarem lentamente pela estrada de terra batida, antes de montar em seu cavalo e se juntar ao conde na vanguarda.

    Os traidores foram deixados para os corvos.

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