Anayê enxergou algo parecido com um muro destruído no horizonte. De início, achou que a escuridão e o cansaço estavam pregando uma peça, porém quanto mais a carroça avançava, mais a silhueta das ruínas de um muro ficavam claras.

    Grekz guiou o veículo para a esquerda desviando um pouco do caminho. A atenção de Anayê se direcionou para os restos de um portão de ferro a alguns quilômetros.

    — Estão vendo a mesma coisa que eu? — ela perguntou.

    Os dois assentiram.

    — Estamos nos aproximando das ruínas da lamentação — o gor explicou. — Outrora chamada a Cidade dos Portões de Ferro, este era um local próspero na fronteira dos reinos livres. Naquele tempo, a influência de Astaroth não era tão extensa, pois ele ainda era general de Yogh-Zul, por isso, esses humanos conseguiram se alocar e montar uma cidade bem aqui.

    Resquícios de um incêndio povoavam o lugar. Os portões de ferro retorcidos por uma força desconhecida.

    — Agora esse lugar é conhecido como as ruínas da lamentação — Grekz revelou.

    Mais a frente, os restos do que um dia fora uma torre podia ser visto e a estrada pavimentada deixara raros indícios de seus dias de glória.

    — Então essa é a famosa cidade dos Portões de Ferro? Já tinha ouvido falar, mas nunca passei por ela — Boyak falou.

    Anayê fitava curiosa a extensão dos muros, mesmo destruídos ainda mantinham o pouco da grandeza dos dias passados.

    — O que aconteceu aqui?

    — Uma decisão tola que gerou consequências catastróficas — o ceifador respondeu.

    — A saúde do rei Bennosuke III era frágil e complicada, levantando inúmeros problemas internos no palácio e como o rei não tinha sucessor, a discussão sobre sucessão se tornou ferrenha. Então, Astaroth enviou um emissário para fazer uma oferta. Em troca de uma parte da colheita, ele daria um elixir capaz de ajudar a saúde do monarca. E assim começou. — Grekz se arrepiou enquanto contava. 

    Os olhos de Anayê não escapavam dele, seus ouvidos apurando cada palavra.

    — Bennosuke ficou bom, mas sua personalidade mudou. Se tornou mais violento e duro, impondo sua vontade a qualquer custo. Ouvia vozes e condenava por qualquer motivo. E não bastando isso, inflamado pelo ego, o rei tramou para derrubar Astaroth e tomar seu lugar. 

    — Tolo infeliz — Boyak murmurou.

    — Obviamente, esse plano falhou. Bennosuke foi traído e sua trama descoberta pelo lorde sombrio.

    O som dos cascos do cavalo batendo em um pedaço de cimento que um dia fora parte da estrada de entrada ecoou no silêncio opressivo e angustiante do destino daquela cidade.

    — Astaroth atravessou suas terras com um exército de maggs até aqui, queimou a cidade e destruiu seus belos e imponentes muros, mas não matou a todos os cidadãos.

    Bem nesse momento, Anayê viu uma silhueta humana ajoelhada aos pés do muro. 

    Um gemido de dor soou nos ouvidos deles. Era alto, agudo e profundo denotando uma dor indescritível.

    — Ao invés disso, o lorde sombrio lançou uma maldição sobre eles — Grekz suspirou, aflito. — Nunca morreriam, mas também nunca deixariam de lamentar pelo dia que se levantaram contra ele.

    Outro grito vindo de longe, uma mistura de lamúria e raiva, assustou Anayê. Aquilo é… uma pessoa?

    Com os punhos erguidos batendo no muro, uma mulher de trajes maltrapilhos gritava e lastimava.

    — Desde então, os sobreviventes lamentam dia e noite. Não dormem, não comem, não descansam nem por um instante. Isentos de vontade própria.

    Anayê engoliu a saliva. Esse é um tipo totalmente diferente de escravidão. Como alguém pode ter poder para fazer isso?

    — Então esse é o caminho secreto dos gors? — Boyak indagou. — Passar pelo centro de uma cidade amaldiçoada?

    — Sim, os maggs raramente passam por aqui. As pessoas da cidade estão tão focadas em seu lamento que não percebem quando alguém passa e, se percebem, não fazem nada. Basta deixá-los em paz. Se é que existe paz na mente deles.

    A carroça avançou cidade adentro, mas a visão continuou piorando. 

    Pessoas jogavam cinzas na cabeça, choravam, pranteavam, gritavam, murmuravam sozinhas. 

    Uma mulher segurava um bebê morto, um adolescente batia a cabeça no batente de uma casa, um velho em posição fetal soluçando. Um cão magricelo e com corpo repleto de chagas, lambia a cabeça de um homem encostado nas ruínas de um poço.

    — Deve ter alguma maneira de resolver isso — o ceifador falou.

    — Ah! Muitos já tentaram — Grekz revelou. — Todos falharam. 

    — Nenhum ceifador deve ter tentado. E se tentou, fez um trabalho muito porco.

    — Estou te dizendo, rapaz, nenhum feiticeiro em todos os reinos livres conseguiu uma solução. A feitiçaria de Astaroth é muito poderosa. 

    — Agora que você mencionou isso fiquei com mais vontade ainda de ajudar.

    — Você não entende, se mexer com um deles, os outros virão para cima como um enxame de abelhas furiosas. Esqueça o que está vendo e reprima a sua compaixão. Da última vez, você caiu em uma armadilha ao tentar salvar alguém. 

    — Talvez você não entenda — a voz do ceifador ficou firme. — Aquela não foi a primeira vez que caí em uma emboscada e, provavelmente, não será a última. Mas, ouça bem, salvar uma vida sempre vai valer a pena. Não é porque algumas pessoas se aproveitam de nossa bondade que devemos parar de fazer o bem.

    — Essa filosofia de vida vai te levar para a boca da morte. Não sei o quanto vale a pena ter esse tipo de compaixão.

    — Se pensasse dessa maneira, eu teria matado você e seu bando lá trás.

    O gor engoliu a resposta a seco e a digeriu por um momento.

    Anayê observou lembrando que já tinha passado pelo mesmo questionamento.

    — Boyak, como posso explicar? — Grekz falou devagar, pensando em cada palavra. — Se um desses infelizes morder qualquer um de nós, vamos nos tornar iguais a eles. É muito perigoso arriscar.

    — Eu consigo. — O ceifador retirou o frasco com fluido do bolso. — Não estaria nesse trabalho se tivesse medo de arriscar.

    Porém, repentinamente, Anayê segurou seu braço fazendo com que seu olhar se voltasse para ela.

    — E se encontrarmos meu irmão de novo?

    Ele hesitou. A moça tinha um ponto e era muito bom.

    — Não vai adiantar libertar todos eles se não tivermos o poder de nos defender lá na frente. Se você morrer, ele vai nos levar de volta para Astaroth e tudo isso terá sido em vão.

    Boyak baixou a cabeça, fechou os olhos e suspirou profundamente enquanto apertava o frasco em sua mão. 

    Um relance de uma lembrança cruzou sua mente e fez seu estômago revirar. Uma menina de cinco anos no chão adornada por uma poça de sangue. Seu vestido azul estraçalhado e pintado de carmesim. Os fitilhos amarelos que prendiam seu cabelo branco jaziam lançados longe. As pequenas e frágeis mãos cruzadas no peito em posição de defesa, o pé esquerdo cortado fora, o rosto retalhado. Eu prometi, eu prometi que não ia deixar mais acontecer… Por quanto tempo essa falta de força vai determinar as minhas escolhas?

    As pernas começaram a tremer.

    — Boyak? — Anayê chamou.

    Ele levantou a cabeça e, sem querer, acabou afastando a mão dela de seu braço. Ela recuou, um pouco assustada. 

    O que eu devo fazer? É tão difícil admitir que ela está certa. Eu não tenho condições de ajudá-los agora. Droga!

    De repente, um grito encheu todo o ambiente e afastou seus pensamentos.

    — Ahhhhhhhhh!

    Era Anayê. 

    Ela foi atingida? Impossível, eu teria visto se alguém tivesse atacado. Porém, o ceifador não encontrou indícios de ataque.

    — Por todos os maggs! O que aconteceu? — Grekz perguntou, preocupado.

    A jovem levou a mão à testa, soltou outro berro e se desequilibrou voando para fora da carroça.

    — Anayê!

    O ceifador saltou logo em seguida lançando o braço para agarrá-la. Mas que droga! Com esse estoque de fluido de oração no meu corpo não consegui dar um pulo efetivo. E a visão adiante, congelou o seu sangue.

    O corpo de Anayê se encaminhava para cair em cima de um dos lamentadores.

    Boyak esticou o braço sentindo os dedos encostando na blusa dela.

    Eu… preciso… conseguir!

    Nota