Capítulo 16 – Lamentações: Fracassos
por NaorA primeira sensação que invadiu a mente do ceifador ao ver as rodas da carroça girando foi no quanto ele tinha sido ingênuo ao confiar em uma aberração. Seu mestre dissera, sua experiência confirmara, e mesmo assim, havia tomado a decisão mais tola de sua vida.
— Grekz! — gritou.
Sem resposta, o segundo sentimento intruso foi a raiva. E ela se apresentou de duas maneiras: pela frustração de confirmar que uma aberração sempre agia da mesma forma e pela incompetência de confiar sua vida a uma delas.
Por alguns momentos naquela noite, Boyak chegou a acreditar na humanidade dos gors. Questionando seu papel como ceifador e se tinha sido duro demais com aquelas criaturas. Agora, diante da verdade cruel, sua benevolência se escondeu e prometeu ficar lá quando uma aberração aparecesse.
— Argh! Tá… queimando… — o murmúrio de Anayê invocou uma torrente de emoções no ceifador.
Boyak se abaixou novamente colocando o corpo da moça no chão enquanto pegava o frasco com fluido de oração do bolso.
— Abra a boca — falou para ela e despejou uma gota do líquido. — Isso vai ajudar.
Em seguida, tomou o restante de seu conteúdo e jogou o frasco no chão. Agora vai ser pra valer. Colocou Anayê no colo e se levantou.
Lançou um olhar para a carroça que já estava ficando mais distante.
Vai pagar caro por ter me enganado dessa maneira.
De repente, o homem à sua frente agitou a mão e mostrou um pedaço de telha quebrada. Apertada daquela forma só havia um uso possível para o objeto.
— Não façam isso — o ceifador pediu.
Mas percebeu que todos os outros, homens, mulheres e crianças também portavam objetos com a intenção de atacá-los. Paus, ferros e pedras esperavam para serem usados a qualquer momento. Olhos repletos do desejo de violência fitavam seus alvos.
Boyak suspirou fundo sentindo o corpo de Anayê estremecendo.
— Vai ficar tudo bem. Nós vamos sair dessa — sussurrou para ela.
No entanto, a moça não pareceu conseguir ouvir nada. A dor havia consumido toda a sua capacidade de raciocinar. O seu corpo parece estar rejeitando o fluido de oração, será que é efeito da runa? Bah! Não tenho tempo para me preocupar com isso agora.
Voltou-se para os lamentadores.
— Por favor, eu imploro, não façam isso. Eu posso ajudá-los.
Nenhuma reação por parte dos ouvintes. Mesmo assim, ele continuou:
— Vocês devem conseguir me ouvir. Se me deixarem passar, retornarei com a cura! A maldição de Astaroth pode ser desfeita! Vocês serão livres outra vez.
Era impossível dizer se eles entendiam. Mas eu preciso tentar…
— Isso é uma promessa. — Deixou o suspiro sair lentamente. — E eu não costumo quebrá-las.
O vento dançou entre eles marcando o destino naquele lugar abandonado. Os leves raios de sol da manhã reluziam ainda tímidos.
O pé direito de Boyak se moveu devagar. Seus olhos observavam os espectadores e sua percepção aguçada se atentava aos ruídos.
Ninguém se mexeu.
É isso, fiquem parados.
Outro passo lento.
Dessa vez, a mão do homem em sua frente se agitou balançando o caco de telha.
Boyak paralisou. Em sua mente, visualizou duas ou três maneiras de desarmá-lo. O problema era desarmar mais de cem pessoas ao mesmo tempo. Talvez fosse possível se eu não estivesse carregando Anayê.
Porém, não podia correr o risco de deixá-la em algum lugar para ser atacada. Sua melhor chance era a tentativa de fuga. Na verdade, minha melhor chance é alcançar a carroça.
Dentro do veículo em movimento, ele seria capaz de expulsar qualquer um se aproximasse.
A mão do homem balançou novamente.
— Por favor, não façam…
Atrás dele, uma mulher saltou com um pedaço de pau mirando sua cabeça. Sua percepção soltou um grito de alerta em seu cérebro, o que gerou uma ação de seu corpo para esquivar do ataque.
Crack! O pedaço de pau emitiu um som agudo quando se chocou contra o chão e se dividiu em duas metades. Um dos dedos da mulher responsável pelo ataque quebrou com a força do atrito, mas ela não pareceu sentir, pois investiu com o pedaço de pau que sobrara.
O golpe sem jeito e sem traços de habilidade de batalha foi direcionado na cabeça do ceifador novamente e ele se abaixou para esquivar.
Shhh! O som da madeira revelou a força do ataque, mas a atacante acabou perdendo o equilíbrio ao usar tanto ímpeto. Aproveitando, Boyak se ergueu e a empurrou provocando sua queda.
Porém, não teve tempo de vê-la cair, pois um segundo golpe foi empreendido seguido de um terceiro. O caco de telha passou diante de seus olhos e sua perna esquerda se moveu para o lado escapando de um ferro afiado.
Os dois homens gemeram de fúria com o fracasso enquanto Boyak recuava dois passos. Eles avançaram outra vez e, ao mesmo tempo, a mulher caída abria os braços para agarrar a perna do ceifador.
Boyak ergueu o pé e pisou no cotovelo dela.
— Ahhhh! — berrou de dor.
Me desculpe por isso. Voltou-se rapidamente para os dois oponentes em sua frente. O homem com ferro parou há poucos centímetros e recuou os cotovelos para adquirir impulso enquanto o outro investiu mais de perto.
O ceifador saltou para trás e o homem com o ferro acabou atingindo seu companheiro em cheio no estômago provocando um estalo que denunciava um osso sendo partido.
Sentiu o alerta de perigo e afastou o pé da boca da mulher caída.
— Você é persistente, hein — resmungou se distanciando mais.
Um grupo de quatro atacantes se juntou a outros cinco.
A primeira esquiva fez alguém quebrar o nariz de uma pessoa. Em seguida, uma rasteira derrubou dois indivíduos. Boyak se levantou, saltou por cima do último adversário e começou a correr. Não vai dar para enfrentar todo mundo. Preciso alcançar a carroça.
Esquivou de uma pedra lançada contra seu rosto e chocou seu ombro derrubando um jovem que tentava acompanhá-lo.
Uma menininha vestindo um trapo fedido e velho se empenhou em atingir seus joelhos com um pedaço de pau, mas ele pulou outra vez e galgou dois metros de altura. Infelizmente, na aterrissagem acabou esbarrando com uma idosa e os três corpos saíram rolando pelo chão levantando pedregulhos e poeira.
Boyak nem teve tempo de respirar, pois precisou aparar um chute vindo na direção de seu rosto. O ceifador girou com o corpo e derrubou três adversários próximos. A panturrilha de um deles se torceu para trás.
Em seguida, ficou de pé num salto.
Seus olhos buscaram Anayê e encontraram a moça caída poucos metros à frente. Seu corpo estava estático e os olhos fechados.
A oração está fazendo efeito, enfim.
No entanto, dois meninos portando ferros pequenos e enferrujados se abaixaram ao lado dela, prontos para desferir inúmeros golpes.
Não!
Um relance de sua lembrança mais horrível surgiu outra vez por um milésimo de segundo. A menininha de vestido azul com fitilhos dourados no chão banhada por seu próprio sangue. Só que dessa vez, a menina se transformava em Anayê.
— Você nunca consegue salvar ninguém, não é mesmo, Boyak?
A revelação foi tão real e intensa que ele paralisou por um instante com os braços e pernas estremecendo. Você prometeu e não cumpriu. Ceifador estúpido.
Uma corda foi lançada contra ele e laçou seu pescoço. Percebeu um grupo de seis oponentes fazendo um círculo em sua volta.
Puxou a corda com uma das mãos e o dono veio em sua direção. Abriu a mão e acertou-lhe uma tapa que levou o indivíduo ao nocaute.
Os outros avançaram, todos ao mesmo tempo.
O ceifador desferiu cinco tapas e o som de cada um era seguido de um corpo no chão. Um arranhão surgiu em seu antebraço esquerdo quando terminou, porém, seus olhos se focaram desesperadamente em Anayê. Seu corpo pronto para disparar na direção dela.
Você nunca consegue salvar ninguém, não é mesmo, Boyak?
As mãos dos garotos se erguiam segurando os ferros com total firmeza. Aquele era um ataque mortal e efetivo.
— Não façam isso! — berrou.
Seus pés estavam se movendo, mas sua ação foi interrompida porque uma criança saltou sobre suas costas e furou seu ombro com um caco de telha.
O quê? De onde veio essa criança? Sua atenção totalmente focada em Anayê havia traído seu redor.
Você nunca consegue salvar ninguém, não é mesmo, Boyak?
A dor foi como uma ferroada de abelha, mas ele não tinha tempo para dores.
Agarrou a criança pelos cabelos e lançou-a contra outro oponente que se aproximava.
Mais grupos de pessoas se ajuntavam com cordas, ferros e punhais improvisados.
O ferro na mão dos garotos desceu emitindo um ruído contra o vento. Para o ceifador era a música do fracasso.
Você nunca consegue…
— Cala a bocaaaaaa! — o grito carregava o tom de desespero e angústia como se uma cicatriz fosse aberta e começasse a jorrar sangue para todos os lados.
O som de um trovão ecoou naquele lugar esquecido.
E, mais uma vez, a ruína das lamentações se tornou palco de uma desgraça.