Os inquietos lamentadores respiravam quase sincronizados, com seus pulmões se enchendo e soltando ar enquanto corriam na direção do ceifador.

    Boyak se concentrou. O tempo curto não dava opção para pensar em estratégias, precisava agir antes que ficasse cercado demais. Um ferro se fincou no chão entre seus pés um instante depois.

    Então seus olhos se depararam com uma torre quadrada a poucos metros de distância. Provavelmente, nos tempos áureos da cidade dos portões de ferro, fora uma torre de guarnição e vigia, mas no presente, apenas restara metade do edifício, cerca de cinco ou seis metros de altura. Seus blocos estavam cheios de buracos e rachaduras evidenciando o efeito do tempo e da deterioração. Porém, foi essa construção falida que trouxe uma ideia para o ceifador.

    Seu punho direito se encheu de luz, mas com uma intensidade menor. Ele avançou para a torre.

    Repeliu um pedaço de ferro que se despedaçou em dois ao colidir com sua mão.

    Os lamentadores acompanharam seu movimento tentando alcançar a torre e se interpor em seu caminho.

    Os pés de Boyak quase não tocavam o chão e ele usava cada passo como um impulsionador na intenção de ser mais rápido. Seus suspiros eram sincronizados com esses passos para terem mais eficácia.

    Visualizou um punhado de escombros de quase dois metros e meio no caminho e sorriu satisfeito.

    Com uma habilidade treinada, pisou em três pedras que formavam aquela massa de entulhos e alcançou o topo. 

    Um agressor tentou segui-lo e acabou empalado por um pedaço de cano, mas os outros começaram a escalada.

    Sem parar, Boyak direcionou parte de sua força para os joelhos e pernas, segurou Anayê ainda mais firme, e deu um pulo, alvejando a torre.

    Os lamentadores visualizaram o ceifador passando pelo ar rumo à construção.

    O punho direito se chocou contra o edifício abrindo uma enorme rachadura que abalou toda a sua estrutura. O ceifador se agarrou a um buraco enquanto sentia as bases da torre finalmente cederem.

    A construção oscilou e tombou para a esquerda visando um grupo grande de sujeitos.

    Boyak aproveitou para correr pela torre enquanto ela desabava. Alcançou a borda, flexionou os joelhos novamente e galgou o ar.

    Ao mesmo tempo, os seus perseguidores eram esmagados e estraçalhados pela queda da torre. Fumaça e pedras voaram para todos os lados com um estrondo que balançou todo o terreno e abriu um buraco no chão devorando todos que estavam em volta.

    O ceifador pousou. Não olhou para trás embora conseguisse ouvir o som de ossos se partindo e cabeças esmagadas através do estrondo. Ter sentidos aguçados nem sempre era uma benção.

    Disparou rumo aos muros que agora esperavam a poucos metros.

    Mais um bando de lamentadores surgiu em seu caminho.

    — Que droga! — murmurou.

    Desviou do que parecia ser uma lança improvisada. Tomou o objeto de seu dono e repeliu outra investida. Chutou o agressor com tamanha força que ele caiu por cima de outro sujeito e quebrou o pescoço na queda. Agarrou um deles para servir de escudo quando três espadas velhas alvejaram seu peito – uma das lâminas se despedaçou no processo – e jogou o corpo contra os atacantes atrapalhando qualquer outra tentativa.

    Um menino fincou um caco de telha na parte de trás de sua coxa um instante depois. Em reação instantânea, o ceifador chutou o garoto arrancando seu torço do corpo.

    Porém, em seguida, seus órgãos internos sentiram a dor de um golpe. Uma espada entrou e saiu de seu estômago deixando uma abertura em diagonal.

    O ceifador cuspiu um punhado de sangue e se sentiu tonto por um momento.

    A espada retornou sedenta por encontrar outra abertura, mas Boyak repeliu a lâmina com a mão e acertou uma cotovelada no responsável pelo ataque. Entretanto, logo depois, dois cacos de telha atingiram suas costas. Os agressores arrancaram os objetos fazendo um jorro de sangue saltar para fora.

    O ceifador consultou seu corpo, porém, não havia fluido suficiente em seu sangue para curar e continuar lutando.

    Girou os calcanhares e acertou os sujeitos com um chute.

    Ele deu um passo trôpego. Cerrou os dentes cheios de sangue e estreitou os olhos. A saída das ruínas estava muito perto, não podia perder agora.

    Esse pensamento determinou sua ação seguinte, usar o resto do fluido em seu corpo para se curar.

    Imediatamente, as feridas causadas pela espada e pelos cacos se fecharam. Porém, ao mesmo tempo, Boyak foi tomado por uma imensa exaustão.

    A dor infligiu uma punição severa aos membros de seu corpo, fazendo com que seu cérebro recebesse toda a agonia de uma só vez. Era como ser chacoalhado tão veloz e ferozmente que sua mente não tinha tempo de absorver a situação.

    Seus pés paralisaram perdendo o completo senso de equilíbrio.

    Você não consegue salvar ninguém, ceifador estúpido.

    A cena da mulher abusada e morta explodiu em sua mente trazendo amargas emoções à tona. 

    Ele continuou caminhando ouvindo a voz do seu fracasso ressoando repetidamente. Cada passo fazendo uma parte diferente do corpo sofrer.

    Você é um fracasso. Não consegue salvar ninguém. Não conseguirá salvar a si e nem a essa mulher em seus ombros. Por que se preocupar com esses sacrifícios?

    Um homem tentou atacá-lo. 

    Esquivou e acertou o punho no rosto do agressor quebrando o nariz dele, mas sentiu também os nós dos dedos ardendo.

    Permaneceu caminhando.

    Minta para si mesmo o quanto quiser, mas não vai conseguir esconder a verdade. Mesmo agora, não tem força para se manter em pé, que dirá para salvar alguém.

    Adiante apenas três sujeitos separavam-no das muralhas.

    Deu mais um passo. Sua perna esquerda fraquejou e ele se ajoelhou.

    Lamente, ceifador. Lamente a sua condição, a sua perda, o seu fracasso. Você não é melhor do que isso. Você é fraco, tolo e imprudente. Agora, se junte a essa cidade e lamente.

    Boyak baixou a cabeça. O corpo de Anayê pesava uma tonelada. Todos os seus músculos protestavam de dor e sua força minguava rápido. Sua respiração soltou um chiado denotando a sua situação deplorável.

    Desista. Você já vai morrer mesmo. Por que continuar esse sofrimento em vão? Suspire, garoto. Logo você vai estar junto com elas outra vez. Não é maravilhoso?

    O ceifador colocou Anayê no chão devagar, os braços estremecendo com o peso dela, a respiração se tornando mais complicada.

    Salivou de sede imaginando uma lagoa fria e cristalina oferecendo conforto e aconchego.

    Isso, desista e lamente. Infelizmente, você não foi forte o suficiente para salvá-la. Essa garota queria apenas a liberdade, somente chegar aos reinos livres, mas agora ela vai ser levada de volta para a fortaleza e você é o culpado.

    Os três indivíduos restantes estavam mais perto.

    — Que droga… — sussurrou.

    Os raios quase invisíveis do sol iluminaram seu rosto por um momento como se a estrela pudesse sentir alguma pena da situação.

    — Só mais um pouco, corpo, aguente mais um pouco.

    Moveu a perna esquerda cerrando os dentes para conter a dor.

    — Talvez você não consiga escutar a minha prece estando tão longe. — Moveu a perna direita. — Mas eu preciso tentar mesmo assim…

    Percebendo a ação do inimigo, os lamentadores começaram a correr em sua direção.

    — Me permita salvar essa garota, Deus Sem Face. — Se colocou sobre as duas pernas trêmulas. — Mesmo que custe a minha vida, me permita acertar dessa vez. Não posso ter matado todas essas pessoas por nada.

    Levantou os olhos para os tímidos raios de sol.

    — Deixe sua força fluir através de mim mais uma vez!

    Boyak agitou o punho dolorido e se preparou para o golpe.

    Era tudo ou nada.

    Nota