Quando todos estavam saindo do teatro, um grupo de quatro soldados se aproximou de Boyak e Thayala para conversarem e pediram o afastamento das outras pessoas.

    Anayê reconheceu um dos guardas, era o tal Fineias que havia levado Thayala para falar com o rei anteriormente. E um homem vestido elegantemente, com pulseiras e brincos, careca, de baixa estatura.

    — Perdoe por incomodá-los novamente — o homem falou com voz tranquila. — Eu me chamo Oscari, sou um dos conselheiros do rei Berull e trago a saudação do monarca para vocês, ceifadores.

    Oscari fez uma mesura e continuou:

    — Mas as notícias se espalham rápido e ficamos sabendo da queda da torre do maquinário. — Lançou um olhar desconfiado para Boyak.

    O ceifador tentava manter uma postura altiva, embora se sentisse bastante cansado.

    — E o rei Berull, embora feliz pela libertação de tantos escravos, também entende o perigo da admissão do ceifador responsável pelo incidente com a torre.

    Thayala franziu o cenho, pronta para responder.

    — Sabemos o quanto Astaroth é perigoso e, para manter a segurança…

    — Pare com esses floreios — Thayala interrompeu deixando o conselheiro surpreso. — Vá direto ao ponto.

    Oscari assentiu e voltou a sua pose de nobre.

    — Para manter a segurança do povo e a paz na fronteira, o rei Berull pede a retirada do ceifador Boyak da cidade neutra.

    Thayala soltou uma risada sarcástica.

    — Vocês são mesmo engraçados — ela disse.

    O conselheiro alternava entre intimidação e surpresa com as atitudes da mulher.

    — Por acaso, o rei Berull já esqueceu do grifo de duas cabeças? — o tom de voz aumentando. — Inclusive, você, sir Oscari, estava aqui e viu em primeira mão o quanto suas armaduras e armas funcionaram. — Fez uma pausa dramática. —  Nem mesmo o cristal abençoado da cidade foi capaz de impedir a besta.

    Oscari engoliu seco. Lutou para não deixar as pernas tremerem.

    — Fomos nós quem derrotamos o monstro — Thayala continuou. — Esse é o agradecimento do rei?

    — Exatamente por isso os libertos poderão ficar — Oscari respondeu rapidamente. — O rei só pede a retirada do ceifador responsável pela queda do maquinário. Entendam… é para a proteção do povo desta cidade.

    Thayala estava pronta para falar, mas foi impedida por Boyak.

    — Está tudo bem — ele falou. — Eu vou embora.

    Ela fitou-o como se tivesse blasfemado contra o Deus sem face.

    — Desejo apenas que os libertos sejam bem tratados.

    — Será feito — garantiu Oscari fazendo uma mesura.

    — O que você está fazendo? — Thayala perguntou.

    — Quero ver o mestre — ele respondeu. — Preciso subir no Sinai.

    Ela ficou desarmada por um momento, e então assentiu.

    — O rei Berull ficará satisfeito em providenciar uma carruagem para levá-lo a qualquer local dos reinos livres.

    — Isso será ótimo, careca — disse Boyak voltando a sua personalidade costumeira. — Irei para as colinas verdes. Também seria ótimo se o rei providenciasse comida, pois estou morrendo de fome.

    — Ah, com certeza — garantiu Oscari.

    — Grande negócio.

    Depois de explicar que a carruagem ficaria esperando na entrada da cidade, Oscari se despediu, um pouco intimidado quando cumprimentou Thayala.

    Os libertos, mais afastados, se aproximaram assim que os soldados se foram.

    — Está tudo bem? — Anayê questionou com os olhos emanando preocupação.

    — Sim, acabei de ganhar uma carona — Boyak respondeu colocando as mãos atrás da cabeça.

    — Para onde?

    — Colinas verdes, a moradia do meu mestre.

    — Você vai nos deixar?

    Ela não percebeu o quanto a intensidade de sua voz demonstrava sua carência.

    — Sei que vocês me amam, mas eu preciso concluir meu repouso e conseguir mais frascos de oração.

    As pessoas ficaram um pouco confusas e preocupadas, mas o ceifador fez questão de acalmá-las ressaltando como estavam livres e poderiam seguir seus próprios caminhos.

    — Há outras pessoas para serem salvas, por isso, temos de nos preparar e continuar nosso caminho — ele falou. — Voltaremos a nos encontrar por aí.

    — O rei também prometeu tratar bem a todos — Thayala emendou. — Vocês terão trabalho, se quiserem, e serão iguais a qualquer pessoa de Skell. Não são mais escravos e não precisam mais ter medo.

    Alguns assentiram, outros sorriram e houve aqueles que se emocionaram. Era um grande momento. Ficaria marcado na memória de muitos, com Boyak e Thayala no topo da escadaria do prédio do registro rodeados por pessoas libertas.

    Especialmente na mente de Anayê, a cena teve um efeito poderoso. Causou não só arrepios, mas um emaranhado de pensamentos. Ela se via como escrava e agora livre. Contudo, tudo isso só havia sido possível com a intervenção dos ceifadores. E a certeza desses dois fatos mexiam com seu poder de decisão.

    Sim, ela queria ser uma arquiteta, e enxergava uma possibilidade verdadeira de conseguir. Porém, dentro de si, imaginava outras pessoas escravas de aberrações, outras crianças atacadas e levadas para uma vida de tormento. E essa ideia transformava o sonho de construir prédios bonitos em pó, porque Anayê não conseguiria dormir em paz se lembrasse dessas pessoas em escravidão.

    Ela não desejava cruzar os braços e fingir que tudo estava bem.

    Mesmo assim, naquele momento, ficou calada e pensativa.

    As pessoas acompanharam Boyak e Thayala até a entrada da cidade. Quem olhasse para eles, imaginaria uma espécie de procissão aos antigos deuses de Skell, antes da guerra que a tornara em uma cidade plural. 

    Na entrada, muitos vieram e abraçaram os dois. Trouxeram agradecimentos, lágrimas e sorrisos.

    E enquanto o ceifador observava aqueles rostos de gratidão e alegria, sentia um imenso calor em seu peito, um sentimento acolhedor e contagiante, a satisfação pelo trabalho bem feito.

    Entretanto, ele não havia obtido seu objetivo: desestabilizar o reino de Astaroth, todavia conquistara a liberdade para aqueles seres humanos. Isso fizera tudo valer a pena. Faria tudo de novo, se pudesse.

    Na verdade, seu plano era repetir o plano em uma dose ainda maior. Mas, para tal feito, carecia de uma precisão perfeita no uso da oração.

    Quando saíra das colinas verdes rumo à fortaleza de Astaroth, Boyak pensava que a quantidade de frascos de oração definiria sua vitória. Reunira sete deles. Usou dois para passar pelo reino sombrio até o lar da aberração sem ser detectado. Já na fortaleza, tomou cinco frascos de uma vez – um recorde para ele – para derrubar a torre do maquinário.

    Com a construção destruída, partiu para a torre principal onde se encontrava o lorde sombrio. Munido de um poder inacreditável, se sentindo invencível, pronto para derrotar Astaroth. E foi essa a sua ruína. Apenas com um movimento de mão, o lorde sombrio o derrotara.

    O ceifador acreditava que os responsáveis pela sua sobrevivência foram os frascos de oração e a sua derrota causada pela sua imprudência.

    Quase resultando na sua morte e de Anayê nas ruínas da lamentação.

    Para obter vitória, necessitava de mais proficiência no uso da oração.

    Anayê se aproximou sentindo as pernas estremecerem. Como podia ter se afeiçoado de maneira tão forte a alguém conhecido há pouco?

    Porque você é fraca, diria seu irmão.

    Porém, para ela, havia uma espécie de propósito em seu encontro com o ceifador, um destino.

    Boyak ofereceu mais um de seus sorrisos.

    — Garota violeta, fico feliz por te ver bem. Em breve, espero passar por aqui e poder admirar um de seus prédios.

    Estendeu a mão. Anayê hesitou por um instante e então disse:

    — Vou com vocês.

    Thayala estreitou os olhos.

    — Hã? — o ceifador ficou sem entender.

    Anayê reuniu toda a coragem restante e continuou:

    — Fiquei pensando bastante sobre isso. As coisas que vocês fazem ajudam as pessoas. Devolve uma vida para elas — pausou por um momento. — Quero ir com vocês, quero aprender com vocês, quero me tornar uma ceifadora.

    Nota