Capítulo 35 – Colinas Verdes
por NaorO choro de Anayê foi diminuindo aos poucos até cessar por completo e ela se afastar de Thayala.
A ceifadora passou a mão em seu rosto para enxugar as últimas lágrimas.
— Você… você precisa ajudar o Boyak — a garota apontou para o corpo do ceifador.
Thayala assentiu e se aproximou dele. Retirou um frasco de fluido de oração da blusa, molhou a ponta dos dedos e passou nos hematomas e machucados, inclusive no rosto inchado.
— Você está sempre passando dos limites — murmurou.
Uma pergunta perversa atravessou sua mente: e quando todo o limite possível do corpo for quebrado?
Ela estremeceu de leve.
No fundo, vivia dizendo a si mesma que Boyak sabia o quanto estava se arriscando, porém, não tinha certeza disso.
Às vezes, era como se ele apenas agisse por instinto, e não o mais básico de sobrevivência, mas o de salvar os outros.
Parte disso, ele herdara de seu trauma de alguns anos, onde perdera a família. Ela só não compreendia o quanto esse trauma influenciava nas atitudes dele.
Pegou o corpo do ceifador e colocou nos ombros. Percebeu que Anayê estava parada diante do corpo inerte do invocador.
Provavelmente, Rom estava morto. Thayala não ia lamentar por isso, há tempos aquele invocador era poupado pela bondade de Boyak e essa benevolência quase levara a morte.
Mas a ceifadora estava realmente preocupada com o efeito disso na mente da garota. Será que essa experiência de violência tinha mexido com sua cabeça?
Poder revidar de forma tão brutal era uma coisa perigosa para alguém depois de tanto tempo de cativeiro.
— Vamos? — Thayala tocou o ombro dela.
Anayê concordou, com os grandes olhos roxos cheios de dúvidas perguntando sobre o destino de Rom.
A ceifadora não queria resgatar o responsável por todos aqueles problemas, porém, ainda pior seria deixar aquela morte na conta de Anayê.
— Ele vai sobreviver — ela disse com a voz mais firme e autoritária possível.
Imediatamente, o semblante da garota se encheu de alívio. Vislumbrar essa cena fez Thayala se sentir péssima. Era óbvio que se Rom não recebesse cuidados logo, ele morreria. Porém, era mais fácil mentir do que resgatá-lo. Ele era um invocador, um inimigo dos povos livres, um causador de problemas e mortes. Não havia razão para salvá-lo.
O peso vinha da confiança da menina de olhos violeta. Ela não questionara ou duvidara da palavra de Thayala. Ela apenas tinha acreditado. Ao mesmo tempo em que isso deixava a ceifadora feliz, também fazia emergir um sentimento de responsabilidade muito pesado. Era nítido o quanto a influência de Boyak havia afetado o senso de confiança da garota e o quanto aquilo iria pesar sobre os ombros dos ceifadores.
Naquele momento, entretanto, Thayala resolveu guardar para si os pensamentos. Não estava na hora de discutir as nuances da relação salvador e escrava.
— Então vamos.
E as duas começaram a caminhar, atravessando todo o descampado na direção da grande montanha que se erguia imponente e silenciosa.
Quando os primeiros raios de sol despontaram no horizonte, elas já estavam no pé da colina e haviam reencontrado a estrada.
Ali, próximo de uma fonte de água gelada e límpida, fizeram uma pausa para descansar e comer. Thayala conseguiu caçar dois esquilos que foram consumidos rapidamente.
Mais uma vez, a ceifadora usou fluido de oração nas feridas de Boyak, porém, aos olhos de Anayê não estavam surtindo efeito.
— Isso está bem ruim — ela falou quando Thayala passava a ponta dos dedos em um dos ferimentos.
A ceifadora assentiu e comentou:
— É como eu disse antes, ele esgotou toda a possibilidade de seu corpo. Usou seu poder de modo irresponsável, mesmo por boa causa. O fluido está apenas retardando o efeito do ferimento, mas ele terá que lidar com isso da maneira mais dolorida. Vai precisar esperar seu corpo se recuperar sozinho. Infelizmente, assim são as coisas.
Thayala se levantou e pegou-o no colo.
— Agora devemos ir. Já estamos bem perto.
E assim continuaram a jornada.
Subiram por muito tempo em silêncio. E, por mais longa que a subida fosse, Anayê não se sentia exausta. Talvez devido à euforia de finalmente encontrar um lugar ou porque iniciaria uma nova fase em sua vida.
O sol estava a pino quando ela enxergou um grande casarão feito de blocos e madeira ocupando um espaço imenso do terreno. Grandes janelas adornadas com enfeites feitos de plantas, ostras e pedrinhas brancas se destacavam na construção.
Outra cena igualmente relevante chamou a atenção de Anayê, pois um grupo de crianças estava sentado de pernas de cruzadas com uma folha de papiro e pincel nas mãos. Eles recitavam e escreviam uma espécie de verso que ela não sabia, mas era parte do credo dos ceifadores.
À frente das crianças, sentado em uma cadeira de balanço, mascando uma folha de hortelã e usando um longo manto esverdeado, estava um velho com grandes sobrancelhas brancas, queixo afinado e calvo.
Imediatamente após a chegada, as crianças pararam de recitar e olharam para elas com olhos curiosos que se tornaram olhares alegres ao verem Boyak e Thayala.
— Thayala! — uma garotinha de cabelos loiros e olhos azuis bradou.
— E Boyak! — outro apontou.
E, de repente, toda aquela imagem de quietude e organização se transformou em um monte de crianças ao redor das duas com uma tempestade de perguntas.
— Ainda bem que você voltou!
— O que aconteceu com ele?
— Você enfrentou alguma aberração?
— Boyak tá doente?
— Quem é a sua amiga?
— Ele vai ficar bem?
— Por que você está carregando ele no colo?
A garotinha loira pegou uma das mechas do cabelo de Anayê enquanto outra menina negra mais nova e mais baixa não parava de fitar seus olhos roxos.
— Crianças!
Uma voz se destacou acima das outras e impôs o devido silêncio imediatamente.
— Por favor — Era o velho na cadeira falando. — Deixem Thayala passar com Boyak e depois ela nos contará tudo e nos apresentará a sua convidada.
Uma passagem se formou no meio daquela criançada e Thayala assentiu enquanto passava acompanhada por Anayê.
As duas entraram no casarão.
O primeiro cômodo era um salão com vários assentos feitos de peles de animais e estrados. Logo em seguida havia uma cozinha de tamanho médio e depois alguns quartos.
Thayala deixou o corpo do ceifador em um deles para repousar em uma cama.
— Venha, devemos falar com o mestre — ela disse para Anayê.
Elas voltaram para fora onde as crianças haviam retornado às suas atividades com papiro e pincel.
Thayala caminhou até um poço do lado esquerdo do casarão e retirou um pouco de água para Anayê e para si.
Depois se aproximou do velho na cadeira de balanço, mas antes de falar, ele levantou a mão e disse:
— Sei que está ansiosa para me contar sobre Boyak e sua jornada, Thayala. Mas por que não me apresenta nossa convidada?
— Perdoe-me, mestre. — Ela abaixou a cabeça em sinal de desculpas. — Esta é a Anayê, uma fugitiva da fortaleza de Astaroth.
— Seja bem vinda, Anayê — o mestre cumprimentou de forma receptiva. — Eu sou o mestre das Colinas Verdes.
— Obrigada, é uma imensa alegria estar aqui.
— Oh, não, minha querida, a alegria é nossa, pois hoje você é a convidada de honra.
— Eu?
Ela acabou falando alto, mas era apenas para ser um pensamento.
— Sim, para nós é uma honra ter você aqui.
Aquilo, de certa forma, não entrou na cabeça dela. O que significava ser tratado com honra ali?
— É uma alegria para os Três Que São Um recebê-la nesse lugar, e se é para eles, então com certeza é para mim, pois sou o anfitrião deste templo sagrado, o santuário das Colinas Verdes.
Eram muitas informações e a mente de Anayê estava navegando em perguntas.
— Sei dos seus muitos questionamentos e terei prazer em respondê-los no tempo certo. Por hora, Thayala vai te mostrar a sala de banho e providenciará algumas roupas novas. Depois, você poderá se juntar a nós no jantar.
Banho? Roupas novas? Assim de graça? Anayê fez questão de manter as perguntas apenas na cabeça dessa vez e somente assentiu e agradeceu ao mestre.
— Não agradeça a mim, isso vem dos Três Que São Um. Quando encontrá-lo, você poderá agradecer.
Ela meneou a cabeça, ainda sem entender direito.
— Venha, Anayê — Thayala chamou.
E assim Anayê havia chegado oficialmente ao seu destino, saindo desde a terrível fortaleza de Astaroth até as Colinas Verdes.