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    Capítulo 015 – Engenhocas mortas! ‎ ‎ ‎

    Numa das salas do Laboratório das Maravilhas, o ambiente evocava uma mistura de curiosidade e mistério. Solomúrius se encontrava no meio do cômodo, ele terminava de montar uma peça móvel com alguns pedaços de madeira presos em ferro frio, assim que completa. Ele mostra aos alunos que estavam presentes.

    — Isso, meus queridos, com propriedades mágicas certas, pode virar tanto uma relíquia quanto uma prótese, alguns detalhes adicionais e podemos fazer uma mão, ou um pé… Será ótima alternativa para substituir membros mutilados!

    — Incrível! — Um dos alunos ao fundo respondia com entusiasmo.

    — Para manter as partes móveis, eu acredito que você busque lubrificar esses contatos de alguma forma, não é? Professor. — Um dos garotos da frente levantara a mão e ergueu uma importante questão.

    Diversos murmúrios escutaram-se a seguir, batiam nas paredes que exibiam esquemas complexos e anagramas gravados em madeira e retornavam diretamente para os ouvidos do velho Gambiarra, que sorriu.

    — Ah, claro que sim! O óleo é essencial, podemos extraí-lo da oliva e triturar um pouco de carvão para conseguirmos uma maior viscosidade.

    Solomúrius balançava a prótese que havia feito, demonstrando que, com os movimentos mais pesados, ao longe era possível escutar o som do líquido auxiliando as partes que se moviam.

    — Preciso que vocês não se esqueçam de que engenhocas eventualmente irão quebrar. Principalmente peças que exigem contato, atrito. Não são eternas, é para isso que precisamos estar sempre construindo mais. — O velho continuava.

    Ele então entregou essa peça para um dos seus alunos, que abrira um enorme sorriso — Guardarei para o senhor, professor! — Dissera enquanto se encaminhava para uma das estantes de madeira protegida por uma fina película de vidro, como uma expositora. Ele deixou a peça repousar lá.

    — Dispensados, meus alunos, a aula está encerrada.

    Assim que todos os alunos se retiraram, Solomúrius pegou alguns panos e começou a limpar a sua mesa, que estava repleta de algumas sujeiras que sempre atingem essa madeira quando ele precisava construir algo. Ele observava as crianças se afastarem com um sorriso, nada alimentava mais a felicidade do velho relicário do que instigar a curiosidade em seus aprendizes, ele mal podia esperar quando eles começariam a montar algo por conta própria.

    Aldmond adentrou na sala assim que as crianças saíram, ele era tio de uma delas, convenceu o seu irmão a matricular a pequena por achar que seria o melhor para ela. E estava certo, desde que a pequena começou as aulas com o Gambiarra, havia se tornado uma garota mais criativa e educada.

    — Bom dia, não o vi na sua aula mais cedo. — O velho relicário lembrava de todos os rostos do laboratório, mesmo que fossem mais de duzentos alunos.

    — Me desculpe, professor… Acabei dormindo muito e acordei tarde demais.

    — Amanhã não falte. — Solomúrius terminava de limpar tudo, lavava as suas mãos afogando-as em uma bacia de madeira que ficava em cima de uma das mesas.

    — Na verdade, professor… Sinto que preciso de alguma aventura.

    — Aventura?

    Isso era novo, os relicários sempre se dedicaram como cientistas, os inteligentes que viviam nas sombras construindo os equipamentos para os verdadeiros aventureiros se arriscarem, mas o velho reconheceu o fogo da jovialidade nos olhos verdes de Aldmond.

    — Sim, professor. Quero fazer algo que seja ficar sentado nestas cadeiras aprendendo a fazer próteses! — Ele pensou direito. — Sem ofensas, claro.

    — Eu entendo, garoto.

    E então o Gambiarra riu, demonstrando sua idade, continuando a falar, dessa vez encarando diretamente o seu aluno.

    — Gostava muito de me aventurar quando eu era mais novo, mas vamos lembrar que você acabou de completar a sua segunda década de vida, é tão jovem comparado a mim do que aquelas crianças da aula que acabei de encerrar. Não vá para lugares tão perigosos.

    — Não se preocupe, professor, eu já sei o suficiente para não correr diretamente para a morte, ainda assim… Apareci aqui para perguntar se existe alguma coisa que o senhor queira, talvez fora do reino, eu posso buscar para o senhor. E sanar essa sede por aventura!

    As roupas surradas de Aldmond indicavam um passado árduo no laboratório.
    Seu cabelo preto bagunçado e seu olho fundo com olheiras indicavam que talvez ele mal estivesse dormindo, ainda assim ele sorria, e isso alimentava o coração do velho, que via naquele jovem, um pequeno fragmento do que um dia ele já havia sido.

    Os protótipos estavam espalhados por toda parte e eles reluziam sob a luz das tochas, dando vida às relíquias.

    — Na verdade, há algo que eu desejo. Aloe vera.

    — Aloe o quê? — indagou o aluno, confuso.

    — É uma planta suculenta. A seiva dela é algo que eu gostaria de estudar, existem algumas propriedades que eu já conheço a partir do conhecimento popular, mas não consigo ter certeza do quão poderíamos aproveitar dela.

    — Ora, sem problemas. Consigo para você, onde tem?

    — Eu soube que elas podem ser encontradas em certa abundância no bosque que fica ao sul daqui, mas preciso que você tome um pouco de cuidado, sabe as histórias, não sabe?

    — Pode ter certeza de que sim, professor, perfeitamente. — Logo caiu na boca do povo todo sobre o que Kord e Claude haviam visualizado no bosque: goblins.
    — Por isso, acredito que, caso realmente deseje fazer isso para mim, leve alguém consigo. Eu não consigo nomear mais nenhum relicário que talvez se interesse por perigo dessa forma, tal qual você. Talvez algum guarda? — A preocupação de Solomúrius era genuína.

    — Conheço alguém. Deve estar na taverna assim que anoitecer… Se estiver tudo bem com você, eu agirei junto de um necromante. — Aldmond deixara sua voz um tom mais baixo.

    — Ah, sem problema algum.

    Solomúrius não carregava preconceitos em seu peito. Diferente de boa parte da população, ele não via os necromantes como inferiores. Inclusive se alegrou ao saber da construção do Mausoléu do Sofrimento, essa tal de Kassandra era uma jovem deveras promissora.


    Aldmond alcançou a Melusina assim que o sol apagou. Ele andava à procura do seu conhecido.

    Enquanto vasculhava, subia-lhe o odor de cerveja, que lhe causava sede. Embora fosse possível escutar a música de um alaúde que soava no fundo, o ritmo dessa noite era lento e parecia estar refletindo a melancolia que atingia a taverna. Depois de um bom tempo, o local não estava tão cheio quanto costumava.

    O ponto de festa e bebida mais conhecido do reino estava com as suas portas abertas escancaradas, como se quisesse indicar que qualquer um poderia adentrar. Mas não que alguém tenha realmente feito.

    Saia de um dos banheiros, um homem com mantos escuros, cabelo raspado e pele bronzeada, ele era alto e por mais que suas vestes indicasse ser um homem maligno ou de poucas palavras, fora perceptível o quanto ele riu assim que esquivara de um bêbado que resmungava em um canto.

    Era Phellege, um dos aprendizes de Kassandra e amigo justamente de Aldmond por frequentarem juntos a taverna em noites mais animadas que essa. Assim que ele reparou na existência do seu colega relicário, ele caminhou gentilmente até o balcão onde o estudante de engenhocas repousava os cotovelos.

    — Companheiro, aceitas um hidromel, quem sabe até um pouco de suor de sereia?

    — Boa noite, Phellege. Sabe que eu não recuso bebida.

    O necromante então se apoiou para frente, naquele balcão de madeira polida, cujo estava mais limpo do que o habitual, pois hoje, o taverneiro tivera tempo de sobra para esfregar. Duas cervejas e a dupla seguiu para uma das mesas que ficavam no centro do salão, onde geralmente ocorreria briga para conquistá-la, agora, bem acessível e vazia.

    Assim que se acomodaram, escutaram o rangido fino das cadeiras que ecoava no ambiente quase silencioso.

    — E como anda o Mausoléu? — Aldmond preferiu quebrar o gelo antes.

    — Primoroso, meu amigo. Os zumbis que a senhora Kassandra reergueu estão trabalhando com muita vontade, em um mês de construção e está quase tudo feito.

    O relicário brincava com a larga caneca de madeira enquanto escutava sobre.

    — Esplêndido!

    Um silêncio encontrou a dupla, por mais que eles trocassem olhares que demonstravam claramente que haveria mais coisas a serem debatidas, mas nada tão superficial quanto a anterior, talvez Aldmond estivesse até suando.

    Em mais um gole, o homem dos trajes negros instigou.

    — Sei que não é sobre isso que queira conversar comigo, eu te conheço para saber que não viria para a taverna no meio da semana para me ver se não tivesse um assunto sério, vamos. Abra a boca. — O necromante era bem direto quando desejava.

    — Não é nada muito grande, na verdade. O velho Solomúrius deseja algumas porções de aloe vera, que fica no sul. O bosque.

    A música acabara, os poucos gatos-pingados olharam diretamente para a mulher de mechas de cabelo rosa guardando seu alaúde. Gwendolyn passou mesa a mesa com uma bolsa de couro aberta, pegando as moedas pela apresentação de hoje, não lucrou quase nada. Bufando um pouco chateada, ela rumou para a praça central, quem sabe não teria um pouco mais de sorte por lá?

    — Escutei um pouco sobre esse lugar, é justamente o bosque que todos que adentram, nunca saem? — indagou o homem do mausoléu.

    — Esse mesmo, ele me alertou dos perigos e me fez jurar que eu não iria sozinho.

    — Já sei onde quer chegar com isso, minha resposta é não. — Dissera o homem do cabelo raspado enquanto tomava um longo gole.

    — Phellege?

    — Estou brincando com você, cara. Um companheiro que bebe comigo merece receber minha ajuda em assuntos mais sérios também, me diga quando. E iremos. — Phellege ria, encarando seu amigo.

    — Obrigado, meu irmão.

    Alguma pessoa ou outra passava agora pela porta entalhadas das fadas, ainda não encheu o suficiente para dizer que parecia a boa e velha Melusina de sempre, mas agora, perto do meio da noite, mais clientes se aproximaram das cadeiras e balcões para o sorriso do taverneiro.

    Não era comum, alguma coisa estava mexendo com o ânimo das pessoas e ninguém ali conseguiria dizer o que é, por mais que fosse no meio da semana, após um longo dia de trabalho era nessa taverna que as pessoas buscavam se desligar da realidade. Principalmente agora que todas as contas seriam pagas pelo imperador. Álcool gratuito, quem negaria?

    Cúmplices, preparando-se psicologicamente para entrar em um bosque que ninguém aprendeu a sair, Aldmond e Phellege erguiam os canecos e batiam um brinde, um relicário e um necromante. O início de uma parceria interessante e curiosa.


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