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    Boyak fitou os olhos arregalados do barão. Enxergou uma insanidade tão profunda que sentiu seus dedos ficando dormentes. Já não era o homem com quem viajara, nem mesmo o pai da menina assassinada, era apenas um louco.

    Mas a sua intuição insistia que havia algo a mais, algo tão camuflado na amargura do barão que o ceifador não conseguia detectar.

    Mesmo assim, ignorando seus instintos, tomou uma das atitudes mais difíceis de sua vida. Virou nos calcanhares e se aproximou do cavalo.

    — Covarde! É isso? É essa a justiça que dará para sua filha?

    Suas mãos estavam tremendo quando segurou a crina do animal para montar.

    — Não! Você não pode deixar isso pela metade!

    Assim que montou no cavalo, viu o barão aos seus pés com os olhos cheios de lágrimas. Sua roupa estava completamente molhada e suja com um aspecto de quem não se aproximava de um banho há muitos dias.

    — Faça a sua filha se orgulhar, ceifador. Vamos, você precisa me matar!

    Boyak ignorou o comentário. Fez um gesto e o cavalo começou a trotar para fora do vilarejo.

    — Ela implorou, Boyak! Quando finalmente viu que iria morrer nas mãos de um monstro, ela implorou com fervor por sua ajuda!

    O cavalo parou ao comando do ceifador.

    — Ela clamou com tanta intensidade e certeza… Aquela confiança que apenas os filhos têm nos pais…

    O peito de Boyak começou a doer. Todas as feridas e ataques de toda uma vida nem se comparavam.

    — Ela acreditava que você iria aparecer para salvá-la, afinal, seu pai já tinha salvado tantos, não é mesmo? Mas quando as minhas garras atingiram seu peito pela primeira vez e ela caiu no chão, seu fervor evaporou junto com sua confiança.

    O ceifador desferiu um chute que derrubou o barão no chão. Em seguida, saltou do cavalo e se abaixou ao lado dele na lama. 

    O sorriso no rosto de Jutred fez as entranhas de Boyak se remexerem.

    — Faça, vamos faça, faça agora.

    As mãos do ceifador fechadas num punho não paravam de tremer.

    — O que está esperando?! Fui eu quem causei toda essa dor que você está sentindo agora. Basta um golpe e terminará. Você precisa fazer isso por aquela garotinha de vestido azul e laço amarelo no cabelo.

    — Eu farei isso por ela — ele engoliu a saliva. — E pela sua filha também.

    Então, agarrou um frasco de fluido que sempre deixava guardado nas mangas da blusa, abriu, molhou a ponta dos dedos e cravou a mão na testa do barão.

    Imediatamente, Jutred soltou um grito horrendo que se misturou à canção emitida pelos brados dos trovões. Seu berro deixou todos ao redor cheios de espanto e medo.

    Uma fumaça cinzenta começou a escapar da boca do barão, depois dos ouvidos e, finalmente, dos olhos.

    Enfim, Boyak se afastou do corpo de Jutred enquanto assistia a fumaça adquirir uma forma humana, uma cópia bizarra do barão. Suas feições eram semelhantes, mas seu olhos eram um imenso vazio.

    O verdadeiro Jutred também observava a cena, paralisado.

    — Um demônio… — Boyak murmurou em choque.

    — Incrível poder de dedução, Boyak — a criatura elogiou. — Permita-me apresentar, sou Aruyo, o demônio do remorso.

    O ceifador já ouvira falar dessas aberrações sinistras, consideradas uma evolução dos monstros comuns. Os demônios se alimentavam de sentimentos negativos e, em muitos casos, amplificavam essas emoções, mantendo as vítimas presas àquele estado de angústia.

    — Então foi você quem matou a minha filha — Boyak afirmou.

    Algumas pessoas ao redor haviam corrido diante da cena. Com tantos relâmpagos misturados com a noite escura e a manifestação da criatura, o cenário era macabro.

    Aruyo levantou o dedo e gesticulou um não.

    — Eu não matei a sua filha — revelou. — Foi ele.

    Apontou para o barão, ainda no chão. Boyak desviou o olhar para Jutred e percebeu que ele ria. Suas gargalhadas eram perturbadoras, fora de lugar, como se ecoassem de um abismo distante.

    — Você é mesmo um tolo — Jutred falou.

    — Eu apenas dei um empurrãozinho — Aruyo assumiu com certo orgulho na voz.

    — O que… você fez? — Boyak balbuciou sem acreditar.

    — Se Deus não me deu a minha vingança, então Astaroth e seus demônios sim.

    O ceifador começou a chorar. Sua mente se recusava a acreditar que o barão tinha se unido a Astaroth, e pior, se deixara ser usado como ferramenta para assassinar Isabela.

    — Oh, sinto muito por sua perda, querido — Aruyo disse. — Não foi pessoal. Jutred precisava de um consolo. Achei que…

    — Cala a boca! — o ceifador vociferou.

    Imediatamente, engoliu todo o conteúdo do frasco em suas mãos e sentiu o poder percorrendo seu corpo.

    — Você é mesmo corajoso, Boyak. Quer me destruir? Tudo bem, eu entendo. Mas e quanto ao Deus sem face? Ele abandonou a sua filha no momento mais difícil. Você também pretende enfrentá-lo? O que vai fazer a esse respeito?

    — Isso não é da sua conta!

    O punho do ceifador se iluminou.

    Quando um trovão apareceu no céu, Boyak avançou com toda a velocidade do seu corpo na direção de Aruyo. O demônio, no entanto, permanecia parado com um sorriso orgulhoso no rosto.

    E, de repente, Jutred foi puxado para frente de Aruyo.

    O punho de Boyak teria atingido-o por completo, não fosse um desvio executado pelo ceifador no último momento. Mesmo assim, Jutred foi lançado para o lado com imensa ferocidade.

    Ao mesmo tempo, Aruyo invocou uma espada com uma lâmina cinzenta e desferiu um golpe contra seu rival.

    A lâmina ultrapassou o peito de Boyak.

    — Pobre ceifador, quanto remorso existe dentro desse peito — Aruyo falou.

    Boyak tentou retrucar, mas sentiu o gosto do sangue na boca.

    — Nunca me alimentei de um ceifador antes, nem de um com tanto remorso e culpa guardados. Ah! Esse cheiro é maravilhoso!

    Nos olhos vazios do demônio, Boyak enxergou um brilho amarelado de cor opaca.

    — Com todo esse remorso, imagine quão poderoso eu me tornaria!

    Mas, de repente, impelido por seus instintos, o ceifador sentiu o poder do fluido de oração ainda em seu corpo.

    Era o bastante para uma segunda tentativa.

    Ele se preparou concentrando a sua energia no punho, mas sentiu tudo se esvair quando Aruyo mexeu com a espada fazendo uma dor aguda despontar na sua cabeça.

    — Não, meu pobre garoto, você deve se lembrar da sua criança. Ela merece ser lembrada, não é? — o demônio emitia um tom de voz tranquilo. — Ainda tenho em minha mente seus queridos olhinhos poucos instantes antes do fim, gostaria de ver?

    Assim que a pergunta foi feita, Boyak ouviu. E reconheceu de imediato o som daquele choro. Era Isabela. Durante os dias passados nas Colinas Verdes, ele lutara para lembrar o tom da voz da filha, e percebera o quanto isso lhe parecia difícil. Então, ouvir novamente o som do choro de Isabela foi como uma música — uma canção, sim, mas de dor e amargura.

    Em seguida, enxergou os olhos dela. Caramelos, como os da mãe, agora povoados de lágrimas. O rostinho, sujo e marcado por um hematoma, e o cabelo, um emaranhado de bagunça.

    — Pai?
    Todo o corpo do ceifador estremeceu. Seu estômago doeu, seu coração acelerou, sua respiração ficou descontrolada.

    — Pai, por que você não me salvou? — ela perguntou chorando.

    Boyak quis segurá-la. Aconchegá-la em seus braços num abraço forte. Enxugar suas lágrimas e limpar seu rosto.

    Desejou aquilo mais do que tudo na sua vida. E voltaria a desejar muitas vezes depois disso.

    — Eu não consegui — ele falou entre lágrimas de desespero. — Me desculpe, eu não consegui!

    É muito bom ter você aqui!
    Espero que esteja curtindo a jornada de Boyak e Anayê.

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