Capítulo 78: Vida e Vingança
Dante sorriu ao ver o que sua força tinha criado. Não importava quanto tempo se passasse, sempre que utilizava seu poder, lembrava do seu pai. Nos dias mais tranquilos no vilarejo, enquanto o vento era frio, mas reconfortante.
A lembrança era sólida, um alicerce que o mantinha firme, mesmo em meio ao caos. Mas essa conexão, ao mesmo tempo que lhe dava forças, também cobrava seu preço.
E Vick, como a bela IA que era, anunciou em sua mente:
“Níveis de uso excedem o limite. Dano corporal aumentando. Uso indevido da Energia Cósmica. Uso excessivo da massa muscular. Reiniciando sistema, tempo de espera: indeterminado”.
Ele sentiu o impacto das palavras. Um calor latejante subia por seus braços, o corpo reclamando da energia colossal que ele havia canalizado. O sorriso não desapareceu, mas ficou mais contido, quase resignado. Ele sabia que havia ultrapassado os limites novamente, mas era isso que fazia. Sempre.
Indeterminado, pensou, repetindo a última palavra de Vick em sua mente. Mesmo que o sistema o forçasse a parar, o custo nunca importava para ele. Enquanto pudesse proteger, lutar e, talvez, um dia voltar para casa, qualquer preço seria aceitável.
Suas pernas perderam as forças, os braços decaíram e Dante sentiu a cabeça pesar. Quando os olhos não responderam mais, ele perdeu a consciência. Ele caiu para a esquerda, onde não havia mais prédio.
O corpo começou a cair do prédio, em baixa velocidade. Até se chocar contra a neve.
I
Fazia dois dias desde que Mogrot havia perdido a perna. O frio mordia o toco exposto, um lembrete cruel de sua derrota. A outra perna, inútil, estava quebrada em vários pontos, e o braço direito… Bem, ele já não existia mais. O disparo o havia arrancado como se fosse feito de papel.
Ele se arrastava, usando a mão esquerda para se impulsionar. Os dedos calejados e sujos encontravam apoio nos buracos e rachaduras das ruas. Cada puxada para frente era uma tortura, mas parar não era uma opção. Não depois do que havia acontecido.
Mogrot tinha perdido, e de uma forma humilhante. Ele revivia a cena repetidamente em sua mente. O velho de aparência endurecida e a garota dos raios — eles eram fortes, isso ele não podia negar. Mas ele tinha a vantagem, não tinha? Pelo menos, acreditou nisso até o último momento. Foi a rajada, aquela maldita rajada azul, que o atingiu no ar e o fez perder o controle das chamas. A lembrança do impacto ainda queimava sua mente tanto quanto o calor que se dissipou naquele instante.
Ele olhou para o que restava de seu braço direito. Era grotesco, uma massa de carne queimada e ossos expostos. O cheiro ainda o acompanhava, impregnado em suas narinas, misturado ao odor da neve suja e da rua imunda. Sentir raiva era inevitável. Era o que o mantinha vivo.
— Eles vão pagar… — rosnou, os dentes cerrados enquanto cuspia as palavras.
A neve ao seu redor começava a derreter sob o calor que ainda restava em seu corpo.Ele não tinha acabado, não ainda. O velho e a garota não haviam terminado o trabalho, e isso seria o maior erro deles.
— Ora, ora. E pensar que eu veria um verme se rastejar tão longe da merda, não é?
A voz cortou o silêncio da neve como uma lâmina fina e precisa. Mogrot ergueu o rosto com esforço, cada movimento irradiando dor por seu corpo mutilado. O frio parecia zombar dele, cravando seus dentes gelados em suas feridas abertas. E lá estava ela. Arsena Lio.
Ele reconheceu o sorriso nos lábios dela, mais cruel do que qualquer rajada ou golpe que já recebera. Seus cabelos curtos balançavam ao vento, o traje negro pesado parecia absorver a luz ao redor, mas o que mais chamava atenção eram as duas espadas presas em sua cintura. As lâminas ainda estavam embainhadas, mas não era isso que o fazia hesitar. Ele sabia que a verdadeira arma de Arsena não era visível. Ela não roubava apenas suprimentos — roubava vidas, destinos, esperanças.
— Vai me dar uma mão ou ficar rindo da minha desgraça? — Mogrot grunhiu, arrastando o corpo mais um pouco pela neve, cada puxada um tormento. — Preciso ver o Duna. Ele pode… me consertar.
Arsena inclinou-se levemente, observando-o com olhos que pareciam fatiá-lo de cima a baixo.
— Eu posso te dar uma força, sim. — Ela sorriu de maneira perigosa, ajoelhando-se à sua frente, como se examinasse um brinquedo quebrado. — Mas você não estava na cidade de Kappz ontem? Aqui é TreFall. É quase um dia de distância.
Mogrot cerrou os dentes. O simples ato de ouvir o nome “Kappz” fazia o sangue pulsar em sua cabeça, intensificando a dor latejante que o consumia. Ele sentiu o ódio borbulhar em seu peito, a lembrança do velho maldito — aquele miserável que o derrubou com tanta facilidade. Ele podia quase ver a cena novamente: o poder descomunal, a habilidade assustadora e a inteligência afiada. E então veio a garota.
A imagem do braço elétrico gigantesco descendo em sua direção voltou a atormentá-lo. Ele apertou os olhos, tentando afastar a memória. O golpe não tinha sido apenas físico; tinha quebrado algo dentro dele.
— Aquele velho… e a menina… — ele murmurou, quase para si mesmo. — Eles vão pagar por isso. Todos eles.
Arsena arqueou uma sobrancelha, um sorriso malicioso surgindo novamente.
— Interessante. Você tem algo em mente, ou está só despejando ameaças na neve? — A voz dela era como o som de uma lâmina sendo afiada, pronta para cortar. — Talvez eu deva te deixar aqui mesmo. Mas… — Ela pausou, tocando o cabo de uma das espadas de forma distraída. — Você me diverte, Mogrotinho. Vamos ver até onde vai sua sede de vingança.
I
Quando finalmente colocaram Mogrot deitado na mesa de metal frio, o ambiente ao seu redor parecia ainda mais hostil. A oficina de Duna era uma caverna metálica de sucata e engenhocas, com o som constante de máquinas chiando, engrenagens rangendo e faíscas saltando. O cheiro de óleo queimando e metal quente impregnava o ar, misturando-se ao fedor de sangue e queimaduras que emanava de Mogrot.
Acima dele, as caras de Duna e Arsena surgiram como sombras ameaçadoras sob a luz oscilante das lâmpadas velhas. O velho Duna tinha o rosto marcado pelo tempo e de alguma briga que se meteu muitos anos atrás. Uma cicatriz longa e irregular descia da testa até o pescoço, cruzando um dos olhos e que de alguma forma o permitia enxergar normalmente. Havia histórias, rumores de como ele tinha sobrevivido a tantas batalhas, Mogrot não acreditava. Duna sempre foi recluso, e mesmo assim, sua habilidade não era para lutar.
— Sempre me perguntou como você ainda está vivo, velho – resmungou Mogrot, a voz saindo rouca, carregada de sarcasmo.
Duna soltou uma risada seca, característica dele, um som que parecia mais o ranger de metal velho do que humano. Por isso gostava tanto dele.
— Sobreviver não é uma questão de sorte. É questão de utilidade. — Ele inclinou-se, analisando os ferimentos de Mogrot com seus olhos clinicos, ignorando o sangue que ainda escorria de seu braço mutilado. — E você… bom, parece que está aprendendo isso da pior maneira.
Arsena do lado, cruzou os braços, mantendo o sorriso provocador que sempre carregava. Uma mulher tão desagradável que Mogrot, durante o trajeto até ali, preferia morrer do que ter sido ajudado por ela.
— Ele tem consertou, ou é melhor eu jogar fora? — perguntou ela, casualmente.
Ser tratado como lixo não era novidade, mas por ela, era ainda pior.
— Não precisa tratar ele assim, mas sim, ele ainda tem uso. — Duna pegou uma ferramenta estranha ao seu lado, que soltou um som agudo ao ser ligada. — Mas vai doer. Muito.
Mogrot bufou, tentando esconder o desconforto.
— Só faça logo. Não tenho tempo para ficar aqui ouvindo suas piadinhas.
— Nem eu tenho tempo para desperdiçar com você, mas parece que a gente não tem escolha. — Duna começou a trabalhar, a cicatriz em seu rosto contorcendo-se em algo que parecia uma mistura de concentração e desprezo. — Agora, fique quieto e tente não morrer enquanto eu coloco você de volta em pé.
Arsena manteve-se parada, encostada na parede da oficina, os braços cruzados, os olhos fixos em Mogrot. Ela não dizia nada, mas seu olhar carregava um peso desconfortável, como se analisasse cada parte dele, julgando o quanto ainda valia a pena mantê-lo vivo.
Mogrot, por outro lado, não podia esconder o incômodo. Cada vez que Duna mexia nos cotos de seus membros mutilados, conectando fios e ajustando peças metálicas, o corpo dele se contorcia involuntariamente. A dor não era insuportável, mas servia como um lembrete cruel. A cada ajuste, ele se lembrava do golpe que o arrancara do ar, da rajada que destruíram suas defesas e o jogou como um pedaço de lixo.
Sua mente, em um turbilhão, recusava-se a descansar. As imagens de Dante e Juno em Kappz estavam gravadas como ferro quente. Ele podia ver os olhos de Dante, cheios de determinação, e a eletricidade ao redor de Juno, o braço gigantesco feito de pura energia que quase o partira ao meio.
Como eu falhei? Ele se perguntava, repetidamente, tentando traçar novos planos e explorar possibilidades. Pensou em abordagens mais diretas, armadilhas elaboradas, até mesmo em alianças perigosas, mas nada parecia plausível. Não contra eles. Não com o que ele viu naquele dia.
Uma onda de medo atravessou seu corpo, fria e desconfortável. Não era apenas raiva que o consumia; era algo mais profundo, mais primal. Era o reconhecimento de que, mesmo com toda sua força, ele não fora suficiente. E, pela primeira vez em muito tempo, Mogrot sentiu medo.
— Está quieto demais — comentou Arsena, a voz cortando o silêncio.
Mogrot levantou os olhos para ela, seu cenho franzido, mas sem a resposta afiada que costumava ter na ponta da língua. Ela sorriu de canto, percebendo o conflito interno que o atormentava.
— Eu falhei — ele murmurou, mais para si mesmo do que para ela.
Arsena soltou uma risada baixa, cheia de sarcasmo.
— Não diga. Eu não teria notado, com você se arrastando pela neve como um cachorro atropelado.
Ele cerrou os dentes, mas não respondeu. Não tinha forças para isso. Só tinha uma coisa em mente: vingança. Mas agora, com a sombra do medo pairando sobre ele, seria preciso muito mais do que raiva para se erguer novamente.
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