Capítulo 85: No Meio da Tempestade
Dante parou com a espada erguida, vislumbrando o ótimo trabalho de Marcus. Ele tinha uma habilidade bem diferente, recriar objetos a partir de sua origem, e por ter alguma arma enferrujada longe, conseguiu trazer essa de volta em pouco tempo.
A bainha era negra como o céu sem estrelas, enquanto o cabo azul e os fios vermelhos formavam um contraste vibrante, quase agressivo. Dante girou o punho, sentindo o peso da espada se equilibrar entre os dedos, firme e precisa. Cada vez que tocava uma lâmina, sentia-se arrastado de volta ao passado, onde o som de metal contra seus ossos era a trilha sonora de sua infância.
Seu pai, implacável e frio, surgia em sua mente como um espectro que jamais o abandonava. Não havia movimento, erro ou hesitação que Render não corrigisse com um golpe. Cada lembrança trazia o gosto amargo de sangue e suor.
— Está pronta? — A voz de Dante rompeu o silêncio, trazendo-o de volta. Ele encarou Juno, os olhos dela fixos nele, atentos como os de um filhote de tigre prestes a ser solto na selva. — Vou fazer apenas alguns movimentos, para que sinta a pressão e entenda o peso de um golpe em linha. Dessa forma, vai perceber que sua esquiva deve seguir o mesmo princípio.
Juno não desviou o olhar. Seu rosto trazia aquela seriedade quase infantil, o tipo de determinação que parecia vir de um lugar profundo demais para alguém tão jovem.
— Contra o Duas Caras, você ficou exposta demais por não ter onde se apoiar — continuou Dante, a voz firme. — Precisou que sua habilidade fizesse o trabalho pesado. Isso é perigoso.
— Entendi… senhor — murmurou Juno, com um aceno rápido.
— Quando começarmos, você vai desviar, só isso. Vou atacar com a espada ou com as pernas. Nada de raios. Sem habilidades. Quero que seu corpo aprenda a reagir sozinho. Entendeu?
— Sim, senhor.
Dante sorriu de lado, notando como a neve acumulada nos cabelos dela se soltava conforme ela balançava a cabeça. Por um segundo, Juno parecia tão pequena e frágil quanto a criança que realmente era, mas ele sabia a verdade. Havia algo nela, um brilho raro e selvagem, como uma lâmina que ainda não fora polida.
— A garota pode não ser a mais faladora, mas aprende melhor que qualquer um que formos ensinar — dissera Jix na noite anterior. — Precisa ser lapidada do jeito certo, para que brilhe sem se tornar uma daquelas joias falsas, arrogantes.
Dante sabia exatamente o que Jix queria dizer. Orgulho era uma doença perigosa, e ele a conhecia bem demais. Quando Render o treinava, não havia espaço para fraqueza ou vaidade; só havia o abismo. Um erro significava um castigo. Uma hesitação significava dor. E uma vitória nunca era suficiente. Render não treinava um filho — ele moldava uma arma.
Agora, ali, diante de Juno, Dante se viu no lugar onde Render costumava estar. Ele não deixaria a menina cair no mesmo abismo, mas também não pegaria leve.
Ela aprenderia, como ele aprendeu.
— Certo — murmurou Dante, baixando a lâmina até que a ponta tocasse a neve. — Preste atenção. Se você errar, vai ser acertada em cheio.
Juno engoliu em seco, sentindo o peso das palavras. A neve continuava a cair ao redor deles, silenciosa e lenta, mas o mundo ali parecia mais afiado do que nunca.
I
Marcus movia-se como um fantasma entre os flocos de neve que caíam sem cessar. A tempestade era sua aliada, um véu perfeito para ocultar sua presença. Ele havia pedido a uma das senhoras do abrigo que costurasse uma manta branca, espessa o suficiente para suportar o frio e larga o bastante para cobrir todo o seu corpo. A ideia fora simples, quase óbvia: invisibilidade em meio ao branco interminável do inverno.
Com a manta sobre os ombros, Marcus desaparecia. Ele se tornava parte da paisagem, um vulto indistinto entre o caos silencioso da nevasca. Cada passo era calculado, o peso dos pés enterrando-se na neve sem ruído, como se ele tivesse aprendido a ser tão leve quanto o vento.
Ele não era como Dante ou Juno, com suas habilidades chamativas e poderosas, capazes de destruir o que estivesse no caminho. Não. Marcus preferia ser a sombra, o silêncio que precedia o disparo. A lembrança daquele dia, quando pisou no Centro de Pesquisas pela primeira vez, voltava a ele como um sussurro persistente. Ali, entre corredores frios e o eco de suas próprias botas, ele descobrira algo importante: o medo era uma arma.
O medo não precisava gritar. Não precisava rugir ou brilhar como os raios de Juno. Ele apenas precisava existir — silencioso, constante, inevitável.
Assim como decidiu caminhar ao lado de Clara, decidiu também ser a arma que precisavam.
A neve chicoteava seu rosto, mas ele não se importava. Com os olhos semicerrados, a carabina presa ao peito e os dedos firmes no gatilho, ele observava. Cada sombra era uma possibilidade, cada som abafado pelo vento era uma ameaça potencial. Invisível, ele podia ser o caçador ou o fantasma que perseguia suas vítimas até que elas caíssem de exaustão, vencidas pelo pavor.
Ele não tinha a velocidade de Juno. Não tinha a presença avassaladora de Dante. Mas no dia em que descobrira o poder do medo, ele se tornara algo diferente.
Frio antes do tiro. Fatal depois dele.
Marcus parou, o peito subindo e descendo lentamente sob a manta branca. Seu olhar percorreu o horizonte coberto de gelo e penumbra. Invisível e implacável, ele era a arma que o mundo não via até ser tarde demais.
Foi quando os dois passaram por ele. Meliah e Degol Jones, os dois irmãos conversavam fazia bastante tempo, e Marcus seguiu seus passos, ocultos de seus olhos, longe dos ouvidos. Era como tinha treinado esse tempo inteiro, e era do que se orgulhava quando o Duas Caras, como Dante o chamava, foi acertado em queda livre.
O disparo que mais lhe enchia de orgulho.
— Eu sei que ela é complicada — Meliah dizia com pesar, mas não desviava o olhar. — Clara cuidou de nós, como também com todo o nosso pessoal. Ela sabe fazer isso, sabe lidar com as pessoas, lembra que foi ela que disse para conversarmos com Luma para não ficarmos com fome no ano passado?
— Lembro, lembro bem. Ela não tinha nada, mas ofereceu abrigo. A gente negou. — Degol desde que tinha acordado não tinha ficado muito tempo no prédio. Por algum motivo, preferia ficar na neve, mesmo que isso lhe custasse as roupas que usava. — E perdemos bastante gente antes. Mas, nós tínhamos um acordo com Antton. E nós sempre honramos nossos acordos. Ele queria a bateria, e nós também.
Meliah balançou a cabeça lentamente, achando ridículo pensar que Antton era assim.
— Olha pra mim. Irmão, olha pra minha cara. Eu quero que essa bateria e o Antton se fodam. Em nenhum momento depois que você ficou de cama, ele apareceu. Nem mesmo para perguntar se Clara ou eu precisava de alguma coisa. Ele não é o tipo de pessoa que deveríamos ter com a gente, no nosso círculo. Olha esse lugar.
Degol virou, olhando para o prédio. O abrigo tinha certa iluminação interna, mas a tempestade ofuscava o brilho intenso.
— É um bom lugar — afirmou Degol. — Um ótimo lugar, na verdade. Mas, o que iríamos fazer aqui? Não somos nada sem o Setor Industrial.
— Largue de ser bobo. — Meliah segurou o ombro do seu irmão e o puxou para perto, abraçando. Mesmo na neve, era possível ver o calor fraternal entre eles.
Marcus os invejava até certo ponto. Esse tipo de afeto, ele tinha perdido fazia muitos anos. Tempo suficiente para que suas feridas tivessem sido cicatrizadas pelo frio daquele inverno furioso ou das constantes batalhas que vieram depois.
Ainda assim, sorriu ao vê-los novamente juntos. Mesmo Degol Jones sendo um puta babaca, não desejaria que ele estivesse morto de uma maneira tão drástica.
— Pode deixar que eu falo com Antton — disse Meliah ainda segurando os ombros do irmão. — Quero te pedir que volte para dentro do prédio comigo. Conversaremos com Clara e faremos o certo. Ela precisa tanto da gente quanto precisamos dela, então, que tal fazer o Setor Industrial para cá? O velho e o Marcus podem ajudar a buscar.
Degol fez uma careta.
— Marcus não gosta de mim. Ele tem culhão, quase me matou da última vez, mas sei que ele não gosta de mim.
— Faça o certo, irmão, e ele vai te reconhecer, assim como fez comigo.
Marcus ergueu as sobrancelhas.
E quem disse que eu reconheci você, idiota?
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