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    Capítulo 034

    Coisas irracionais

    Ele não levou os papéis para seu quarto, é claro. Estava confiante de que não havia nenhum feitiço de rastreamento em nada na pilha, mas também estava confiante de que Vazen poderia tentar adivinhar a localização dos papéis do modo difícil assim que percebesse o roubo. Ele poderia até ter sucesso, caso em que Zorian não queria que eles1 estivessem perto de qualquer coisa que o incriminasse automaticamente no roubo. Não fazia sentido correr esse risco quando ele poderia simplesmente armazenar os papéis em outro lugar.

    Outro lugar, neste caso, significava fora de Knyazov Dveri — dessa forma os papéis estariam fora do alcance de praticamente todos os feitiços de adivinhação conjurados de dentro da cidade. Assim, depois de se teletransportar aleatoriamente em torno algumas vezes para confundir quaisquer rastreadores teóricos, o último salto de Zorian o levou profundamente para o interior da floresta selvagem ao norte da cidade, para um local que tinha uma caverna pequena e conveniente nas proximidades. Ele havia encontrado o lugar em um reinício anterior, enquanto estava rastreando ingredientes para Silverlake, e ele já achara que aquele seria um bom lugar para montar acampamento. Só precisava de alguns retoques aqui e ali para torná-lo adequado aos seus propósitos.

    Ele conjurou uma lanterna brilhante para iluminar seu caminho na escuridão da caverna e começou a trabalhar. Depois de um rápido lançamento de um feitiço de área ‘assustar animais’ para afastar todos os morcegos e vermes que haviam se estabelecido na caverna, ele começou a usar magia de alteração para limpar o lugar e fazer algumas prateleiras e superfícies de leitura a partir das rochas. Um tempo depois, depois de testar o conforto e a estabilidade das coisas, ele decidiu que cadeiras de pedra talvez não fossem a melhor ideia e, em vez disso, construiu alguns móveis básicos com os galhos caídos que encontrou na floresta ao redor. Pronto — bom o suficiente para seus propósitos.

    “Agora vem a parte difícil”, ele disse a si mesmo.

    Era hora de começar a construir o esquema de proteção para o lugar.

    Três horas depois, Zorian havia colocado em camadas cada proteção de adivinhação que ele achava que poderia ser útil e alguns que não tinha certeza, verificando tudo duas vezes para ter certeza de que tudo estava estável e funcionando corretamente. Sinceramente… ele não estava satisfeito. Ele tinha uma coleção insuficiente de diferentes feitiços anti-adivinhação para montar um esquema de proteção adequado e robusto, e muito pouca experiência para julgar adequadamente o que era crucial e o que não era. E mais, se levou tanto tempo para montar até mesmo essa coisa medíocre, quanto tempo levaria algo mais complexo? Ele realmente precisava melhorar em proteção…

    Ele balançou a cabeça para clarear os pensamentos. Ele precisava melhorar em muitas coisas, mas tinha que haver uma priorização. Defesa contra magia da alma, depois habilidades de combate, e então artes mentais araneanas. Essas três coisas eram urgentes e não podiam ser adiadas. Todo o resto era secundário por enquanto, até mesmo o mistério cercando Vazen e os documentos. Se roubar os documentos resultasse em sua morte precoce, apesar das muitas precauções que tomou… bem, ele teria que deixar tudo de lado até terminar seu objetivo principal atual, não é?

    Não, suas defesas atuais teriam que ser suficientes por enquanto. Ele colocou os papéis que roubou de Vazen na mesa de pedra próxima, que fez a partir do chão da caverna, sentou-se em uma cadeira que ele fabricou com detritos de madeira que ele arrastou para dentro da caverna, e começou a ler…

    Horas depois, quando ele finalmente terminou de ler e organizar toda a coisa, ele pensou seriamente em queimar a pilha inteira e espalhar as cinzas ao vento. Mais seguro assim, e provavelmente mais do que um pouco catártico. Ele esperava encontrar algo fortemente incriminador, mas isso era algo completamente diferente. Por que o homem mantinha toda a sua correspondência incriminadora em um lugar conveniente, afinal? Se fosse Zorian no lugar dele, ele teria destruído todas as cartas após lê-las para que não pudessem ser usadas contra ele. Será que Vazen estava guardando-as como possível material de chantagem ou algo assim? Se sim, isso foi meio corajoso da parte dele, considerando com que tipo de pessoa o homem estava lidando.

    A dita pessoa era Sudomir Kandrei, o prefeito de Knyazov Dveri. Porque é claro que era o maldito prefeito que estava por trás de tudo. Não é de se espantar que contar à polícia sobre os desaparecimentos nunca resultou em nada — mesmo que alguém tivesse investigado seriamente, seus superiores teriam dito rapidamente para abandonar o caso. Governadores locais em áreas periféricas como essas eram basicamente pequenos tiranos que podiam fazer o que quisessem, desde que se certificassem de não irritar a pessoa errada ou causar problemas.

    Não que saber quem era o responsável pelos desaparecimentos tenha esclarecido os motivos do homem. No fim das contas, Vazen era apenas o cara que fornecia a Sudomir vários materiais ilegais e ocasionalmente contratava pessoas obscuras no lugar de Sudomir para que o prefeito não pudesse ser incriminado nos negócios. O comerciante nem sequer sabia sobre a maioria dos desaparecimentos, até onde Zorian podia ver. Na verdade, os negócios obscuros de Vazen com o prefeito pareciam ter sido muito mais benignos até cerca de três meses atrás, quando o homem de repente aumentou o jogo e começou a exigir mercadorias muito mais arriscadas, em quantidades muito maiores, bem como começou a organizar assassinatos completos como os dirigidos contra ele e Alanic. Dava para perceber pelas cartas que Vazen estava ficando progressivamente mais perturbado e irritado com seu ‘cliente’ por escalar coisas assim, especialmente porque Sudomir se recusou a elaborar sobre o que havia causado essa mudança repentina. O ‘acordo’ que Vazen fez com uma empresa em Cyoria, aquela em que Gurey estava tão interessado, era basicamente um suborno que Sudomir havia arranjado para Vazen para acalmá-lo e mantê-lo cooperativo.

    Os projetos e receitas contidos nos documentos pareciam interessantes, mas não havia nada lá que Zorian achasse realmente notável ou sinistro. Os nomes das três empresas que forneceram a documentação eram algo que ele reconheceu, no entanto — elas eram administradas por pessoas que as araneas haviam identificado como membros do Culto do Dragão.

    Então. O prefeito de Knyazov Dveri tinha algum tipo de conexão com o Culto do Dragão do Mundo. Significativa o suficiente para que ele pudesse providenciar para que eles entregassem documentação extremamente valiosa a um de seus agentes por uma mixaria.

    Bem, a ideia de que tudo isso estava conectado aos invasores de Ibasan ficou muito mais crível com isso, embora não fosse Vazen que tivesse ligações com eles, como ele suspeitava originalmente. Ainda assim, a questão de por que estavam atrás dos magos de alma ao redor de Knyazov Dveri permanecia. Por que se importar? O que os Ibasans ganhavam fazendo isso? Algumas dessas pessoas só poderiam ser vagamente descritas como magos de alma para começar, e a maioria delas não era uma ameaça séria para a força Ibasan… ou para qualquer um, na verdade.

    Ele suspirou. Como sempre, cada resposta que ele encontrava parecia trazer mais duas perguntas ao seu rastro. Ele colocou os papéis em uma prateleira próxima, esculpida nas paredes da caverna, optando por não os destruir ainda, e então voltou para seu quarto para dormir um pouco.

    * * * 

    Depois de dormir um pouco e ter a chance de pensar sobre as coisas, ele decidiu adiar a investigação das atividades de Sudomir para outro momento. Não fazia sentido agitar ainda mais o vespeiro quando ele poderia apenas esperar por algum recomeço futuro no qual ele nunca roubou os documentos de Vazen e ninguém sabia que eles estavam sendo ameaçados por alguém.

    No entanto, conforme os dias passavam sem incidentes e ninguém nunca rastreava os documentos até seu pequeno esconderijo na floresta, ele começou a relaxar. Ele não reiniciou a investigação nem mudou nenhum de seus planos, mas imaginou que seria um recomeço agradável e relaxante, onde nada realmente notável aconteceria. Ele lentamente absorveu as lições de Alanic sobre visão pessoal da alma, mexeu com seu golem de madeira (versão três) em seu tempo livre e fez questão de conjurar o feitiço de detecção de marcadores pelo menos uma vez por dia (sem mudanças; o feitiço nunca mostrou nada além de dois marcadores).

    E então, duas semanas após o reinício, ele acordou no meio da noite e viu uma figura vestida de preto, com o rosto obscurecido e uma faca na mão, de pé ao lado de sua cama.

    Mais tarde, ele se perguntaria o que o havia alertado de que estava em perigo, mas naquele momento ele simplesmente reagiu. Sem se preocupar em estruturar a magia em nenhum feitiço real, ele estendeu a mão para o cobertor que o cobria e o lançou contra o assassino em uma explosão grosseira de força telecinética. O homem (provavelmente; a constituição sugeria um homem) cambaleou para trás quando o cobertor colidiu com ele, não realmente ferido, mas surpreso com a manobra e desorientado pela cegueira repentina.

    Zorian se levantou num impulso, mal conseguindo ficar de pé antes que o assassino conseguisse tirar o tecido fino dele e se lançasse em sua direção. Três golpes de faca depois, Zorian estava exibindo um corte profundo no braço e um arranhão sangrando na bochecha, sabendo do fato que não tinha chance contra o homem em um confronto físico. Ele procurou freneticamente pelo quarto com os olhos, tentando localizar algo para se ajudar, e admitiu para si mesmo que ter tornado o quarto à prova de som pode ter sido um pequeno erro. Apenas pequeno, no entanto, porque mesmo que ele pudesse gritar por ajuda, ele duvidava que alguém conseguisse alcançá-lo antes que o assassino terminasse com ele. Não, o maior erro foi que ele optou por dormir com sua varinha de mísseis mágicos e braceletes de proteção na gaveta de sua mesa, em vez de mantê-los consigo para dormir.

    Era oficial: depois dessa batalha, independentemente do resultado, ele conjuraria mísseis mágicos sem parar sempre que tivesse tempo livre e mana para torná-lo totalmente reflexivo. Ele não podia se dar ao luxo de ficar tão indefeso quando privado de suas ferramentas.

    “Se eu morrer, vou explodir nós dois!” Zorian gritou, e ele falava sério. O colar suicida, pelo menos, estava sempre com ele. Talvez ele devesse colocar algo diferente de explosivos ali para situações como essa.

    O homem hesitou por um segundo na proclamação, mas então se moveu para atacar novamente. Esse segundo foi o suficiente, no entanto — de repente, tendo um momento para se concentrar, Zorian bombardeou a mente do homem com ruído telepático. O assassino estremeceu, abortando seu ataque, mas não caiu.

    Não ainda, pelo menos. Quando Zorian aproveitou sua tontura momentânea para esmagar um pisa-papel2 próximo em seu rosto, ele caiu em um jato de sangue e não se levantou novamente.

    Um minuto depois, depois de se acalmar um pouco (e confirmar que o assassino, ainda vivo, não iria se levantar tão cedo), ele decidiu que não poderia ir à polícia com isso. Eles eram efetivamente os subordinados do prefeito, e Sudomir provavelmente foi quem ordenou que o homem sangrando no chão de seu quarto o matasse. Ou mandou outra pessoa providenciar isso para ele, mais provavelmente, considerando seu comportamento nas cartas de Vazen. O fato de que o assassino aparentemente tinha uma chave para seu quarto, que foi como ele contornou o alarme de intruso de Zorian, não ajudou em nada sua paranoia. De qualquer forma, ele só conhecia uma pessoa a quem poderia ir com isso.

    Já estremecendo com o sermão que iria receber, Zorian pegou o corpo inconsciente do assassino e se teletransportou para o templo de Alanic.

    * * *

    1. os documentos[]
    2. Objeto pesado, surgido por volta de 1840 na França, destinado a exercer peso sobre folhas. Cabe citar que a história, tecnologicamente, corresponde majoritariamente ao séc. 19.[]

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