Capítulo 153: Medo do Escuro, Dante?
— Não importa o tempo que passe, vermes continuam sendo vermes. — As palavras de Januario escaparam de seus lábios como um suspiro, mais um lamento do que uma acusação. Ele ergueu a cabeça, seus olhos frios fixos em Dante. — Mais uma vez, me trazem um homem sem fundamento, incapaz de viver em sociedade. Vejo também que não respeita as boas normas. Deve ter sido criado entre animais.
Dante não respondeu. Render e Linda, seus pais, sempre foram educados, até mesmo contra aqueles que viviam em meio à sujeira. A provocação de Januario, por mais ácida que fosse, não encontrava eco no silêncio de Dante. Ele apenas observava, deixando que o espadachim se movesse com a pompa de quem se acreditava invencível. Januario caminhava com graça, exibindo confiança para o povo. Mas Dante sabia: era dessa confiança que ele apostava para se sustentar.
— Todos os homens têm medo, Dante da Capital — declarou Januario, com uma voz que parecia ter sido moldada para discursos. — E esses mesmos medos sempre carregam a desesperança. Foi assim com Leonardo Vulkaris. Um homem que ousou decepá-la, a Antiga Cúpula. Um crime que ninguém mais ousaria nomear, mas eu fiz. Agora ele paga também pela traição. Nós lhe demos uma chance, e como ele a usou? Ajudando um Impuro.
Gerhman deu um passo à frente, o corpo tenso, os punhos cerrados. Ele queria avançar, mas Cerberus estendeu o braço e o conteve.
— Deixe que Dante resolva.
A visão de Leonardo, ajoelhado no chão frio, com roupas rasgadas e um olhar vazio, era como uma faca cravada no coração de Gerhman. Aquele não era o destino de um homem como Leonardo, alguém que havia se erguido acima dos outros e provado sua força. Era injusto, uma afronta ao que era sagrado.
— Se Dante perder, eu mesmo acabo com ele — murmurou Gerhman, a voz carregada de ódio.
— Não será necessário — respondeu Cerberus, a voz calma, mas firme. — Dante não vai perder. Tenha fé. Use seus instintos. Sinta a luta.
A palavra “sentir” soava amarga para Gerhman. Seus instintos, sempre aguçados, lhe diziam uma única coisa: fuja. Desde o momento em que lutara contra Dante, sendo derrotado e depois acolhido por ele no abrigo, Cerberus vinha tentando entender aquele homem. Dante não era apenas forte. Ele tinha algo que atraía as pessoas. Homens buscavam sua companhia para uma conversa, crianças corriam para brincar ao seu redor, até mesmo Marcus, com seu jeito seco e bruto, às vezes se permitia sorrir em sua presença.
Dante era mais do que força bruta; ele era admirável.
O medo, pensou Cerberus, era justo. Todo homem teme perder aquilo que ama. Talvez fosse esse o maior medo de Dante: perder tudo. Não as batalhas, mas as pessoas. Ele sempre dizia ser da Capital, nunca de Kappz. Talvez seu maior medo fosse nunca mais voltar para casa. Nunca mais ver sua família. Nunca mais sentir o calor daqueles que um dia o fizeram parte de algo maior.
Cerberus sentiu um peso em seu peito, uma tristeza familiar. Ele também havia perdido. Por isso, entendia Dante e o que significava proteger algo, mesmo que não fosse originalmente seu. GreamHachi seria sua família um dia, ele acreditava nisso. E protegeria aquelas pessoas, assim como Januario acreditava estar protegendo os seus ao erguer sua espada.
Januario era mais do que um homem; ele era o produto de um mundo que o moldara. Suas vitórias, suas derrotas, as pessoas que o cercaram, tudo isso o fizera. Leonardo era a prova viva de seu poder, a moeda que validava sua posição como algo maior que um simples guerreiro.
Também tinha razão em sua raiva. Ele queria salvar o homem que lhe estendera a mão, que tentara abrir os portões para ele. Queria lutar ao lado de Dante, dividir o peso daquela batalha.
Mas ele sabia. Não faria diferença.
Cerberus observou Dante parado, esperando. Ali, naquele instante, Dante não se importava com o universo ao seu redor. O silêncio não era vazio; era como o olho de uma tempestade. Ele havia escolhido o momento. A luta seria dele, e apenas dele.
Januario ergueu sua espada com a confiança de um homem que jamais soubera o sabor da derrota. Mas Cerberus, que o observava com olhos atentos, sabia a verdade. Assim como Gerhman, ele podia sentir no ar o peso do inevitável. A confiança de Januario, por mais sólida que parecesse, era uma fortaleza erguida sobre areia. Nem em suas orações mais fervorosas, nem em seus sonhos mais ousados, o espadachim seria páreo para o que estava por vir.
— Minha pergunta final — anunciou Januario, a voz ressoando como um trovão.
A Energia Cósmica que ele liberou tomou a praça como uma tempestade, crescendo com uma velocidade que parecia desafiar a própria lógica. Era uma força bruta e selvagem, uma sombra tão vasta que apagava as luzes das tochas e lamparinas espalhadas pela praça como se fossem meras velas ao vento. As sombras dançavam nas paredes das casas, retorcidas e grotescas, enquanto os espectadores prendiam a respiração, aterrorizados.
— Você tem medo do escuro, Dante? — As palavras vieram como um desafio, mas também como uma sentença.
Dante não respondeu. Ele tentou manter o foco, mas sua visão foi inundada por algo que não era deste mundo. Uma onda de vozes se ergueu em sua mente, como o eco de um coral infernal.
“O que acha que está fazendo, seu idiota?”
“Sua mãe tem nojo de ter dado à luz a um filho tão fraco.”
Ele cambaleou, o corpo tremendo como se estivesse sob o peso de um martelo invisível. Seus dedos agarraram o próprio rosto, enquanto dava um passo para trás. A dor era insuportável, como se mil agulhas estivessem perfurando seu crânio.
— Não. Não… — murmurou ele, a voz fraca e hesitante.
A dor não era apenas física; ela estava em sua mente, em sua alma. Era uma força que arrancava dele algo essencial, uma sensação de desespero tão absoluta que parecia impossível resistir. Ele sentiu o chão sob seus pés vacilar, como se a própria terra o rejeitasse.
Foi jogado para trás, os joelhos encontrando o frio e implacável pavimento da praça. A multidão, que antes assistia em silêncio, parecia agora uma massa de sombras indistintas, suas formas borradas e irreais.
Dante abriu os olhos.
E o que viu diante de si não era apenas um abismo. Era uma força tão antiga e implacável que fazia os temores mais profundos de um homem parecerem infantis. O que enxergava era a única coisa que realmente o fazia sentir calor no frio, e frio quando havia calor.
A sensação da derrota que um dia esteve amarrado em sua garganta, dada somente por uma único ser. E ele estava ali, parado diante dele, com sua espada em mãos, a fria lâmina cinzenta, que Dante tinha certeza ser capaz de cortar até mesmo uma montanha.
— Você chegou tão baixo, Dante — disse Render, a voz firme, mas com uma ponta de desgosto que cortava mais do que qualquer lâmina. — Não é mais meu filho.
Dante sentiu o peito apertar, como se uma mão invisível o esmagasse.
— Pai, eu… — tentou dizer, mas as palavras morreram em sua garganta.
O olhar de Render era glacial, como o vento que soprava entre eles.
— Não ouse me chamar assim — respondeu ele, dando um passo à frente. — Meu filho era um homem de honra, um homem que sabia o que era certo. E o que você se tornou? Um cão sem dono, rosnando e mordendo qualquer um que cruze seu caminho. Um selvagem.
Dante apertou os punhos, a dor no peito transformando-se em algo mais quente, mais feroz.
— Tudo o que fiz foi para sobreviver! — gritou ele, a voz ecoando na clareira vazia. — Para proteger aqueles que amo, para…
— Amar? — Render o interrompeu, a palavra saindo como veneno. — Você não sabe o que é amor. Você abandonou tudo o que era puro e bom por sua sede de poder, por sua arrogância. Olhe para você, Dante. Você é pior do que aqueles que jurou combater.
Dante deu um passo à frente, os olhos ardendo de raiva.
— E você? — retrucou ele, a voz baixa, mas carregada de ameaça. — Você se escondeu enquanto o mundo desmoronava. Não fez nada enquanto a fome, o frio e a morte nos cercavam. Você me chama de cão, mas, pelo menos, eu lutei!
Render inclinou a cabeça, o desprezo em seu rosto tão evidente quanto as cicatrizes em suas mãos.
— Lutar? Você chama isso de lutar? Você é um monstro, Dante. E monstros precisam ser abatidos.
A última palavra mal saíra de sua boca quando Dante avançou, a fúria o consumindo como uma tempestade. Ele sacou a lâmina de sua cintura, o aço reluzindo sob a luz fraca do céu nublado.
— Não ouse me julgar! — rugiu ele, golpeando com toda a força.
Render não recuou. Ele se moveu com a precisão de um guerreiro experiente, desviando o golpe com facilidade e agarrando o braço de Dante.
— Você perdeu o controle — disse Render, com frieza. — E agora está tão cego que não consegue ver quem realmente é o inimigo.
— Eu sei quem é você — gritou Dante, a voz rasgando o ar frio enquanto sua mão espalmava o peito de Render com uma força brutal. O impacto foi suficiente para lançar o homem alguns passos para trás, os pés escorregando no chão nevado.
Medo. Raiva. Dor. Cada um desses sentimentos latejava dentro de Dante, como feridas abertas que nunca cicatrizavam. Vinte e nove anos de vida comprimidos em um instante, uma tempestade de memórias e emoções. Ainda assim, mesmo diante da espada que um dia aprendera a temer, Dante sorriu. Não de alegria, mas de um desespero carregado de desafio.
Render se endireitou, o olhar fixo no filho. Sua mão segurava a lâmina como um homem que já havia derramado sangue antes — e estava pronto para fazê-lo novamente.
— Mesmo com toda essa força, garoto, você ainda não pode me derrotar — disse Render, a voz fria como o vento que soprava entre eles. — E se conseguir, o que dirá? Que matou seu mestre? Que tirou a vida do próprio pai? Como explicará isso à sua mãe? À sua irmã?
Dante não respondeu de imediato. Sua respiração saía pesada, nuvens de vapor se dissipando no ar gelado. Ele abaixou a base do corpo, flexionando as pernas e girando o tronco. Suas mãos se abriram, cada dedo tensionado como as garras de uma fera pronta para o ataque.
— Não estamos mais no campo de bambus, pai — disse ele, a voz baixa, mas carregada de firmeza. — Estou muito longe de casa para ouvir de você o que devo ou não fazer.
As palavras pairaram entre eles, pesadas como chumbo. Então, o som veio. Um estalo seco, como madeira se partindo. A Energia Cósmica dos dois colidiu, ressoando como trovão no campo silencioso. A força gerada pelo confronto fez a neve ao redor deles explodir em pequenos redemoinhos.
A clareira ficou em silêncio. Nem o farfalhar das árvores, nem o assobio do vento. Até mesmo a tempestade pareceu hesitar, como se o mundo inteiro tivesse prendido a respiração para assistir àquele momento.
Pai e filho se encararam. Os olhos de Render eram de aço, cheios de julgamento e fúria. Os de Dante, um fogo que se recusava a apagar.
Ali, naquele campo coberto de neve, duas gerações se preparavam para um duelo que nenhum deles poderia vencer sem perder algo muito maior do que a própria vida.
— Me perdoe por isso, pai.
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