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    — Podemos começar — disse Clara. — Estou aqui para dizer que metade dos nossos investimentos, seja de tempo ou recurso, não estão sendo alocadas de maneira correta. Estamos perdendo muito mais do que temos, e mais ainda, estamos perdendo pessoal para fazer.

    Ninguém se prontificou. Ela continuou:

    — Quero dizer que nossos recursos estão acabando, o que pode significar que temos menos ainda do que um dia já tivemos. Não quero poder fracionar a comida, nem mesmo os mantimentos livres que estamos usando para reconstruir o prédio. Por isso, Clerk, poderia reduzir o uso por enquanto?

    O homem assentiu junto. Ele parecia bem desconfortável por estar no meio de tanta gente diferente, mas manteve-se forte e firme concordando.

    — Quero poder ajudar com o que posso. — Clerk olhou para os rostos conhecidos. — E sei que estão fazendo muito pelas pessoas, mas creio que essa seja a posição que eu percebi. Pedi para conversar com a senhora Clara antes, e creio que se continuarmos usando, ficaremos sem recursos.

    — Não é só pegar mais? — ouviu de Arsena, de braços cruzados. — A cidade está cheia de recursos pedindo para serem trazidos pra cá. Por que reduzir o uso em vez de ir lá fora e pegar mais?

    — Creio que essa seja a decisão correta — respondeu Clara. — Mesmo que Kappz seja uma cidade mais segura de uns tempos para cá, temos completa e total certeza de que se menos pessoas forem lá pra fora, mais chances temos de segurança.

    Magrot rangeu os braços ao se posicionar.

    — Segurança é um termo direto demais para ser usado. Acha que não podemos nos proteger lá fora?

    — Claro que podem se proteger — respondeu Clara. — Não estamos desfazendo essa afirmação. Acredito que quanto mais pessoas tivermos aqui dentro, mais seguros estaremos se vocês ficarem também.

    — Não faz sentido.

    Gerhman ergueu a mão um segundo depois, completando:

    — Se precisa de materiais, por que não liberar alguém para fazer coletas? Seria mais prático se fosse feito de maneira mais ordenado. Um time de coleta seria responsável para trazer, e isso ajudaria muito.

    — Temos em mente que todas as pessoas podem fazer a coleta, mas precisamos de gente necessária para assegurar que o abrigo esteja seguro.

    — Seguro do que?

    As cabeças viraram. Dante ainda olhava o quadro, com o charuto na boca, na mesma posição de antes.

    — Seguro de qualquer ameaça que possa estar vindo — declarou Clara, ainda mais irritada do que antes. — Por que acha que nada pode acontecer sendo que vivemos em um lugar perigoso? O abrigo precisa disso. Eles precisam dessas pessoas como vocês deles.

    — Não neguei esse fato. Acredito que seja realmente isso. Mas, por que diz que temos que ficar aqui dentro sendo que a tempestade não cessa, nossos recursos começaram a acabar e nossa água fica escassa mais a cada dia?

    Clara ficou quieta, sendo observada pelos olhares ao redor.

    — O abrigo foi uma ideia daqueles que um dia juraram proteger uns aos outros.

    — Isso é verdade — concordou Simone. — Desde sempre, quisemos mostrar que as pessoas podem cuidar uma das outras. Sempre tivemos projetos, sejam grandes ou pequenos, e creio que agora temos pessoas o suficiente para coordenar, vai ser ainda mais fácil.

    Ainda mais afastado, Duna coçava o rosto com os dedos metálicos.

    — Deixa eu ver se entendi. Querem que a gente sempre entregue algum tipo de documento ou algo parecido quando for fazer uma coisa? É isso?

    Clara assentiu.

    — Seria o ideal para deixar todos a parte.

    Arsena negou na mesma hora, murmurando:

    — Parece que voltei a trabalhar pro bastardo do Havok. Olha, Clara, sem ser chata, sei que já tivemos problemas, mas o coletivo é seu. Nós ajudamos bastante quando nos pedem para irmos pegar as coisas, mas termos que mandar um documento para simplesmente poder sair? Não faz sentido.

    — O sentido está em sabermos o que está acontecendo com cada um.

    Dante deu uma risada seca, mas manteve-se quieto.

    — Quer dizer alguma coisa, velhote? — Marcus perguntou, indiferente.

    — Se querem saber o que os outros estão fazendo ou não é uma decisão completamente desconexa. Cada um tem sua própria vida, e já ajudamos bastante sempre que podemos. Agora, tirar o livre arbítrio de podermos fazer nossos projetos? Se eu preciso fazer algo pra mim, por que eu deveria dizer pra todos?

    — Segurança e coletivo — respondeu Clara.

    — Quando foi na Luma hoje cedo, avisou a alguém?

    Clara fitou Dante. Claro que ele sabia.

    — Está praticamente dizendo algo e fazendo contra. O que quero dizer é: se estamos realmente querendo formar um grupo para ditarmos como o abrigo começa, acredito que o primeiro passo seja ouvir o que cada um acha daqui e das possíveis melhorias. Depois, ajustar a vontade dos moradores e não somente de quem comanda.

    — Conhece o termo popular de ‘democracia’, então? — sua voz saiu em tom sarcástico.

    — Vim de um lugar onde os mais velhos e maior patente são aqueles que mandam. Se você precisa de algo, faz uma carta e pede que chegue ao Comandante. Se ele vai ler, depende de quem está realmente com a carta. Democracia nunca existiu lá, por isso, conheço bem o termo.

    Clara sempre achava que ele tinha a resposta na ponta da língua.

    — Uma pena que você não está lá. A cidade é Kappz, não Capital. Mas, se quer mesmo ter um pouco de onde morava aqui, então, por que não pensa em como esse sistema pode nos beneficiar?

    — Beneficiar em que? Tudo teria que passar pela sua mão antes de ser feito?

    Dante, pela primeira vez, se virou.

    — Se quer que o sistema seja igual, então você teria que ser a pessoa mais forte dentro dessa sala. — Ele tirou o charuto da boca. — Você é?

    Houve um silêncio que se seguiu de forma bem forçada. Ninguém contrariou Dante, mas também não concordaram com ele. Clara tinha uma pequena certeza, apenas uma.

    — O que quer para ficar?

    Não esperou que ele desse uma risada.

    — Por que acha que eu quero alguma coisa para que você vença a discussão? Acabou de responder minha pergunta. Se quer barganhar comigo, você não tem poder suficiente para conseguir ordenar e comandar. O que está vendo aqui na sua frente são pessoas que se arriscam e muito para esse lugar estar nos eixos.

    — Eu sei disso.

    Dante deu a volta na mesa, ficando atrás das cadeiras e recostou na mesa.

    — Heian, relatório do abrigo, por favor.

    Clara viu o homem erguer a mão.

    — Clara, com a sua permissão e também de Dante, eu comecei a produzir um quarto na Cuba. Agora, nesse momento, estou com vinte deles feitos e prontos para serem usados. São um quarto e um banheiro. Creio que até o final da semana, eu possa produzir mais trinta deles. Quero alocar todos os moradores em um dos prédios que estou recriando. Ainda preciso de mais tempo, mas não preciso de recursos. Minha habilidade consegue replicar a ‘Criação’, e Dante me deu certa liberdade em fazer os circuitos e disjuntores.

    Vinte quartos em dois dias. Isso era bem impressionante, ainda mais porque a Cuba era um lugar bem protegido e também mais afastado de onde Antton e os caçadores viviam. Bom, fazia meses que não ouvia sobre eles.

    — Entendo. — Ela concordou com um sorriso. — Fico agradecida por nos informar sobre a sua expedição, Heian. O que você pretende fazer depois que todos estiverem terminados?

    — Acredito que seja melhor migrar para a Cuba enquanto possamos produzir mais lugares. Tenho o desenho feito por Duna sobre certas localidades e também centros onde podemos armazenar melhor a comida.

    — E eu posso ver esse projeto?

    — Não. — Dante respondeu.

    O primeiro a se manifestar sobre o ocorrido foi Clerk. Ele se levantou, com as mãos esticadas para o lado.

    — Por que está fazendo isso? Clara está sendo educada de pedir que sejam entregues. Eu também posso ajudar nessa questão.

    — Sei que pode, Clerk. — Dante continuou parado na mesa. — O que me deixa curioso foi sobre algumas coisas. Clara, no dia que me conheceu, qual foi a primeira coisa que me disse?

    Clara o olhou de lado, sem entender.

    — Do que está falando? Eu falei para ficar quieto.

    Dante sorriu. Ele encarou Marcus, e acenou com a cabeça.

    O atirador levantou puxando a Gun Se na mesma hora, e mirando para a cabeça de Clara.

    — É melhor ficar paradinha ou eu vou estourar seus miolos.

    Todo mundo gelou. Simone e Clerk se levantaram, mas Juno ergueu a mão antes dos dois terem qualquer movimento. As correntes se estenderam e amarraram em suas barrigas, os jogando contra o chão.

    A habilidade de Gelo de Heian emergiu, prendendo Clara na cadeira na mesma hora.

    — Sabe, Clara, parece que você se esqueceu de um detalhe bem importante. — Dante deu a volta na cadeira, olhando bem nos fundos dos olhos dela. — Quando me encontrou, você não me mandou ficar quieto.

    Simone e Clerk rapidamente começaram a esbravejar contra Dante.

    — Está maluco? Vai matar Clara aqui e agora?

    — Matar a Clara? — Dante negou. — Não vou matar a Clara. Vou matar quem está tentando ser ela.

    A própria Clara foi tomada pelo gelo, subindo até seus braços. Ela abaixou a cabeça, e deu uma risada.

    — Que merda é essa, Dante?

    Marcus destravou a arma.

    — É melhor começar a falar. Não estou com muito tempo pra perder com você, desgraçada.

    A cabeça dela inclinou-se para o lado de maneira antinatural, como se um fio invisível a puxasse. Um som perturbador de ossos estalando ecoou pela sala. Sua pele clara começou a escurecer, como tinta derramada em um pergaminho. Os cabelos, antes presos em um coque meticuloso, desprenderam-se, ganhando uma tonalidade negra como carvão, caindo em mechas desiguais.

    Os olhos de Clara tornaram-se poços sem fundo, o branco desaparecendo enquanto um brilho maligno se instalava em seu lugar. Veias negras surgiram sob sua pele, espalhando-se como raízes. Seus lábios tremeram, revelando dentes que se alongaram em pontas afiadas.

    Mas não foi apenas isso. Sua estatura diminuiu, como se estivesse encolhendo sob um peso invisível. Os ombros estreitaram-se, as curvas do corpo transformando-se em linhas mais esguias e angulosas. Quando a transformação terminou, a figura que estava ali não tinha mais nada da autoridade ou da postura de Clara.

    Leonardo recuou, o som de sua cadeira arrastando-se no chão.

    — Não pode ser… — murmurou ele, a voz embargada.

    Ele levou a mão ao punho de sua arma, mas hesitou, os olhos arregalados enquanto encarava a mulher à sua frente. Mas, foi Gerhman que ficou extremamente assustado.

    — Condessa Decoral… — sussurrou, o nome saindo como uma maldição.

    A mulher sorriu, seus dentes afiados reluzindo à luz fraca.

    — Vejo que fui reconhecida — disse ela, a voz melodiosa, mas carregada de um tom sombrio que arrepiou até os mais experientes na sala.

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