— CAPÍTULO VINTE E DOIS —

    Depois da tormenta

    Após todo aquele alvoroço e muita organização, a noite chegou. Todos estavam impressionados com a força que aquelas duas demonstraram. Não eram apenas histórias contadas para crianças dormirem alegres e animadas; era real. Mais do que isso, eles presenciaram tudo acontecer. Agora, celebravam por terem superado aquela tempestade.

    — As caveiras passaram e cabeças voaram, e o barco explodiu! Quando saiu, pulou tão alto que quase escapuliu! Partido em dois, o barco afundou, e o esqueleto ficou. Podia ser rei, podia ser mal, mas do o-ceano-oooh não e-mer-giuuu! — Cantarolavam juntos em perfeita sincronia.

    — Kael! — Aproximou-se Hassini, trajando um elegante e confortável conjunto vermelho escuro. Estavam a sós na proa do barco. — Muito estranho, Kael, muito estranho. Tudo isso que está acontecendo.

    — Você tá falando dos esqueletos?

    — E do que mais seria?

    Hassini mostrou o esqueleto com a pérola incrustada no crânio, cercada por várias rachaduras ao redor da pedra.

    — Foi implantado?

    — É o que parece. Essa pedra de energia…

    — Acha que pode ser ela?

    — Não fale isso, Kael… Perderíamos muito…

    — Só pode ser. E eu encontrei uma cobra branca no caminho…

    — Uma cobra branca? Grande? Enorme? — Hassini arregalou os olhos, a expressão tomada pelo medo.

    — Ela mesma. — Kael se apoiou na amurada do barco, olhando o horizonte.

    — Kael! Hassini! Venham! Estamos jogando Pi-if! — gritou o capitão do fundo do navio.

    — Já vou! — respondeu Kael no mesmo tom, virando-se ligeiramente.

    — Isso é muito ruim… Muito… — Hassini balançou a cabeça, pensativo. — Coisas assim só aparecem quando a energia do mundo está sendo afetada… Você ensinou o básico aos meninos, não ensinou?

    — Acho que esse foi meu único erro com eles. — Kael falou, desviando o olhar.

    — Não ensinou, Kael? — Hassini colocou a mão na cabeça.— Acho que eu deveria te bater agora, mas aí destruiria esse barco todinho. — Ele suspirou, visivelmente irritado. — Bem que eu estava achando estranho… Eles terem tanta vontade de lutar assim.

    — Eu só queria afastá-los de todo mal. 

    — Para de ser burro, Kael! — Hassini elevou a voz — Como você pode sair com eles sem nem ensinar como matar um monstro? Ou pior, sem martelar na cabeça deles que monstros são monstros! — Ele deu um passo à frente. — Aposto que eles nem sabem usar energia!

    — É…

    — Kael! Vá para Aurenith, eu vou treinar eles —disse Hassini , firme.

    — Eu vou convencer Mila a sair de lá, concordo com você.

    — Me diz uma coisa… aquele menino de cabelo branco…

    — Você diz o Luca? — Kael ergueu o olhar, pensativo, enquanto encostava no barco.

    — Sim, ele… você sabe, né? 

    — Tenho noção do que você quer dizer, mas até agora não notei nada de estranho nele. Não é só ele… Minha menina, a Pearl, também é assim. — Kael respirou fundo antes de continuar. — Ela também tem cabelos brancos. E quando nasceu… as bordas das íris dela eram roxas, tenho certeza disso.

    — Kael… no que você se meteu? O que foi que você fez? 

    — Eu não fiz nada, Hassini, nada. Eles nasceram assim. A culpa não é minha…

    — Ensine-os a lutar. Cara, você tem que fazer isso quanto antes

    — Eles vão ser caçados em qualquer lugar. Com aqueles cabelos e olhos claros, não vão passar despercebidos em lugar nenhum. É um mau presságio…

    Ambos ficaram em silêncio por alguns segundos.
    — Me deixa com o garoto? — perguntou Hassini.
    — Não posso. A Mila tem que saber sobre isso.
    — E se, Kael? E se a profecia estiver cada vez mais perto? Se ela acordar e resolver acabar com tudo?
    — Vamos lutar. Por que você está com tanto medo? O que aconteceu com aquele Hassini confiante?
    — Como eu posso estar mais preocupado com seus filhos do que você mesmo? Você sabe mais do que ninguém o que isso significa. — Hassini se afastou, encarando Kael de longe. — Você tem que tomar uma decisão.

    Hassini foi para a festa, deixando Kael sozinho no canto, pensativo.
    E se? Decisão? Droga…

    Na roda de dança, Churra girava animado, mais vivo do que nunca depois de escapar de um perigo que mal conseguia imaginar. Mateo ria de Churra enquanto bebia as bebidas do capitão, que, por sua vez, dançava junto a Churra de forma completamente desajeitada e alucinada. Karl, Hassini e Luca riam dos dois, batendo palmas e entrando no ritmo contagiante da dança.

    Tudo isso está ficando muito chato, pensava Lótus, deitado no seu beliche. Meus irmãos sempre se destacam em alguma coisa, olhava para suas próprias mãos. E eu? Qual é a minha função? Eu precisava treinar. Fui completamente inútil contra a cobra e ainda mais agora contra o navio. Meu pai teve que me proteger de um esqueleto que eu podia derrotar sozinho. Botou o braço no rosto e estava prestes a chorar.

    Eu sou um… um… fra-

    Lótus? — A voz de Kael ressoava no quarto onde ele estava. — Achei você, garotão! O que houve? Você tá bem?

    — Ah, oi, pai. Eu tô bem sim. Por que você não tá lá em cima? — Levantou-se da cama e se sentou.

    — Porque você não tá lá em cima. — Kael se sentou ao lado de Lótus.

    — Por isso?

    — Exatamente.

    — Entendi.

    — Você não tá com a cara legal. Tava pensando em quê?

    — Em como venho sendo durante o percurso.

    — Você tá indo muito bem!

    — Você acha que pode me enganar, pai?

    — Não quis te enganar, mas olha… você se limita demais ao que seus irmãos fazem. Você gosta tanto de pensar que, se começasse a pensar enquanto luta, poderia ser melhor que os dois. Talvez você tenha que olhar mais pro seu umbigo.

    — Olhar pro meu umbigo?

    — É uma expressão antiga. Enfim, você tem que ser mais você.

    Mais eu?

    — Você consegue! Vamos lá pra cima. — Kael puxou Lótus com cuidado e lhe deu um empurrãozinho.

    Eles subiram e estavam fazendo uma carne bem gostosa em um compartimento da cabine do capitão. Todos estavam felizes e se divertindo bastante com a viagem. Ao mais tardar, Anna e Mateo ajustavam a rota para Aurenith com uma bússola diferente.
    Todos já haviam ido dormir. Karl roncava no beliche, na parte de cima, enquanto Luca, aos poucos, tirou um dos pés para fora da cama, depois o outro, e se levantou cuidadosamente para não acordar ninguém. Com muita cautela, abriu a maçaneta que rangia. Ele começou a abri-la bem devagar para não fazer barulho e saiu do quarto. Subiu as escadas calmamente até a proa do barco, onde não havia perigo de alguém ouvir o que fosse fazer ali.
    Tirou o livro de sua calça de dormir e olhou para ele.
    Perfeito!
    Abriu o livro novamente e folheou suas páginas. Viu que não havia nada nelas.
    Ah, é?
    Ele tomou distância da borda, segurou o livro, correu, e no momento em que ia jogá-lo, sentiu sua mão gelar. Um frio intenso percorreu seu corpo. Ele soltou o livro, que escorregou em direção à borda do navio. Luca se jogou para pegá-lo antes que caísse, quase ficando pendurado entre o mar e o navio.
    Ufa!
    Ele se levantou, limpou a capa do livro e o abriu. Dessa vez, na primeira página, havia algo que antes não tinha visto:

    Luca Stellara, é uma honra recebê-lo.

    Incrédulo, piscou os olhos para confirmar que as letras estavam realmente ali. Como um livro saberia meu nome? pensou. Como pode ter sido escrito por ninguém?
    Novas palavras mágicas começaram a aparecer:

    Luca Stellara, é uma honra recebê-lo. Não foi escrito por ninguém, você está enganado.

    As letras surgiam diante de seus olhos, como se o próprio livro estivesse vivo. Ninguém poderia ter escrito aquilo antes. O livro estava na sua mochila o tempo inteiro e ele o colocou de forma organizada, porque se alguém tivesse mexido, ele sairia do lugar. E não saiu. Ele estava sozinho com o livro desde o começo.
    Como? Como você se escreveu sozinho? E como consegue saber o que penso?
    Mais uma vez, a resposta veio, letra por letra, como magia fluindo das páginas:

    Não, Luca, eu já fui escrito, mas meu funcionamento é mágico. Uso apenas as letras que já me foram fornecidas. Conectei-me a você no instante em que aceitou me tocar.

    Luca encostou-se no canto do barco. Não deveria haver um contrato ou algo assim? Um aviso? Agora pareço um louco falando com um livro! Nenhuma resposta surgiu dessa vez.
    Para que você serve?

    Eu, Luca, detenho o conhecimento sobre certas coisas. Contudo, meu criador me fez apenas responder perguntas específicas. Não posso revelar conteúdos sem que sejam questionados diretamente. E, se sua pergunta estiver fora do meu conteúdo, eu não poderei responder.

    Ah, então vai ser bem difícil usá-lo…
    Luca fechou o livro. Decidiu que sua primeira pergunta deveria ser algo significativo, uma curiosidade que realmente valesse a pena. Se o livro veio do mar, talvez saiba algo sobre ele. Estou mais aliviado agora que sei como funciona.

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