Capítulo 16 – A Chegada Tempestuosa
O céu estrelado se rasgou em um clarão amarelo. Um vulto azul caiu como um raio. A lâmina brilhou — e o braço da figura mascarada voou pelo ar. O sangue jorrou.
Hazan e Aurora foram lançados para trás com o impacto. O chão tremeu. Aurora ainda sentia a vibração da Aura correndo pelo solo, resquício da chegada avassaladora da pujante.
Calista empunhava sua espada, onde correntes elétricas serpenteavam pela lâmina. Hadrian observava do alto de um telhado, pronto para atacar.
— Honestamente, como você sempre volta inteiro? — Calista estreitou os olhos para o homem mascarado, que acabara de esquivar por um triz.
A lâmina de Calista era tão letal quanto bela. Ornada com detalhes que refletiam seus cabelos e olhos azuis, possuía um formato de pena e símbolos misteriosos espalhados por sua extensão.
— Calista e Hadrian, meus velhos amigos! — disse a figura, expressando sua felicidade. — Só falta o Agnis para o nosso reencontro estar completo! Estavam com saudades? — Movimentou o braço restante com animação, ignorando a gravidade do ferimento.
Hadrian apertou o punho ao redor de sua espada. — Desta vez, eu vou matá-lo.
O homem soltou uma risada abafada. — Quem poderia imaginar que guardariam uma joia tão preciosa neste fim de mundo? — Seus olhos, um vermelho e outro verde, brilharam por trás da máscara. Viraram-se para Aurora com curiosidade quase devoradora antes de deslizar lentamente para Hazan. — E você… Nossa. Que bagunça, hein? Tem muito desespero pela frente.
Hadrian perdeu a paciência. Avançou com velocidade impressionante. Sua lâmina reluziu sob a luz das luas. Mas, ao desferir o golpe, a espada atravessou o corpo do homem como se ele fosse feito de ar.
— Eu gostaria de ficar, mas já terminei meu trabalho por aqui e saciei minha curiosidade sobre a Polariana, então… até a próxima! — disse o homem mascarado, retirando a cartola e fazendo uma reverência teatral.
Com um único passo para trás, despencou, sendo engolido pelo solo.
Hadrian socou a parede. — Ótimo, tava demorando para esse desgraçado retornar… — Por que não continuou atacando quando teve a chance? — perguntou a Calista, franzindo o cenho.
— Não podemos chamar muita atenção. — Ela o encarou de volta. — Estamos em uma área pública, as poucas casas que tem aqui são frágeis, e civis poderiam acabar se envolvendo nisso.
O olhar firme daquela mulher entrou em conflito com o rosto sisudo do guerreiro. Ele soltou um suspiro, guardando a espada. — Tsc, não vamos ter outra oportunidade como essa.
— Eu não teria tanta certeza. — Calista pegou o braço decepado do chão, mostrando-o para Hadrian com um sorriso confiante. — Dessa vez, temos uma forma de rastreá-lo.
— Acha que Agnis vai conseguir? — O guerreiro ergueu uma sobrancelha.
O sorriso da mulher se alargou de forma macabra. — Ah, ele com certeza vai…
A pujante encarou os jovens no fundo do beco e alguns homens suspeitos.
— Hadrian, limpe essa bagunça, escolte a garota para casa e investigue essa área. Precisamos descobrir que tipo de “pegadinha” Vanitas aprontou dessa vez.
— Eu levo a Alice para casa — disse Hazan, ao lado da garota tristonha.
— Essa ordem não é questionável — O guerreiro respondeu em uma feição nada contente.
— E quem disse? — O pardo franziu as sobrancelhas.
— E-espera! E-eu vou com ele, Hazan… — Alice interrompeu. — Eu vou ficar bem, já conheço o Sr. Hadrian… — Ela forçou um sorriso.
Hazan encarou Hadrian mais uma vez, que manteve o semblante sério. Ele ajudou Alice a se levantar e limpou a terra de suas roupas.
— Se cuida.
Percebendo os olhos preocupados do rapaz mais uma vez, Alice jogou uma mecha do cabelo para trás da orelha e demonstrou um sorriso verdadeiro. — Tá…
Era comum encontrar Agnis acordado até altas horas. A papelada da guilda consumia boa parte de seu tempo. Após cumprir com suas obrigações, sempre mergulhava em estudos para refinar seu conhecimento como curandeiro.
O escritório de Agnis cheirava a papel envelhecido e tinta fresca. As prateleiras de madeira escura, sufocadas por livros de todos os tamanhos, pareciam prestes a ceder sob o peso do conhecimento.
Entre os volumes, globos terrestres antigos, frascos alquímicos e pequenos artefatos mágicos pulsavam como corações adormecidos, emitindo um brilho sutil na penumbra.
Na mesa central, uma pesada estrutura de carvalho, pilhas de documentos e papéis formavam torres desiguais que ameaçavam desmoronar ao menor movimento.
Um tinteiro ornamentado repousava no centro, ao lado de penas e pergaminhos inacabados, enquanto um candelabro emite uma luz trêmula que ilumina o ambiente com tons dourados.
Sentado em sua cadeira de couro, com as costas ligeiramente curvadas, sua postura demonstrava cansaço.
Seu cabelo castanho-claro estava amarrado em um rabo de cavalo que caía desleixadamente sobre o ombro, enquanto seus olhos castanhos, cercados por profundas olheiras, percorriam os papéis à sua frente com o auxílio de óculos redondos.
Com um suspiro pesado, ele puxou um relatório em particular de uma pilha ao lado. O documento era sobre um caso que vinha ocupando sua mente. Ele alisou o pergaminho com cuidado antes de começar a reler o conteúdo.
Relatório de Avaliação Médica
Paciente: Hazan (Sobrenome não informado)
Altura: 178cm
Peso: 68kg
Idade: 20 anos (estimado)
Condição Inicial: Grave
Anomalias Observadas: Durante o exame, foi constatada a ausência completa de Veias de Mana ou Canais de Aura, características geralmente encontradas em qualquer ser humano comum. Em lugar disso, sua Veia da Vida apresenta uma vitalidade incomum, que parece sustentar e regenerar os tecidos a uma velocidade surpreendente.
Recuperação Inesperada: O paciente demonstrou sinais de melhora acentuada em apenas dois dias desacordado, um tempo consideravelmente curto para a extensão de seus ferimentos. As fraturas começaram a consolidar antes do previsto, e as lacerações profundas apresentaram cicatrização acelerada. Isso sugere que sua vitalidade não apenas sustenta, mas também otimiza o processo de cura, substituindo qualquer necessidade de intervenção mágica convencional.
Hipóteses:
- Origem Incomum: A estrutura biológica de Hazan pode ter sido alterada por um evento externo, possivelmente envolvendo magias de círculos superiores.
- Características Biológicas: A pele morena suave e o físico de um guerreiro indicam uma terra natal quente e difícil de sobreviver. Tahtoa do Sul?
- Fator Desconhecido: Algum elemento ainda não identificado pode estar potencializando sua regeneração. Estudos adicionais são necessários.
Recomendações:
- Continuar monitorando sua recuperação.
- Realizar exames mais aprofundados para identificar a fonte de sua vitalidade.
Agnis finalizou a leitura, observando o pergaminho com um misto de curiosidade e preocupação.
Já reli esse pergaminho diversas vezes, e ainda assim, parece difícil de acreditar… O que exatamente é você, Hazan?
— Você sempre faz essa cara idiota quando está focado, hein? — disse uma voz familiar.
— Calista… Até quando você vai continuar com essas tentativas medíocres de sustos? — Agnis soltou um suspiro, sequer encarando sua companheira.
Sua atenção estava voltada para outros documentos referentes a guilda.
— Você nunca ouve a porta, né? Se fosse um inimigo, já estaria no chão.
— Se fosse um inimigo, ele não teria chegado até aqui. E falando em surpresas… você trouxe visitas.
— E uma lembrancinha também. Pega.
Agnis estendeu a mão, e Calista estendeu o braço decepado, ocorrendo um aperto de mãos.
— Francamente, suas brincadeiras não têm graç…
Ao observar o braço sem dono, o curandeiro saltou para trás em um susto e o jogou para cima, derrubando a cadeira em que estava sentado e caindo com as pernas para o ar.
Calista agarrou a mão ainda no ar com um uma feição satisfeita.
As mãos pálidas de Agnis tatearam a mesa de madeira, derrubando livros e documentos no chão enquanto arrumava espaço para se levantar.
Quando levantou, notou o sorriso brilhante de Calista, e as feições sombrias de Hazan e Aurora no fundo da sala.
— Você não deveria estar aqui! — comentou Agnis, apontando para Hazan, ainda ajeitando os óculos tortos enquanto seu rosto voltava ao tom natural depois do susto monumental.
— Não enche — respondeu o jovem, tirando cera do ouvido. — Virou minha mãe, é?
— Olha, seu pivete…
Calista envolveu seu braço ao redor de Agnis. — A propósito, Aurora, obrigada por ter trago aquele guarda para nós!
Aurora assentiu. — Marcus, né? Ele foi útil?
Calista exibiu um falso sorriso gentil. — Útil? Querida, ele cantou como um passarinho depois de alguns… gentis incentivos. Descobrimos informações interessantes sobre a fortaleza. Mas William, aquele danado, ainda tá sumido.
Aurora apertou os lábios, frustrada. — Então ele ainda está foragido…
— Por enquanto, sim. — Calista deu de ombros, mas logo mudou de tom, seus olhos brilhando de entusiasmo. — Mas chega de más notícias! Vamos falar sobre coisas boas. Tipo o futuro brilhante de vocês dois aqui na guilda.
— “Brilhante”? — Hazan finalmente olhou para ela, franzindo o cenho.
— Claro, meu caro! Olha, não é todo dia que aparecem talentos promissores como vocês dois. Já até dei uma olhada no painel de missões, e tenho algo que é perfeito para vocês.
— Um teste de admissão não é necessário para entrar em uma guilda? — Aurora arqueou a sobrancelha, desconfiada.
— Vamos considerar que essa missão é o “teste” de vocês, combinado?
Hazan deu alguns passos para frente. — E qual é a recompensa?
— 50 moedas de prata! Afinal, estamos falando de uma masmorra renovada de sua corrupção!
Hazan inclinou a cabeça, curioso. — “Renovada de sua corrupção”? O que isso quer dizer?
Antes que Calista pudesse responder, Aurora deu um passo à frente e colocou uma mão no ombro de Hazan, sorrindo como quem explica algo óbvio. — Ele sabe. Só não lembra direito. Certo, Hazan?
— Eu sei? — Hazan piscou, confuso, mas se calou ao receber um beliscão discreto de Aurora.
— Enfim! — Aurora mudou rapidamente de assunto. — Não temos onde passar a noite.
— Ah, sim, claro! — Calista remexeu em um bolso e puxou um molho de chaves, retirando dele uma chave de bronze. — Só tem um quarto disponível no último andar, sabe como é, estamos cheios de novos trabalhadores aqui. Então vocês vão ter que dividir.
— O quê? — Hazan e Aurora disseram ao mesmo tempo, em uníssono, trocando olhares desconfortáveis.
— Relaxem, o quarto é grande o suficiente. E, quem sabe, ajuda vocês a se conhecerem melhor. Vocês formam uma dupla interessante, sabia? — Calista sorriu, cheia de malícia, antes de virar a chave na direção deles.
O sorriso cheio de malícia fez Aurora bufar, já saindo da sala com passos firmes.
— Que seja. Vamos partir amanhã mesmo.
Hazan hesitou, claramente menos entusiasmado com a ideia de dividir o quarto. Quando estava prestes a segui-la, Agnis, que até então estava empilhando papéis bagunçados por Calista, ergueu finalmente a voz
— Hazan. — O tom grave chamou sua atenção. — Passe no meu escritório depois da missão. Tenho algo importante para te dizer.
Hazan fez uma careta, arqueando uma sobrancelha. — Você já cuidou dos meus ferimentos, o que mais quer ver?
— É sério! — Agnis enfatizou, cruzando os braços.
Com um suspiro dramático, Hazan deu de ombros e saiu. Assim que o som de passos desapareceu, o sorriso característico de Calista se desfez, revelando uma expressão séria que raramente aparecia.
— Calista, você tem certeza de que não exagerou? Essa missão é ranque prata. Eles acabaram de chegar. — Agnis a encarou com uma mistura de preocupação e frustração.
— Minha intuição nunca falha. — Ela deu um tapinha reconfortante no ombro dele e piscou. — Mais importante, contei sobre Vanitas para eles durante o caminho para cá.
Agnis parecia incrédulo.
— E por que faria isso?
— Ele voltou.
Agnis engoliu seco e assentiu.
— Faz duas quinzenas que você enterrou a lâmina no peito dele… Achei que estivesse morto.
— Eu também. Mas, aparentemente, sobreviver é a sua especialidade. Aqueles dois — Calista indicou vagamente na direção em que Hazan e Aurora tinham saído — seguraram o Vanitas tempo suficiente para que eu chegasse. Estava patrulhando a área com Hadrian quando senti um fluxo familiar de Mana.
— Eles sobreviveram contra ele? — Agnis parecia genuinamente impressionado.
— Quase não. Estavam prestes a serem feridos de forma fatal quando eu consegui a nossa pista — disse ela, fazendo um gesto para o braço decepado. — Mandei Hadrian investigar os subúrbios. Vamos falar disso quando ele voltar.
Agnis estreitou os olhos.
— Calista… você está bem? — A preocupação era evidente em seu tom.
— Sempre estive. — O sorriso gentil que ela lançou o fez questionar ainda mais. — Vou treinar um pouco enquanto espero o retorno do Hadrian. Boa sorte com suas papeladas!
E com isso, ela saiu do escritório, deixando Agnis sozinho com uma pilha de documentos, uma preocupação crescente e, como sempre, a sensação de que trabalhar com Calista era como viver em um tornado organizado por uma raposa maluca e ardilosa.
Depois de subir três lances de escada, errar pelo menos quatro portas e quase acabar preso dentro de um armário de vassouras, Hazan aceitou uma dura verdade: seu senso de direção era pior que qualquer adversário que já tinha enfrentado.
Todos os corredores pareciam idênticos, todas as portas eram incrivelmente genéricas, e ele começava a suspeitar que o arquiteto daquela fortaleza era um sádico que construía edifícios com o único propósito de humilhar visitantes desorientados ou criar labirintos.
Já cogitava deitar no chão e aceitar seu destino como um morador permanente do corredor quando uma porta se escancarou de repente. Dela surgiu um homem alto, barbudo, coberto de cicatrizes, que o encarou por um instante antes de arregalar os olhos como se tivesse acabado de ver um milagre.
— É você! O herói da fortaleza! — O ex-escravo gritou, com um sorriso tão largo que parecia prestes a engolir o próprio rosto.
Antes que Hazan pudesse negar ou se explicar, o homem segurou suas mãos como se fosse um herói lendário.
— Da última vez que te vi, você estava acabado, garoto! Ouvi de Calista que você e sua parceira enfrentaram os guardas e derrotaram o feral! Muito obrigado!
— Eu não fiz nada de mais, agradeça ao pessoal da guilda… — Hazan tentou se soltar, mas o aperto do homem era digno de alguém que não queria largar seu bilhete da sorte.
O problema foi que o grito chamou a atenção de outras pessoas no corredor. Uma mulher espiou pela porta ao lado e, ao reconhecer Hazan, soltou um “Ah!” animado, seguido por mais portas se abrindo como um efeito dominó. De repente, Hazan estava cercado por pelo menos dez pessoas, todas tentando apertar sua mão ou contar como ele e a Guilda da Pena Azul tinha salvado suas vidas.
— Escuta, eu realmente não fiz nada, na verdade, eu nem planejava salvar… — Hazan tentou explicar, mas sua voz foi engolida pelo alvoroço.
— Não, você é um herói! — Alguém gritou.
— Pode abençoar meu filho? — Uma mulher perguntou, segurando um bebê enrolado em um cobertor.
Hazan começou a apertar mãos freneticamente, não por educação, mas por puro instinto de sobrevivência. Se aquilo continuasse por mais um minuto, seria erguido nos ombros e declarado salvador oficial da fortaleza.
Quando finalmente avistou a última porta, lançou-se para ela como um náufrago vendo terra firme. Girou a maçaneta com a urgência de quem desarma uma bomba, apoiou as costas na porta, fechou os olhos e suspirou profundamente.
Ele nem sabia se aquele era realmente seu quarto, mas isso agora era um problema para o Hazan do futuro.
— Porcaria, bando de malucos…
Foi só então que abriu os olhos e percebeu.
Aurora estava sentada na beirada da cama, os cabelos levemente bagunçados, e sem roupas cobrindo a parte superior do corpo. Faixas recém-trocadas envolviam seu estômago e uma área ao redor dos seios. Apenas uma calça de couro cobria a parte inferior do corpo, e ao seu lado, um balde cheio de ataduras e faixas manchadas de sangue seco indicava que ela havia acabado de terminar seus curativos.
O rosto de Hazan se tornou completamente neutro. Por dentro, estava desconfortável e irritado consigo mesmo. Por fora, parecia alguém sem emoções.
Discretamente, virou de costas, cruzou os braços e encarou o chão com tanta determinação que parecia estar analisando segredos místicos escondidos nas tábuas do assoalho.
Aurora observou a cena e sequer demonstrou surpresa. Já estava acostumada a lidar com idiotas de todos os tipos, mas Hazan ainda era um enigma para ela. Sua personalidade imprevisível, suas ações, sua força incomum, tudo era novo para alguém que estava acostumado a ver as coisas se repetirem.
Havia muitas razões para se incomodar com a presença de Hazan ali. Mas, por algum motivo, não sentiu a urgência de expulsá-lo. Talvez fosse o fato de que ele parecia mais envergonhado do que ela mesma deveria estar.
Decidiu não cobrir o corpo de imediato. Se ele tinha intenções ruins, aquele era o momento perfeito para revelá-las.
O silêncio se arrastou.
Aurora ergueu uma sobrancelha, esperando para ver se ele cederia primeiro.
Até agora, o pardo havia se mostrado um sujeito esperto. Queria ver quanto tempo isso durava.
O silêncio desconfortável continuou, e ele aproveitou o momento oportuno para observar o quarto, tentando ao máximo ignorar Aurora.
O espaço era pequeno, claramente construído para uma pessoa só, mas tinha um ar aconchegante. As paredes de pedra eram decoradas com tapeçarias simples, e a cama — única, por sinal — ocupava o centro.
Havia um armário enorme, uma escrivaninha com um espelho, e outro cômodo que parecia ser um banheiro.
Enquanto observava o quarto, sua curiosidade acabou vencendo, e ele olhou por cima do ombro de forma discreta. Viu faixas cobrindo queimaduras nos ombros e costas de Aurora.
— Essas queimaduras… — Ele hesitou, a voz mais baixa. — Ainda não curaram?
Aurora nem mesmo se virou. Ele ainda era capaz de sentir simpatia? Ou era uma atuação que esperava baixar sua guarda?
— Diferente de você, eu sou normal. Não me recupero de ferimentos como esse em três ou quatro dias.
Hazan apoiou a mão na nuca, lembrando das dificuldades que passaram na fortaleza. A culpa pesou em seu olhar, motivando um passo à frente, aproximando-se de Aurora.
— Vou te ajudar com isso. É o mínimo que posso fazer, já que você se feriu por minha causa.
No entanto, Aurora não pensava da mesma forma. E tal proposta vinha com segundas intenções que ela reconhecia muito bem.
Antes que ele pudesse tocar nas faixas, Aurora escondeu os seios com uma mão e o empurrou com força suficiente para fazê-lo recuar.
— Não preciso da sua ajuda. — Em poucos movimentos rápidos, ela terminou de enfaixar as feridas e vestiu sua camisa branca com capuz.
Quando se virou, segurava uma adaga que apontou diretamente para o peito de Hazan.
— Vamos esclarecer algo — a voz dela saiu em alto e bom som. Aurora ergueu o queixo levemente, avaliando Hazan em uma postura superior. — Eu não gosto de você. E muito menos confio em você.
Ela se levantou, apontando a adaga para a garganta de Hazan num gesto firme. — Se estamos aqui, é por causa de uma maldição. Nada mais. — Seus lábios esboçaram um sorriso irônico. — Nosso único objetivo é acabar com isso o mais rápido possível. Não precisamos de nenhum sentimentalismo patético aqui, não concorda?
Hazan cerrou os punhos. Como ela podia ser tão insensível com alguém que demonstrava uma preocupação genuína?
— Tudo bem. — Sua voz saiu firme. — Mas você tem o estranho hábito de apontar essa adaga na minha direção. Faça isso de novo e, maldição ou não, eu não vou ignorar essa atitude irritante.
Aurora inclinou a cabeça, os olhos estreitando-se em pura desconfiança. Após um instante que pareceu uma eternidade, ela abaixou a adaga com um movimento lento, porém deliberado.
Hazan saiu do quarto, fechando a porta atrás de si com um movimento firme, mas contido. O ar frio se infiltrava pelos corredores por pequenas janelas nos cantos, e ele encheu os pulmões, deixando aquela sensação refrescante se espalhar pelo corpo.
Ficar parado não ajudaria. Sem um destino em mente, começou a andar pelos corredores da guilda, os passos ecoando baixos no piso de madeira. O silêncio era quase absoluto, quebrado apenas pelo ranger ocasional de uma viga antiga ou pelo som distante do vento soprando lá fora.
Seu corpo se movia no automático, guiado pela necessidade de clarear a cabeça. Ainda sentia o resquício daquela conversa na mente, mas não fugia delas. Estava disposto a encará-las de frente.
Ela diz que não confia em mim, mas salva minha vida. Diz que não se importa com Aspen e Lunna, mas os leva para casa em uma carruagem.
Quando se deu conta, estava diante de uma porta lateral que levava aos fundos da guilda. Uma placa de madeira pendia ali, exibindo a mensagem:
“Local em manutenção. Entrada restrita a funcionários.”
Tentou empurrar e notou que estava emperrada. Fez um pouco mais de força, e a fechadura, antes teimosa, se provou frágil perante a sua força. A porta simplesmente se abriu, sendo recebido por uma lufada de ar noturno, trazendo consigo o cheiro de terra e madeira úmida.
O espaço nos fundos era negligenciado. Um velho poço de pedra dominava o centro, com musgo crescendo entre suas rachaduras e uma corda gasta pendendo de uma roldana enferrujada.
Algumas cadeiras de madeira estavam espalhadas ali, algumas tombadas, outras com uma perna quebrada ou encostadas sem cuidado umas nas outras. Tinha barris velhos acumulando poeira, panos deixados ao acaso e ferramentas largadas como se alguém tivesse começado um trabalho e simplesmente desistido.
Existia um pequeno depósito de madeira também, provavelmente o lugar onde as ferramentas deveriam estar.
Eles têm um prédio tão incrível, mas deixam um canto desses desorganizado? Que besteira.
Hazan parou por um momento, absorvendo o cenário. Havia algo incômodo naquela desordem. Sentiu um desconforto inexplicável se remexer em seu peito ao ver a poeira acumulada, os objetos fora do lugar, a sensação de abandono impregnando o espaço.
Não fazia ideia de onde aquilo vinha, mas a bagunça parecia errada. Como se não devesse estar daquele jeito. Como se ele não suportasse vê-la daquele jeito.
Antes mesmo de perceber o que estava fazendo, já havia começado a organizar as cadeiras. Endireitou as que estavam tortas, recolheu as que estavam caídas, testando-as para ver quais ainda resistiam ao peso de alguém e quais podiam ser reaproveitadas mais tarde.
Encontrou um pano encardido jogado sobre um barril e usou-o para limpar as superfícies mais empoeiradas. Guardou as ferramentas largadas no depósito, empilhou os barris de forma ordenada e, sem que notasse, o ambiente começava a mudar.
Por fim, parou ao lado do poço. Encostou-se em sua borda de pedra fria e passou a palma da mão sobre a superfície áspera. A textura do musgo contra sua pele provocou um arrepio. Ali, sob a luz pálida das estrelas, encarou suas próprias mãos.
Havia calos e cicatrizes dos dias em que passou treinando na fortaleza. Deslizou os dedos pelo antebraço, sentindo as cicatrizes dos cortes implacáveis de Edgard.
Naquela hora, eu sobrevivi através da minha própria força. E isso me deixou confiante.
Suas sobrancelhas franziram em uma expressão insatisfeita.
Mas contra aquele mascarado… Se não fosse por Calista, não sei dizer o que teria acontecido. Eu baixei minha guarda.
Hazan inspirou devagar, balançando a cabeça e deixando os pensamentos fluírem. Havia algo muito estranho, mas não era capaz de decifrar. Não apenas pela sensação de familiaridade ao organizar aquele lugar, mas pelo vazio que sentia ao não conseguir lembrar por quê. Era como se parte de si estivesse trancada atrás de uma porta cujo a chave não era sua.
Seus olhos se voltaram para o céu. A noite estava límpida, as estrelas brilhavam com uma intensidade quase reconfortante. Algo naquela imensidão silenciosa parecia fazer sentido.
Sentou-se em uma das cadeiras que havia arrumado, cruzando os braços sobre o peito. O vento era frio, mas não o incomodava. Deixou a cabeça pender para trás, permitindo-se apenas existir naquele momento, sob aquele céu que parecia indiferente às suas dúvidas e angústias.
Aurora podia desconfiar dele o quanto quisesse. Não era nela que colocaria sua energia. Estava em um mundo que não conhecia, refém de leis e de um senso comum completamente diferentes. Precisava se adaptar o mais rápido possível, se tornar mais forte, e destruir cada rocha no caminho, uma de cada vez.
Um sorriso de canto surgiu em seus lábios.
Tenho certeza que mais problemas irão surgir, mas quer saber? Eu não ligo. Vou resolver todos eles do meu jeito.
O pensamento ficou ecoando em sua mente por alguns instantes, mas então, o cansaço começou a pesar. O silêncio, a brisa fresca, o cheiro de terra… Tudo parecia conspirar para empurrá-lo para um sono inesperado.
Seus olhos se fecharam devagar, e, sem perceber, adormeceu sob o céu estrelado, no meio de um lugar que ele havia organizado sem nem saber o motivo.
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