— CAPÍTULO VINTE E TRÊS —
A ilha que só restou memórias
Dias se passaram em alto-mar. Foi uma viagem longa e cansativa, mas muito animada. Hassini se despediu logo cedo, pegando um barco pequeno junto a Churra, que desceu para reabastecer os suprimentos do navio — comida, água, equipamentos básicos, entre outros. Eles partiram em direção ao porto. Lamart não atracou, pois Kael havia mencionado que seguiria para Dib, e o capitão aceitou levá-lo.
Agora estavam ali, mais perto que nunca, do porto de Aurenith. A proximidade permitia sentir o aroma das comidas e avistar a areia no fundo daquela baía onde o porto estava localizado.
O porto era uma visão deslumbrante aos olhos de Luca, completamente diferente do que ele havia visto em Yeni. Aquele lugar exalava elegância. Construído sobre plataformas suspensas, conectadas por uma passarela de madeira negra perfeitamente polida, ele reluzia sob luzes suaves, mesmo durante o dia. Lâmpadas mágicas, suspensas em postes detalhados de um material estranho que não parecia ferro, iluminavam a estrutura de forma impressionante.
O movimento das pessoas era constante, mas organizado. Não havia tumulto nem sinais de caos. Mercadores traziam caixas e mais caixas para um enorme barco de madeira, tão grande que mal cabia naquela baía. Eles se comunicavam em meio a gritos de comando, coordenando o levantamento dos caixotes e dando ordens para organizar o que seria ou não embarcado.
Grupos de pessoas podiam ser vistos reunidos, utilizando equipamentos estranhos e até mesmo espadas. Barracas estavam dispostas de forma alinhada, e seus vendedores anunciavam seus produtos em voz alta, tentando atrair a atenção tanto dos recém-chegados quanto daqueles que partiam em barcos com bandeiras hasteadas.
— Pai, aquela é a bandeira de Aurenith? — perguntou Lótus, apontando para um dos barcos que passavam cheios de pessoas.
— Sim, Lótus. — respondeu Kael.
— E também só é usada nos navios de transporte! Quem atacar um navio desses estará declarando guerra contra o reino de Aurenith. — acrescentou Mateo enquanto guiava o navio.
— E quem é o rei? — perguntou Luca, curioso.
— É um velho, dizem que é muuito forte. — respondeu Churra.
Um velho? Eu não ousaria enfrentá-lo… Para dominar uma área que antes era caótica, ele deve ser insano, pensou Kael.
Nos bares, pessoas bêbadas brigavam entre si, algo comum de se ver. Logo, foi possível notar indivíduos com armaduras brancas. Um deles carregava uma lança adornada com a bandeira de Aurenith: branca, com o símbolo de uma coroa inclinada. Esses guardas avançavam em direção às brigas, resolvendo o caos com uma facilidade impressionante — Karl percebeu imediatamente que eram pessoas muito fortes.
Churra não demorou a retornar, trazendo tudo o que era necessário para continuarem a viagem. E assim, aos poucos, o porto mais magnífico que haviam encontrado foi ficando para trás. Talvez não fosse o principal porto de Aurenith, mas certamente era o mais grandioso que Luca, Lótus e Karl já tinham visto.
Mais uma vez, estavam distantes e em alto-mar. As terras de Aurenith demoraram para desaparecer no horizonte, mas já não eram mais visíveis. Uma noite e um dia foi o que precisaram para se aproximar de Dib.
Na popa do navio, Kael permaneceu junto aos meninos, observando o caminho que o navio já havia deixado para trás.
— Pai… — disse Luca, com a voz quase aguda, mas, ao mesmo tempo, pesada.
— Oi, Luca.
— Tá com saudade da mamãe?
— Claro que estou. Estou ansioso para terminar o que preciso fazer e voltar para casa.
— Como vamos voltar? — perguntou Lótus, sua voz encorajada e suave.
— Vamos com eles. Disseram que vão levar a gente de volta.
— Eu gostei muito do Hassini. Vou sentir falta dele. — disse Karl, sua voz mais firme do que a dos outros dois.
— Faz tanto tempo que somos amigos que eu nem sei quando comecei a gostar dele de verdade.
— Quem é Aurora, pai? — questionou Karl, aproximando-se de Kael. Suas roupas pressionavam-se contra o corpo por causa do vento.
— Ah, da história do Hassini? Ela é uma amiga minha. É usuária de magia santa, a magia da fé.
— Magia santa? Magia da fé? Ela é uma maga? — perguntou Lótus, curioso.
— É uma magia muito forte contra monstros e… pelo contrário, Aurora era uma espadachim bem poderosa.
— Você não viu o Hassini dizendo isso, seu doido? — provocou Luca.
— O que você quer, Luca? Quer brigar? É?
— Parem, vocês dois. — Kael interveio, firmemente.
— Terra à vista! — anunciou Churra, quebrando a tensão.
Todos se dirigiram para a proa, os meninos correndo, enquanto Kael caminhava suavemente, como se nem quisesse ver aquela terra. O barco balançava levemente, e a ilha se aproximava cada vez mais.
— Dib, a ilha vazia — disse o capitão, enquanto ativava algo em sua cabine, preparando o barco para atracar.
De dentro do convés, os três observaram o cenário desolado. Uma mistura de silêncio e tristeza pairava no ar.
— Vou esperar vocês aqui, tudo bem? — perguntou o capitão.
— Tudo sim. No máximo, voltamos amanhã. — respondeu Kael, com firmeza.
Luca, Kael e Lótus se despediram, enquanto os que permaneceram no navio lhes desejavam boa sorte com um tom suave.
— Vou sentir saudade das suas piadas, Churra! — disse Karl, animado.
— Volte logo, viu! — respondeu Churra, sorrindo, enquanto Karl embarcava no pequeno barco e Kael assumia os remos, levando-os em direção à costa.
Quando alcançaram a praia, Kael puxou o barco para fora da água e o prendeu com uma corda em um pedaço de madeira cravado no chão. Lótus olhou para um lado e para o outro, observando o ambiente ao redor. O local mostrava vestígios de um antigo porto, agora reduzido a destroços espalhados pela areia. Fragmentos de madeira estavam espalhados por toda parte, muitos deles fincados no solo, como se fossem os restos de uma destruição.
— Pai… o que aconteceu aqui? — perguntou Lótus, com um tom de medo na voz.
— É uma longa história. — respondeu Kael, com frieza, sem desviar o olhar.
Andaram por um caminho que Kael parecia conhecer bem, levando-os para o interior da ilha. Seguiram por ele, passando por diversas ruínas de casas antigas, destruídas não pelo tempo, mas por algo que eles desconheciam.
— Pai, o senhor conhecia essas casas? — perguntou Karl em tom baixo.
— Conhecia. — respondeu Kael, de forma breve.
Entre os destroços estavam escombros, pedaços de móveis, ferramentas e objetos pessoais que a chuva e o tempo ainda não haviam conseguido apagar completamente.
O silêncio que os meninos sentiam ao seguir Kael era inquietante, sufocante e assustador. Não havia sinais de vida, nem sequer o som de aves. Apenas o ruído distante da praia, que ia desaparecendo à medida que caminhavam. O peso daquele lugar deserto refletia-se em cada passo que davam, tornando o ar ao redor ainda mais opressivo.
Entraram em uma nova trilha que os levou para dentro de uma floresta pouco densa. A luz do sol passava facilmente entre os troncos, como se há muito tempo houvesse menos árvores ali. O chão estava coberto por folhas secas, criando um cenário abandonado.
— Eu preciso mostrar algo para vocês. — Todos ficaram em silêncio. — Esta vila, esta ilha, já foi maravilhosa. Havia luzes, pessoas incríveis… — Kael falava enquanto caminhava pela trilha, com a voz pesada de melancolia.
— Mas, em um único dia, tudo foi destruído. Criaturas horríveis surgiram do nada, mataram, destruíram tudo o que era vivo. Antes disso, eu tinha ganhado Joe do meu pai.
Pai? Pai do meu pai? Pensou Luca, sentindo uma curiosidade repentina.
Eu nunca tinha parado para pensar nisso… Refletiu Lótus, surpreso ao perceber que nunca havia considerado a ideia de Kael ter tido um pai.
— Mas naquele dia, tudo deu errado. Eu briguei com eles porque queria ir embora. Deixei Joe na casinha dele e saí, andando e pensando em tudo o que havia acontecido. Até que ouvi os gritos vindo da cidade e corri imediatamente para casa. Naquela época, eu era, com certeza, mais fraco do que vocês. Não sentia nada e nem conseguia enxergar energia.
Kael parou de falar abruptamente
Chegaram ao fim da trilha, onde os meninos viram com seus próprios olhos uma casa de madeira quase intacta, mas com um buraco enorme no teto. Ao lado, um estábulo desabado completava o cenário de abandono.
Kael foi o primeiro a se aproximar e entrar. Parou logo na entrada, os olhos varrendo o ambiente enquanto lágrimas começavam a surgir. Entre os destroços, avistou algo que fez seu coração pesar ainda mais: o machado do seu pai, deixado como testemunha silenciosa de seu último ato.
Ele o segurou com mãos trêmulas, e as lágrimas, antes contidas, começaram a rolar sem controle. Um grito silencioso emergiu de seu peito, o som mudo de uma dor insuportável. Kael caiu de joelhos, abraçando o machado como se estivesse segurando as últimas memórias de seu pai. O peso de suas últimas ações o esmagava, trazendo à tona lembranças que ele tentou por tanto tempo enterrar.
Os meninos permaneceram paralisados, incapazes de reagir. Eles nunca haviam imaginado ver o próprio pai, o homem que sempre foi um símbolo de força e determinação, tão vulnerável, tão quebrado. Ali, no chão, estava Kael, chorando como se o tempo tivesse parado.
— Meu pai… minha mãe… morreram para me proteger. Joe, por algum motivo, sabia o que fazer. Ele… me agarrou e correu, obedecendo às ordens do meu pai. Eu… eu não fiz nada. — Kael falava entre soluços, as lágrimas escorrendo livremente pelo rosto.
— Um barco estava no porto ao sul, e eu só consegui sobreviver porque ele… pulou tão alto que alcançou o barco. E quando ele… quando… morreu, eu nem pude chorar por ele. Nem pude fazer um funeral, nem amá-lo uma última vez. Esse mundo…
A voz de Kael se quebrou, e ele começou a chorar como uma criança. A dor era tão profunda e tão sincera que, pela primeira vez, os meninos conseguiram sentir a energia que emanava dos sentimentos do pai.
Lótus fechou os punhos, sentindo a raiva crescer dentro de si.
Luca não conteve as lágrimas, emocionando-se junto com o pai.
Karl, por sua vez, sentou-se ao lado de Kael e o abraçou com carinho.
— Pai, você é incrível — disse Karl, com a voz mais suave e reconfortante que conseguiu.
Naquele momento, Kael não disse nada. Apenas se calou, retribuindo o abraço de Karl enquanto as lágrimas continuavam a cair.
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