— CAPÍTULO VINTE E QUATRO —
Beatitudo perierunt
Kael se acalmou, todavia, isso era inesperado. Foi uma grande surpresa para os meninos, e eles guardaram isso em suas memórias. Humanos choram e sentem dores, assim como Kael, o pai que eles tanto amam e admiram.
Luca sentiu o peso do mundo se acomodar em seus ombros. Cada lágrima de Kael era como uma brasa ardente em seu próprio peito; por um momento, imaginou-se no lugar dele.
A mente de Karl se encheu de pena, sentia um aperto no peito; a tristeza de Kael era também a sua tristeza.
Lótus, por fim, sentiu as emoções negativas dominá-lo; ele sentia raiva da injustiça que seu pai sofreu. Prometeu a si mesmo que essa dor não ia acontecer, ele ama o pai acima de tudo e nunca quer vê-lo assim de novo.
As dores passadas naquele lugar eram constantes. Enquanto ele percorria os cômodos, as lembranças afloraram, intensas e vívidas, como se o tempo não tivesse passado. Cada canto da casa parecia sussurrar segredos, revivendo momentos de sua vida.
A família dele era muito presente; o pai fazia de tudo por ele, a sua mãe era meiga e o tratava com carinho. Ele explicou grande parte da sua maravilhosa infância com seus pais. Ele sente falta, sente saudades de tudo o que passou com eles; o tempo, porém, seguia seu curso, e as memórias, tanto as alegres quanto as tristes, se acumulavam no passado e, mais que ninguém, ele queria enterrar as memórias ruins ali e carregar as boas consigo.
Para ele, os pais foram uma das melhores coisas que pôde ter, tesouros que a vida lhe concedeu.
A cada nuvem que observavam passar, mostrava que o tempo era cruel e, ao mesmo tempo, aliviador. Nada como ele poderia curar uma ferida tão grande como essa. Os filhos ficaram ao lado do pai, conversaram com ele, sorriram, contaram histórias, segredos de como o prato favorito de Kael havia sumido e como eles amam a mãe deles. Fizeram uma fogueira cujas chamas crepitavam ao anoitecer, iluminando seus rostos com uma luz quente e aconchegante. Eles construíram algo que se assemelhava a uma cabana; algo improvisado, com a força que tinham, foi incrivelmente rápido.
Esquentaram comidas enlatadas, o metal tinindo suavemente contra as chamas, tiradas de suas mochilas e dadas de presente por Churra, prevendo o dia que passariam em Dib. E quando a tarde caía e a noite se aproximava, os ventos sopravam e o fogo demonstrava sua incrível e grande beleza. Kael se sentia em casa, um lugar onde seu coração finalmente se aquietou. Sua família não estava completamente reunida, mas, enfim, ele estava feliz.
Mila foi, com certeza, a maior cura dele. Ela foi a responsável por trazer uma família tão boa a ele. Rodeados à fogueira, Kael olhava seus filhos. Olhou para Luca e sempre admirava aqueles lindos olhos azuis e seu sorriso perfeito e completo; Karl, com sua semelhança a ele, com aquele olhar puro e gentil, castanhos iguais aos dele; e Lótus, com aquele cabelo bonito, curto e escuro, quase bagunçado, o oposto de Karl, magrinho, quase frágil.
Aquela era a família que ele amava.
— Agora eu tenho uma última coisa a fazer — disse, olhando para a lua naquela noite agradável.
— O que, pai? — perguntou Lótus, segurando e comendo uma comida estranha chamada Hityfe.
Kael mostrou a capa daquele livro de couro que ele guardava na mochila. Escrito na capa:
“Contos de Joe e Kael em suas aventuras.”
— Escreverei o último capítulo. Estou melhor, aqui eu consigo escrever. Superarei isso de uma vez por todas. — Os meninos ficaram calados e observaram o pai subir em cima de sua antiga casa.
— Capítulo Final: A Noite Que Tudo Começou.
Kael folheou as páginas até as páginas brancas. Quando chegou a elas, segurou algo como um lápis.
— Quero que me esperem até eu terminar, ok? — Todos concordaram e se sentaram, olhando para o pai.
Ele então se sentou como se fosse meditar, mas com seu livro em mãos e as folhas em branco, começou a escrever. Naturalmente, as palavras vinham como uma cachoeira, fluindo sem esforço de sua mente para o papel. Encontrou pontos em sua memória que pôde usar com extrema facilidade. Uma história já vivida é mais fácil de contar, não é? Ele estava tão concentrado que não percebeu nada ao redor, nenhum som: o crepitar da fogueira, o murmúrio do vento, o canto noturno dos grilos. Mesmo que os meninos conversassem entre si, suas vozes eram um sussurro distante e suave. Ele continuou a escrever, pensava nos momentos mais importantes daquele dia, quando achou que não ia conseguir, quando viu seu pai, um simples camponês, lutar contra uma criatura horrenda para protegê-lo.
A cena estava ali, diante dos olhos dele, como uma memória que se transforma em um sonho que permite ser assistido, uma projeção de um passado que se recusava a ser esquecido. Não se emocionou e nem travou nenhuma vez. Mas estava estranho, algo ao redor estava mudando e não vinha de Kael, algo que não se podia enxergar e nem tocar. Os meninos perceberam e se perguntavam de onde vinha essa sensação ruim e amarga no ar. Ninguém pôde achar.
O corpo dos três continuava a pesar, como se tivessem sido amarrados; a voz parecia não sair, presa em suas gargantas; os olhos estavam tão cansados que pareciam enxergar tudo em câmera lenta. Os gritos não não chegavam a chamar a atenção de Kael, como se ele estivesse cego, ou sua percepção do mundo estivesse alterada. Os meninos até tentaram correr, movimentos desesperados e inúteis, seus corpos não se moviam. Eles estavam presos na própria consciência, como se tivessem acordado de um sonho, porém dormindo em um pesadelo. Seus corpos não se levantavam mais naquele momento, estavam inertes, como estátuas de argila, eles não podiam fazer mais nada. As árvores começaram a sumir, como se tivessem sido apagadas aos poucos.
Kael, então, fechou os olhos, pronto para escrever sua última palavra, mas, quando os abriu, estava em um lugar completamente diferente.
Sua expressão mudou, de satisfação para medo.
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