Capítulo 40 - Mudança de Trilhos (2/3)
Depois daquele dia, a rotina diária de Zorian mudou completamente. Kirielle perdeu todo o interesse em magia e não frequentou mais as aulas que ele havia organizado para ela, e ele decidiu liberar mais tempo abandonando sua participação do grupo de Taiven e matando a maior parte das aulas. A maior parte desse tempo extra foi dedicada ao planejamento e execução de ataques a membros conhecidos do Culto do Dragão Mundial, tentando descobrir o que eles haviam feito com Nochka. Ele os atacava incessantemente, atingindo dois ou mais locais por dia, e sondava implacavelmente a memória de cada cultista que ele desabilitava nessas excursões.
Ele aprendeu algumas coisas interessantes fazendo isso. Por exemplo, embora Sudomir Kandrei, o prefeito de Knyazov Dveri, fosse de fato um membro do culto, ele tinha uma mentalidade muito independente… a ponto do culto ficar bem irritado com ele. Eles pareciam não ter ideia de que ele estava matando magos de alma ao redor de sua cidade, nem ele tinha qualquer ligação com os Ibasans, até onde sabiam — o homem prometeu dar seus rebanhos de bicos de ferro e hordas de lobos de inverno para o Culto do Dragão Mundial, não para os invasores como um todo. Zorian supôs que ele poderia estar em contato com os Ibasans por iniciativa própria, mas era igualmente possível que suas práticas de matar magos de alma fossem coisa dele. O que ele esperava alcançar com isso, Zorian só podia imaginar.
Ele também encontrou alguns esconderijos de recursos de emergência que o Culto espalhou pela cidade, seu submundo e vilas vizinhas. Eles pareciam muito… roubáveis. Ele fez uma nota para si mesmo — uma nota escrita de verdade, já que agora ele poderia efetivamente levar um caderno com ele para o próximo reinício — para procurar entre eles em algum reinício futuro por algo interessante ou fácil de vender por algum dinheiro rápido.
Quando se tratou de localizar Nochka, no entanto, seus sucessos foram decepcionantes. Ele conseguiu rastrear o grupo que a sequestrou, mas eles estavam apenas seguindo ordens e há muito tempo a entregaram a outro grupo. Ele então rastreou esse grupo também, mas eles também não a tinham mais e também não sabiam quem a tinha agora. Ele mergulhou fundo e agressivamente em suas memórias, destruindo suas mentes além do reparo, mas sem sucesso — o homem para quem haviam entregue Nochka era totalmente desconhecido para eles, além de ser um membro de alto escalão do culto, e eles não tinham absolutamente nenhuma ideia de onde ela poderia ter acabado.
Na verdade, Zorian já suspeitava que sequestrar Nochka tinha sido toda a razão do ataque à família Sashal, então suas descobertas não foram uma grande surpresa. O fato de a ordem ter vindo do topo do culto indicava que eles consideravam isso de extrema importância. Eles também disseram a ambos os grupos que Nochka tinha que ser entregue viva e ilesa ao ponto de transferência, proibindo abusos sob pena de morte, o que também era bastante estranho. Por quê? Por que eles queriam Nochka tão desesperadamente, e por que sua integridade física era tão importante?
Ele suspeitava que a resposta fosse algo em linha com ‘ela é o sacrifício necessário para despertar o primordial’. A invocação de demônios frequentemente envolvia rituais de assassinato, então não o surpreenderia muito se a libertação de um primordial exigisse o mesmo. Ainda assim, por que Nochka em particular? Por que ela era uma metamorfa? Os cultistas se referiam ao primordial como — entre outros nomes — Aquele da Carne Fluente, o que poderia indicar uma habilidade de alterar sua forma física. Porém, havia outros metamorfos na cidade. Outros metamorfos gatos, inclusive.
Ele não achava que conseguiria chegar ao fundo disso até o final do reinício. Se tivesse mais uma semana, talvez, mas o reinício estava perto do fim, e o Culto do Dragão Mundial estava ficando mais paranoico diante de seus ataques constantes a eles — eles já tinham até tentado armar uma emboscada para ele na última vez que ele tentou atacar um local, e apenas sua habilidade de ler os pensamentos superficiais das pessoas o impediu de tropeçar lá dentro e acabar morto. Ele não conseguiria muito deles nos dois dias que lhe restavam antes do festival de verão.
Embora, por mais horrível que o sequestro de Nochka tenha sido, também poderia se revelar uma grande oportunidade para ele, desde que acontecesse previsivelmente em cada reinício. Se ele pudesse colocar algum tipo de rastreador em Nochka, ela poderia levá-lo aos mais altos escalões do Culto do Dragão, aqueles que permaneceram bem escondidos dele até então. Além disso, se ela realmente fosse destinada a um sacrifício como ele suspeitava, ela poderia levá-lo ao lugar onde o culto pretendia realizar seu ritual de liberação, o que poderia ser uma chave para muitos mistérios envolvendo as ações do Culto — talvez até mesmo o próprio loop temporal.
Ele teria que esperar e ver como os eventos se desenrolariam no próximo reinício.
* * *
“Podemos conversar?”
Zorian desviou o olhar do romance que estava lendo e olhou de soslaio para Kirielle, que estava parada na porta, segurando nervosamente uma das vigas de sustentação. Estranho. Kirielle estava muito contida e antissocial desde que Nochka desapareceu, raramente o incomodando mais, então ela se aproximar dele assim foi bastante inesperado.
“Claro”, ele concordou facilmente. Já que não estava fazendo nada importante no momento, de qualquer forma. Ele deveria estar organizando seus cadernos para poder armazenar os últimos projetos em sua mente, mas ele simplesmente não estava com vontade de fazer isso no momento e, em vez disso, estava procrastinando com uma leitura leve. Ele poderia reservar um tempo para sua irmãzinha. “O que foi?”
Ela correu até ele e, antes que ele pudesse dizer para ela parar, se jogou em cima dele. Como ele estava deitado na cama, ela acabou basicamente reencenando algo que há muito se tornou uma cena bem familiar para Zorian.
‘Droga, Kiri, já aguento essa porcaria no começo de cada loop!’ pensou Zorian, mas se conteve para não dizer isso em voz alta. Kirielle já estava abalada, não havia necessidade de repreendê-la quando ela finalmente decidiu se abrir um pouco.
“Onde estão seus sapatos?”, ele perguntou em vez disso. “Não me diga que você andou pela casa descalça de novo?”
Kirielle olhou para os próprios pés e lançou-lhe um olhar culpado. “Não seja como a mamãe, Zorian. Foi só uma vez.”
“Você está fazendo isso agora também”, Zorian apontou.
“Ok, duas vezes”, ela disse, fazendo beicinho.
Ele colocou um marcador em seu livro, o pôs de lado, empurrou-a gentilmente para longe dele e se ergueu para uma posição sentada. Ela imediatamente o imitou, sentando-se na ponta da cama ao lado dele. Permaneceram sentados assim em silêncio por um tempo, Kirielle balançando os pés descalços sobre o chão e olhando para os próprios dedos como se fossem a coisa mais fascinante do mundo.
“Me desculpa”, ela finalmente disse.
“Por que você está se desculpando?” perguntou Zorian, surpreso.
“Por ser difícil.”
“Difícil?” perguntou Zorian incrédulo. Ele espiou a mente dela por um momento e a encontrou pensando na mãe. Ugh. Sim, isso meio que soava como algo que a mãe deles diria. Ela nunca gostou muito de choro. Uma das poucas coisas que ela o elogiava era que ele raramente chorava, mesmo quando criança. “Kiri, você perdeu sua amiga. Não tem problema ficar triste por isso. Você não estava sendo difícil de jeito nenhum.”
“Mas você tem me evitado a semana toda”, ela murmurou.
“Eu não estava evitando você”, ele protestou, horrorizado que ela sequer pensasse isso. “Eu só estava… dando a você um espaço para sofrer em paz. Sabe? E além disso, eu estava…”
Ela lançou um olhar curioso quando ele não continuou. “Você estava o quê?”
Ele deveria contar a ela?
“Eu estava tentando encontrar Nochka”, ele finalmente admitiu.
Os olhos dela se arregalaram com isso. “Você estava… É isso… você deveria ter me contado!”
“Eu não queria te dar falsas esperanças”, Zorian disse.
“Eu estava esperançosa de qualquer jeito”, ela disse, segurando os lençóis firmemente em seus pequenos punhos.
Ele colocou um braço em volta do ombro dela e a puxou para um abraço. Ela ainda estava tensa, mas gradualmente relaxou depois de um tempo e retribuiu o abraço.
“Eu não a encontrei”, ele admitiu depois de um tempo.
“Bem, obviamente”, ela disse, como se fosse a coisa mais evidente de todas. “Mas você tentou. Você sabia que provavelmente não iria conseguir encontrá-la, e, mesmo assim, você saiu e a procurou. Você não chorou e ficou se lamentando pela casa o dia todo como eu fiz.”
“Kiri, você tem nove anos,” Zorian suspirou. “O que mais você poderia ter feito? Você está sendo muito dura consigo mesmo.”
Ela não disse nada sobre isso. Eventualmente ele decidiu apenas passar algum tempo jogando cartas com ela e elogiando seus desenhos. Isso acabou animando-a no final, então ele considerou isso como uma de suas melhores ideias. Um dia desses, quando ele dominasse o feitiço de alteração que estava usando suficientemente para transferir notas para reinícios subsequentes, ele deveria reunir algumas de suas obras de arte em algum tipo de livro de arte e copiá-lo para a próxima reinicialização. Mostrar a ela os desenhos que ela mesma havia feito em reinícios anteriores certamente produziria algumas reações divertidas.
* * *
Mais tarde naquela noite, Zorian decidiu que já havia dado tempo suficiente para Kael terminar seus experimentos de última hora e desceu para o porão para pegar o último dos cadernos prometidos pelo morlock. A porta estava destrancada, então Zorian simplesmente entrou e fechou atrás de si.
Assim que a porta se fechou com um clique, Zorian sentiu os sons da casa acima deles desaparecerem, era a parte de privacidade das barreiras mágicas colocadas no porão, envolvendo e isolando o som do cômodo. Entre muitas outras coisas. As medidas de privacidade eram aparentemente uma parte padrão do pacote de proteção que a academia usava para proteger suas oficinas e, por isso, foram adicionadas automaticamente ao porão de Imaya quando Kael solicitou que o transformassem em uma oficina alquímica adequada… algo que era muito conveniente em momentos como esses, já que significava que Zorian não precisava passar horas protegendo o cômodo toda vez que queria falar com Kael sobre algum assunto delicado.
“Você já terminou?” Zorian perguntou ao outro garoto. Kael o ignorou por um momento, encarando alguma passagem do livro à sua frente, mas logo balançou a cabeça e empurrou o livro para longe, massageando os olhos.
“Sim, terminei”, ele disse. Ele apontou para o caderno colocado em cima de uma grande pilha de livros. “O caderno está lá. Está tudo pronto do seu lado?”
“Quase tudo”, disse Zorian. “Ainda tenho que escrever algumas coisas que descobri hoje.”
Kael levantou uma sobrancelha para ele. “Achei que você tinha dito que estava dando um tempo do culto hoje?”
“Sim, e tirei”, disse Zorian. “Mas isso não significa que eu não fiz absolutamente nada.”
“Oh?”
“Basicamente, eu estava pensando sobre proteções mágicas, e como os cultistas de nível superior vivem em casas protegidas que são uma dor para invadir, e estava pensando em como acelerar o processo. E então me lembrei de que não só já existe um tipo de ferramenta para fazer isso no mercado negro, como, na verdade, eu realmente sei onde encontrar uma de graça. As araneas roubaram um scanner de proteções de um dos invasores um tempo antes do início do loop temporal, e o dispositivo certamente ainda está na colônia destruída.”
“Você disse que não gosta de ir lá”, Kael observou.
“Eu não gosto”, Zorian suspirou. “Aquele lugar… tem muitas memórias ruins. E os corpos da aranea estão literalmente espalhados por todo o lugar, então é difícil ir lá e não se lembrar de todo aquele fiasco que as destruiu.”
“Eu ainda acho que elas foram de alguma forma ejetadas do loop temporal em vez de mortas por suas almas”, Kael disse. “Eu concordo com o que outras pessoas lhe disseram — almas são indestrutíveis. Deve haver algum truque envolvido.”
“Sim, bem, viagem no tempo também é supostamente impossível”, Zorian apontou. “Embora eu admita que espero que você esteja certo. Não importa isso por enquanto, o ponto é que eu fui lá para encontrar o scanner de proteções… e não consegui encontrá-lo.”
“E daí?” Kael perguntou.
“Daí que isso significa que alguém já o pegou ou que há alguma parte secreta do complexo araneano que eu desconheço. E, francamente, acho que é o último. Quer dizer, depois que pensei um pouco sobre isso, o vazio absoluto do assentamento araneano era muito suspeito… A teia Cyoriana era muito rica e, com certeza, tinha um tesouro considerável. A matriarca frequentemente insinuava que eles tinham algum tipo de depósito cheio de itens comerciais e coisas assim. Mas nunca vi nada parecido quando verifiquei o assentamento antes, provavelmente porque estava muito desconfortável lá e com pressa de ir embora.”
“Você acha que há algo importante lá?”
“Relacionado ao loop temporal? Não, provavelmente não”, Zorian admitiu. “Mas preciso de todas as vantagens contra Robe Vermelho que puder obter, e pode haver muitas coisas úteis lá. Quem sabe o que as araneas esconderam ao longo dos anos?”
“Verdade”, Kael concordou, levantando-se do assento e estalando a coluna. “Bem, estou cansado. Acho que vou dormir agora. Há mais alguma coisa que precisamos conversar?”
“Não me lembro de nada urgente”, Zorian disse, balançando a cabeça.
“Entendo. Só para você saber, levarei Kana comigo em uma viagem para uma vila próxima no dia do festival de verão. Eu realmente não quero estar em Cyoria quando a invasão acontecer, e estou ainda menos entusiasmado com Kana sendo pega na invasão.”
“Eu entendo.”
“Fico feliz. Se você quiser, posso levar Kirielle comigo”, disse Kael. “Eu sei que você está agonizando sobre o que fazer com ela há um tempo.”
“Sim”, concordou Zorian. “Não quero deixá-la sozinha para a invasão, mas ao mesmo tempo preciso poder me mover livremente se quiser investigar o que está acontecendo com a invasão depois de todas essas mudanças. Você acha que ela concordaria em ir com você?”
“Não sei, isso é com você”, Kael deu de ombros. “Tudo o que posso fazer é fazer uma oferta.”
“Tudo bem, tudo bem, vou falar com ela”, Zorian suspirou. “Vai ser uma conversa adorável, já posso imaginar.”
“Me avise sobre o que decidiu até amanhã à noite”, disse Kael.
E assim, mais um reinício já estava quase terminado. Amanhã ele veria como a invasão da cidade prosseguiria dessa vez.
* * *
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