Zac ainda estava um pouco sonolento. Após ouvir a resposta de seu amigo, sua mente começou a divagar, imaginando a ala médica repleta de enfermeiros. No meio de seus devaneios, uma dúvida repentina o assaltou: será que alguém o vira sem roupa? Discretamente, ergueu o lençol e, aliviado, constatou que suas vestes permaneciam no lugar. Um semblante de tranquilidade suavizou sua expressão.

    — Zac, vamos logo, levanta aí. A parte de cima do seu uniforme tá na sua bolsa. Vou te esperar lá fora, não demora, tô morrendo de fome — disse Dionísio, levantando-se da poltrona e saindo da ala médica.

    — Valeu, Dio — respondeu Zac, ainda um pouco grogue.

    Ele se levantou da cama e, para sua surpresa, sentiu-se estranhamente bem. A dor excruciante que antes o dominava havia desaparecido, como se nunca tivesse existido. Apenas um leve incômodo no punho e uma pontada sutil no olho direito permaneciam.

    Pegou sua bolsa e a lançou sobre a cama. De dentro dela, retirou a parte superior de seu uniforme e a vestiu de maneira desleixada, sem se preocupar em abotoá-la. Então, inclinou-se sobre a mochila para conferir se seu grimório ainda estava lá. Estava. No entanto, algo parecia diferente.

    Instintivamente, levou a mão ao pescoço. Nada.

    Um desconforto cresceu dentro dele, transformando-se rapidamente em aflição. Com o coração acelerado, começou a vasculhar desesperadamente sua bolsa, revirando cada compartimento. O cordão não estava lá. Também não estava em seu uniforme. Olhou ao redor do quarto, mas não encontrou nenhum sinal dele.

    — Dioooooooo! — exclamou, sua voz carregada de súplica. — Você viu o meu cordão? Ele tem que estar em algum lugar!

    Dionísio apareceu no quarto com a testa franzida.

    — O que houve?

    — O meu cordão, Dio! Você viu em algum lugar? Foi você quem arrumou minha mochila, não foi?

    — Eu não vi nada, a única coisa caída no chão era o seu livro. Mas não se desespera, vamos até a diretoria. Com certeza a Flora vai saber como ajudar. E, se ela não conseguir, vamos procurar por toda a Academia. Te dou minha palavra. — Dionísio estendeu a mão para o amigo.

    Zac tentou improvisar um aperto de mão diferente, adicionando alguns movimentos que achava estilosos. No entanto, falhou miseravelmente, pois Dionísio já havia saído da sala, deixando-o para trás.

    Mesmo assim, Zac não desistiu. Mentalizou a sequência perfeita: primeiro, um toque de palma contra palma, seguido por um recuo e um pequeno soco. Em seguida, cerrariam os punhos e os girariam em um ângulo de 90°, afastando as mãos apenas para, dessa vez, abri-las e mover os dedos em um gesto sincronizado, inclinando levemente o corpo. O toque final seria um aperto de mão na altura do peito, puxando o corpo para frente, finalizando com tapinhas nas costas, simulando um meio abraço.

    Ele sorriu, satisfeito com a ideia, mas a voz de Dionísio o trouxe de volta à realidade.

    — Zac, tô indo, hein. Me alcança no corredor, tô cansado de te esperar.

    Ainda sorrindo, Zac pegou seus pertences e saiu da sala. O corredor estava repleto de alas médicas, mas, ao longe, ele avistou Dionísio caminhando em direção à saída. Sem perder tempo, acelerou o passo e, em poucos instantes, alcançou o amigo, dando-lhe um leve tapa nas costas.

    — Se liga, a gente precisa criar um aperto de mão especial.

    Dionísio lançou um olhar de desinteresse.

    — Pra quê isso? Tu tem cada ideia… Não vou fazer nada disso, não. Ah, e sem essa de chegar batendo nas costas dos outros desse jeito. — Ele terminou a frase com um bocejo preguiçoso.

    Zac riu, coçando a nuca.

    — Foi mal, esqueci que você tá cansado. Aliás, valeu por ter ficado lá esse tempo todo.

    — Relaxa, vamos logo falar com a diretora. Tô precisando dormir. Não sei se tu tá sabendo, mas, por causa do que aconteceu na arena, todas as aulas foram suspensas por tempo indeterminado.

    — Como assim? — questionou Zac, franzindo a testa.

    — A Flora não me explicou direito o motivo, mas tem a ver com o animal que você invocou e com alguns acontecimentos recentes na Academia.

    — Que loucura… Quando chegarmos lá, vou perguntar a ela.

    Zac fez uma pausa, um brilho inquieto surgindo em seu olhar. Ele hesitou por um instante, mas então soltou um suspiro e decidiu continuar:

    — Se liga, não falei isso pra ninguém… até porque eu estava desacordado, né? — Ele tentou sorrir, mas o peso do que iria dizer logo apagou qualquer traço de humor em seu rosto. — Mas eu senti muito medo lá. Toda vez que a Fenrir uivava, era como se minha alma se desprendesse do meu corpo. Eu já não estava no controle. Só queria gritar. Fui consumido por uma raiva, por um ódio… mas, no meio de todo esse caos, eu ouvi latidos. Foi isso que me trouxe de volta. Parecia que eu estava revivendo o momento em que os encontrei. Foi tudo muito louco…

    Enquanto falava, Zac sentiu um nó na garganta, e antes que percebesse, algumas lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto.

    Dionísio abaixou levemente a cabeça, refletindo sobre as palavras do amigo.

    — Eu também senti muito medo — confessou, em um tom mais baixo. — Mas não podemos falar sobre isso agora. A Flora pediu para conversarmos com ela primeiro.

    Zac respirou fundo e assentiu.

    — Beleza, Dionísio.

    Os dois passaram pela porta da enfermaria e seguiram em direção ao pátio central da Academia.

    Quando já estavam próximos, Dionísio pigarreou, chamando a atenção do amigo.

    — Zac, tem mais uma coisa que preciso te contar.

    Zac o encarou, curioso.

    — Então fala.

    — Ela pediu para irmos por um caminho não convencional. Eu já fiz esse trajeto uma vez, e é meio louco.

    Zac estreitou os olhos, desconfiado.

    — Como assim “não convencional”? — Ele cruzou os braços. — E outra coisa, você tá falando da diretora de um jeito bem casual… tô achando isso muito estranho. Não sabia que você gostava desse tipo, hein.

    Dionísio bufou e estalou os dedos. No mesmo instante, uma rajada de vento soprou contra Zac, bagunçando seus cabelos e quase derrubando sua mochila.

    — Sai fora, moleque! — Dionísio revirou os olhos. — Ela só é uma conhecida da família. Uma antiga amiga do meu irmão.

    Zac piscou algumas vezes, surpreso.

    — Você tem mais um irmão? Qual o nome desse? Porque, até agora, só conheço o Lacer.

    O olhar de Dionísio ficou mais sério, quase distante. Pequenos raios azulados dançaram entre seus dedos enquanto ele falava:

    — Tenho alguns… mas nem todos têm laços de irmãos de verdade. Somos apenas filhos do mesmo pai, mas alguns agem como se isso não significasse nada. Existe uma hierarquia… uma competição bizarra.

    Uma brisa gélida soprou pelo corredor, como se respondesse àquela confissão.

    — Apolo é um exemplo disso. Ele é um amigo antigo da Flora.

    Zac sentiu um arrepio estranho percorrer sua espinha. Era como se aquele nome carregasse um peso invisível no ar.

    — Peraí… Não me diga que esse Apolo é o mesmo Apolo que é pai da Clara?! Porque lembro muito bem daquele guarda falando que ela era filha de um Apolo.

    Dionísio não respondeu de imediato. Apenas assentiu levemente, os olhos cintilando como se segurassem um segredo muito mais profundo do que Zac poderia imaginar.

    Zac levou alguns segundos para processar a informação, depois soltou um riso incrédulo.

    — Dionísio, você só me surpreende. Primeiro, conversando casualmente sobre a diretora…

    Antes que pudesse terminar a frase, Dionísio estalou os dedos outra vez. Uma corrente de ar atingiu a nuca de Zac com um tapa preciso, como se o próprio vento tivesse lhe dado um corretivo.

    — Ai! — Zac massageou o local e riu. — Tá bom, tá bom! Eu tava brincando sobre a diretora!

    Mas então, seu semblante ficou mais sério. Ele analisou Dionísio por um momento, como se estivesse vendo o amigo sob uma nova luz.

    — Mas agora falando sério… Você é tio da Clara?!

    O silêncio que se seguiu foi denso. As tochas mágicas que iluminavam o corredor piscaram por um instante, como se reagissem àquela revelação.

    Zac piscou algumas vezes, tentando absorver tudo.

    — Então… você é um filho temporão de Zeus?

    Dionísio assentiu, ajeitando a manga do uniforme.

    — Sim e não. Eu nasci bem depois dos outros, quando a família já tinha um vínculo fechado. Aliás, em Uranos, ninguém liga muito para essa coisa de laços de sangue. Somos todos uma grande família… pelo menos na teoria.

    O vento soprou levemente pelo pátio, balançando as folhas das árvores e os fios do cabelo de Zac.

    — Minha relação com Apolo também não é das melhores. Então, tecnicamente, eu sou tio da Clara, mas na prática, sou só mais um lá em casa.

    Zac cruzou os braços, tentando processar aquilo.

    — Isso é muito doido… e não faz nenhum sentido.

    Dionísio riu, mas logo desviou o olhar, seu tom mudando sutilmente.

    — Falando em família… já te perguntei isso antes, mas você nunca me respondeu sobre a sua.

    O silêncio caiu entre os dois. Apenas o som das folhas farfalhando e do bater das asas dos pássaros preenchia o espaço. Eles continuaram andando pelo caminho de pedras da academia, sem trocar mais nenhuma palavra, até que finalmente chegaram ao pátio central.

    Zac respirou fundo antes de responder:

    — Eu… não sei muito bem, Dio. Como já te falei, minhas memórias são meio turbulentas. Mas a verdade é que não sei de onde ou de quem eu vim. Essa pergunta mexe muito comigo.

    Dionísio lhe deu um olhar compreensivo.

    — Tudo bem, relaxa.

    Ele então bateu palmas, animando o clima.

    — Agora, se liga. O que vamos fazer é meio maluco. Quando a Flora me mostrou pela primeira vez, achei bizarro. Ela explicou tudo, mas eu não entendi nada. Falou uns termos tipo… lamela média, floema e xilema.

    — Cada nome esquisito. Como tu lembra disso?

    — Sei lá! Eu fiquei tão chocado com o que aconteceu que prestei atenção em tudo, mesmo sem entender nada. Mas relaxa, quando chegarmos lá, ela vai te explicar.

    Zac sorriu, tentando disfarçar a ansiedade.

    — Beleza… tô curioso.

    O pátio central era um espetáculo por si só. Árvores majestosas formavam uma clareira, permitindo que feixes de luz solar dançassem entre os galhos e pintassem o chão com tons dourados. No centro, uma fonte de água doce borbulhava suavemente, onde pequenos pássaros tomavam banho e bebiam.

    Mas o que mais chamava atenção eram os espíritos de luz. Criaturas etéreas e cintilantes deslizavam pelo ar como vaga-lumes encantados. Zac estendeu a mão, rindo quando alguns passaram por seus dedos, deixando rastros brilhantes no ar.

    Enquanto isso, Dionísio caminhou até uma das árvores da clareira. Com a mão esquerda, tocou o tronco firme e quente.

    Um estalo ecoou.

    Uma fissura surgiu na casca, subindo lentamente até a copa da árvore. O brilho alaranjado emanava de dentro do tronco, e os veios pulsavam como se estivessem vivos. A madeira se partiu suavemente, formando uma passagem secreta.

    Zac arregalou os olhos.

    — Isso é…

    Dionísio olhou para ele com um sorriso travesso.

    — Não falei que era louco? E isso é só o começo.

    Zac piscou várias vezes, tentando absorver tudo que estava acontecendo ao seu redor. Ele observou a fissura brilhante na árvore, os veios pulsando como se fossem veias vivas, e então voltou o olhar para Dionísio.

    — O que é isso, Dio?

    Seu tom carregava um misto de fascínio e receio.

    Dionísio deu de ombros, como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.

    — Como já disse, eu não sei exatamente o que é. Só estou seguindo as instruções que a Flora me deu.

    Ele retirou a mão da árvore e caminhou até a fonte de água, que brilhava suavemente sob a luz da clareira. Pequenos espíritos de luz pairavam sobre a superfície, deixando rastros luminosos conforme se moviam.

    — Ela disse que, ao tocar a fonte, uma camada de água surgirá ao nosso redor — explicou Dionísio. — Vai criar uma espécie de película protetora, mas para que isso funcione, sua alma precisa ressoar com a água.

    — Ressoar com a água? — Zac franziu o cenho.

    — É mais fácil do que parece — garantiu Dionísio. — Esta água já carrega uma alma dentro dela, o que facilita o processo de convergência. Pelo menos foi isso que a Flora me explicou.

    Zac cruzou os braços, ainda intrigado.

    — Entendi… mas para que tudo isso? Não seria mais fácil simplesmente ir até a sala dela?

    Dionísio suspirou.

    — Também achei isso no começo, mas depois do que aconteceu na arena, ela precisa ter certeza de uma coisa antes de voltar tudo ao normal. Por isso, pediu para eu te levar até um lugar especial.

    Os olhos de Zac brilharam de curiosidade.

    — Um lugar especial?

    — Exato. Depois de me mostrar como fazer, ela pediu para eu te esperar.

    Zac observou a fonte. A água era incrivelmente cristalina, refletindo o céu e as árvores ao redor como um espelho perfeito. Ele respirou fundo.

    — Beleza… e como exatamente eu faço essa parada da água?

    Dionísio se virou para ele, cruzando os braços.

    — Tu lembra quando o professor Kyron concentrou energia na sala de aula?

    Zac assentiu.

    — Sim. Ele dizia que precisávamos esvaziar a mente e deixar o fluxo de energia nos guiar.

    — Exatamente. O princípio é o mesmo. Basta tocar a água, não pensar em nada e seguir o comando da voz.

    — Que voz? — Zac ergueu a sobrancelha.

    Dionísio sorriu de canto.

    — Uma voz feminina vai te guiar. Você só precisa prestar atenção nela e seguir o que ela disser.

    O coração de Zac acelerou levemente. Ele estendeu a mão devagar, aproximando os dedos da superfície da água, que brilhava levemente sob a luz da clareira.

    — Presta atenção em mim — disse Dionísio.

    Zac respirou fundo e tocou a água.

    Dionísio fechou os olhos e estendeu a mão na direção da fonte. A água, antes calma e cristalina, começou a se mover, como se reconhecesse sua presença. Pequenos fios líquidos serpentearam por sua pele, subindo lentamente por seu braço até cobrir todo o seu corpo com uma camada fina e translúcida.

    Zac observava a cena, fascinado. O brilho azul esverdeado da película d’água cintilava sob a luz do sol, envolvendo Dionísio em um véu quase etéreo. Ele tentou dizer algo, mas, para sua surpresa, não ouviu sua própria voz. Do outro lado, via Dionísio falando com ele, mas tudo o que conseguia perceber eram bolhas escapando de sua boca, como se estivessem submersos em um oceano invisível.

    — Bora tentar isso — murmurou para si mesmo.

    Respirando fundo, Zac fechou os olhos e encostou sua mão direita na fonte. Assim que seus dedos tocaram a superfície, sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Então, uma voz feminina, suave como o murmúrio das ondas, soou dentro de sua mente.

    — Olá, garoto… já entrei em contato com sua voraz alma algumas vezes. Mas desta vez é diferente.

    Zac franziu o cenho, sem abrir os olhos. A presença daquela voz era tão serena e profunda que parecia atravessar cada célula de seu corpo.

    — Você é, sem dúvida, um rapaz extremamente forte. Mas sua força não é daquelas enaltecidas pela sociedade. Ela é algo mais sutil, mais belo…

    Ele engoliu em seco.

    — Quem é você? Do que está falando? Quem é “ela”?

    A voz riu suavemente, como o som de uma brisa brincando sobre a água.

    — Apenas flua nesta vasta correnteza.

    De repente, Zac sentiu uma pressão avassaladora em sua mão. Era como se os oceanos do mundo inteiro estivessem atravessando seu corpo, envolvendo cada fibra de seu ser. Ele tentou resistir ao impacto das ondas invisíveis, mas elas o tomaram por completo. O som do mar rugia em seus ouvidos, as correntes se chocavam contra seu peito, puxando-o para um abismo sem forma.

    Então, no meio do turbilhão, ouviu o som de uma única gota caindo.

    Plim.

    A reverberação daquele som preencheu cada canto de sua alma. Toda a turbulência desapareceu em um instante, substituída por uma calma indescritível. Seu coração desacelerou, e um sentimento de paz tomou conta de seu ser, como se ele pertencesse àquele momento.

    Quando abriu os olhos, viu que seu corpo também estava envolto por uma fina camada de água, exatamente como o de Dionísio. A luz da clareira refletia-se nela, criando um efeito cintilante ao seu redor.

    — Tá me ouvindo, Zac? Vamos logo. Ela está nos esperando.

    Zac piscou algumas vezes, sentindo um leve déjà vu. Era como se já tivesse vivido aquele instante antes. Ele olhou para Dionísio, que o observava com um sorriso cansado, e percebeu que algo dentro de si havia mudado—ele só não sabia exatamente o quê.

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