Capítulo 2 – Como um jantar destruiu minha vida
Ele piscou, ainda tentando processar os últimos acontecimentos. Havia perdido. De forma estranha. E agora, sentado à mesa daquele restaurante medieval temático, seus amigos estavam prestes a colher os frutos de sua desgraça.
O lugar tentava emanar uma sofisticação rústica, mas fracassava com o mesmo entusiasmo de um cavaleiro medieval tentando pagar boletos no internet banking. Velas artificiais tremeluziam sobre a mesa, jogando sombras dramáticas nos rostos dos clientes, enquanto uma trilha sonora instrumental fingia transportar a todos para outra época.
A ilusão quase funcionava. Ou teria funcionado, se a garçonete vestida de elfa não estivesse usando um All Star encardido e mastigando chiclete como se estivesse contando os minutos para bater o ponto.
Quintus olhou ao redor, absorvendo a cena com a mesma expressão de um homem que acordou em um reality show sem ter se inscrito. Ele apertou os olhos, refletindo. Por um breve momento, cogitou seriamente que tinha sido forçado a uma nova reencarnação ao entrar naquele lugar.
Ele sussurrou para si mesmo, com a intensidade de um protagonista de novela descobrindo que tem um irmão gêmeo perdido:
— Tá bom… ou eu morri e reencarnei novamente no jantar errado, ou isso aqui é um sonho muito específico…
Antes que pudesse aprofundar essa linha de raciocínio e chegar à inevitável conclusão de que, qualquer que fosse o caso, ele estava ferrado, o celular de Leon vibrou sobre a mesa fazendo-o lançar um olhar rápido para a tela e, sem qualquer pressa de salvar Quintus da crise existencial, ergueu a mão como um policial controlando o trânsito:
— Segura aí, cinco minutos.
E foi isso. A grande tragédia de sua vida estava prestes a se desenrolar, mas seu companheiro de moletom vermelho tinha mensagens mais importantes para responder.
Os dedos dele começaram a se mover freneticamente sobre o vidro frio do aparelho, retomando uma conversa que seus companheiros aparentemente haviam atrapalhado. O brilho azul da tela iluminava seu rosto com a mesma seriedade de um hacker prestes a invadir o sistema da NASA.
Com Leon vidrado no celular, Quintus se virou para Gustavo e retomou sua queixa existencial:
— Mas hoje foi diferente, acredita? — Pegou o cardápio apenas para fingir que analisava algo que sabia que não podia pagar — Alugaram o salão, trouxeram a equipe completa… Ganhei uma folga inesperada!
O jovem de óculos ergueu as sobrancelhas, teatralmente surpreso.
— Peraí, folga? Você? No meio da semana? Isso tem cara de golpe.
— Eu também fiquei desconfiado! — riu, gesticulando como se fosse vítima de uma grande conspiração — Acharam que eu ia comemorar e gastar dinheiro… e olha só onde estou!
— Então quer dizer que você caiu no próprio golpe? — brincou Gustavo pegando uma batata frita e apontando para ele com a comida.
Quintus soltou um suspiro dramático e disse:
— Pior que sim… Meu corpo se recusava a acreditar e como um sonâmbulo, quase fui parar na estação de metrô só por instinto de sobrevivência!
Gustavo riu balançando a cabeça ao falar:
— Você tá há tanto tempo trabalhando sem folga que, se um dia realmente for demitido, vai continuar indo pro serviço por inércia.
A tela do celular de Leon se apagou lentamente, refletindo seu rosto pensativo. Ele soltou um suspiro, endireitou a postura e, com um sorriso de quem estava prestes a ser um problema na vida de alguém, acionou a Inteligência Artificial do celular:
— IA, o que é mais valioso: 50 centavos de real ou a dignidade de alguém?
A resposta veio instantaneamente, com a frieza de um juiz sem compaixão:
— Esse dinheiro pode comprar um doce. Dignidade não paga nem um chiclete.
Ele virou-se para Quintus, satisfeito com o veredito.
— Mano, o que vamos fazer se nem sua dignidade cobre essa conta?
O silêncio durou meio segundo antes de uma explosão de risadas tomar a mesa. O jovem possivelmente reencarnado se curvou sobre a mesa, rindo sem forças, enquanto Gustavo batia na madeira como se estivesse em um show de stand-up.
Quando as risadas diminuíram, Leon finalmente pousou o olhar sobre Quintus com uma expressão intrigada. Ele inclinou a cabeça, como se estivesse descobrindo algo muito importante.
— E essas roupas… Quem diria que você sabe como se vestir como alguém normal!
O jovem ergueu uma sobrancelha, já sentindo a provocação se materializar. Jogou-se na cadeira com um suspiro exasperado.
— Ah, eu só peguei as roupas do meu irmão. Todas as minhas estavam sujas.
Gustavo bateu os dedos na mesa como um detetive prestes a concluir um caso.
— Agora faz sentido! Você anda todo misterioso… apostaria que tem a ver com uma moça que, por acaso, chama MEU PAI de pai também.
Quintus piscou, processando a frase.
— …Você acabou de descrever sua irmã?
— Sem pressão, mas… — Gustavo apontou para o silêncio do amigo — Esse tempo todo sem resposta já diz tudo.
As gargalhadas voltaram. Quintus, sem alternativa, pegou o guardanapo e o amassou num formato de bola, mirando um arremesso certeiro na cara do seu futuro cunhado.
A garçonete fantasiada de elfa passou apressada ao lado da mesa, equilibrando uma bandeja cheia de pratos. Seu vestido verde e dourado era visivelmente alugado, e as orelhas de elfo caíam para os lados como se já tivessem desistido da vida. O cheiro de carne e fritura a acompanhava como uma fragrância medieval.
Leon fechou os olhos e respirou fundo, absorvendo o aroma no ar como um crítico gastronômico e vaticinou:
— Se veio pela nossa amizade ou por… motivos sentimentais… tanto faz. — ele abriu um sorriso malicioso — O importante é que você caiu direitinho na nossa armadilha financeira!
Quintus sentiu um calafrio. O cardápio diante dele de repente parecia escrito em latim arcaico. Os números das cifras dançavam e giravam, formando um borrão aterrorizante. Ele não estava mais em um jantar. Estava em um funeral. Do seu próprio dinheiro. E fechando os olhos, aceitou seu destino como um guerreiro prestes a ser abatido.
— Ah, infância… aquele tempo ingênuo em que eu achava que ser adulto significava ter dinheiro.
O silêncio na mesa foi interrompido por Gustavo erguendo a caneca.
— Um brinde à infância! Aquela emboscada emocional que nos fez acreditar que crescer era uma boa ideia.
As canecas se chocaram. Quintus olhou para sua carteira com o pesar de um homem que assistiu seu navio afundar no oceano.
“Adeus, dinheiro. Foi bom te conhecer.”
O estalo do brinde foi o gatilho perfeito para a desgraça final. Como um espírito invocado por palavras proibidas, a garçonete fantasiada de elfa surgiu ao lado da mesa com um sorriso estonteante, porém absolutamente impessoal, carregando um prato tão cheio que poderia alimentar uma pequena vila medieval.
— A “Tábua Premium do Chef”, senhores?
O cérebro de Quintus travou. Seus olhos arregalaram. Ele não tinha pedido nada… Mas alguém tinha.
O jovem sem passado arregalou os olhos. A “Tábua Premium do Chef” era o item mais caro do menu. Mais caro até do que o seu aluguel atrasado. Ele piscou, processando lentamente a catástrofe financeira que estava prestes a se abater sobre ele.
— Ninguém pediu isso, certo? — perguntou com uma pitada de desespero na voz.
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