Capítulo 19 - Trabalho Em Equipe
Horas se arrastaram enquanto andavam por corredores cobertos por musgo escuro. Havia um cheiro úmido de plantas que pairava no ar.
Seus passos ecoavam de maneira irregular, abafados pela vibração da Pupila dos Deuses que acontecia de tempos em tempos, relembrando-os do perigo iminente.
Avistaram uma formação de rochas que subiam, formando uma barreira inconveniente. Suas superfícies estavam cheias de musgos, assim como o corredor.
— Então é isso, esse é o fim? — Hazan indagou, encarando Aurora de canto.
— Não estamos nem perto. — Ela apontou para cima. — Tem um caminho adiante, não vê aquele brilho azul?
Ela se aproximou, passando os dedos pelas rochas.
É escorregadio, mas se eu for ágil o suficiente, deve bastar.
— Eu subo primeiro.
Hazan deu de ombros. — Tenta a sorte, cara pálida.
Em resposta, Aurora recuou alguns passos, mediu a distância e disparou para frente. Saltou com toda a confiança do mundo, escalando de rocha em rocha. Seus movimentos mostravam experiência e prática recorrente.
Todavia, sua agilidade não bastou. Um musgo úmido traiu sua expectativa, seus dedos deslizaram, e ela despencou no ar, aterrissando nos braços de Hazan.
Ele a segurava como uma princesa. Seus lábios tremiam com o esforço de conter o riso. Não conseguiu.
— Você… Você… — Ele arfou, os olhos quase lacrimejando. — Isso parecia mais fácil nessa sua cabeça lunática, não parecia?
Aurora o empurrou para longe, limpando as mãos na roupa, e fingindo que nada tinha acontecido.
— Se abaixa na minha frente e me joga lá em cima. De lá, eu puxo você.
Hazan assentiu, ainda mantendo o sorriso. — Beleza, só não escorrega dessa vez, hein?
Encostou as costas na superfície e juntou as mãos para formar um apoio para pés.
— Sobe aí.
Aurora apoiou as mãos em seus ombros e colocou uma das botas no apoio das mãos.
— No três, beleza? Um… dois… três!
No exato momento, ela usou os ombros dele para se impulsionar, terminando de pular ao pisar em sua cabeça. Hazan soltou um grunhido de indignação, mas não teve tempo para protestar.
Aurora saltou tão alto que mal precisou de apoio. Já sabia exatamente onde se segurar, e subir se provou uma tarefa fácil.
Lá em cima, virou-se para ele, os cabelos brancos caindo sobre o rosto enquanto apoiava um joelho no chão.
— Sua vez — avisou, estendendo a mão para Hazan.
— Você tem noção de que eu peso pelo menos o dobro de você?
— E eu tenho o dobro de inteligência. Então pula direito.
Ele resmungou algo sobre falta de respeito, recuou alguns passos e tomou impulso. No momento certo, Aurora se inclinou, firmou os pés na borda e agarrou o antebraço dele com força.
O peso quase a puxou junto, seu joelho deslizando ligeiramente, mas ela se manteve firme, ajudando-o a subir.
Eles se olharam por um instante antes de voltarem sua atenção ao caminho adiante. O corredor se dividia em dois caminhos. As paredes, cobertas por cristais azuis, brilhavam como pequenos sóis frios, espalhando uma luz que ondulava suavemente pelas pedras.
O brilho era sutil, delicado, que se misturava à escuridão sem tentar vencê-la.
— E pensar que esse lugar teria um lado tão agradável. — Hazan cruzou os braços, observando a paisagem etérea formada pelos cristais brilhantes, que refletiam tons azulados na penumbra.
Aurora, sem desviar o olhar das formações, ergueu a mão e apontou casualmente para uma delas.
— Manalitas. Ou pedras de mana. — Sua voz carregava um tom de conhecimento casual, como quem explica algo óbvio. — Alguns cristais absorvem e armazenam a mana presente no ar.
Hazan inclinou a cabeça, analisando as pedras como se avaliasse um produto numa prateleira.
— Bonito. Mas dá dinheiro?
Aurora soltou um suspiro curto.
— Não muito.
— Então perdi o interesse. — Ele deu de ombros e chutou uma pedrinha solta, observando o brilho dela piscar e sumir.
Aurora balançou a cabeça e indicou as formações ao redor com um gesto amplo.
— Só sei que devem ter centenas delas aqui. São propriedade da Pena Azul.
Hazan parou no meio do movimento, os olhos semicerrados.
— Devia ter dito isso antes de eu pisar em uma delas.
— Se fosse esperto, não teria pisado.
Ele se virou lentamente para Aurora, franzindo o cenho.
— Isso foi um insulto?
Ela o encarou com uma expressão completamente neutra.
— Foi uma constatação.
Hazan estreitou ainda mais os olhos.
— Hm. Tô começando a perceber um padrão aqui…
Aurora simplesmente o ignorou e apontou para os corredores sinuosos à frente.
— O que sua intuição diz?
Hazan esfregou o queixo e fez uma cara de quem tinha certeza de sua decisão.
— Vamos pela esquerda.
Antes mesmo que ele pudesse dar um passo, Aurora girou nos calcanhares e seguiu firme pela direita, sem hesitar.
— Então nós vamos pela direita.
— Só pra deixar claro, se tiver muitos monstros esperando pela gente, vou fazer questão de esfregar na sua cara — ele acusou, apontando o indicador para a polariana.
Aurora lançou um olhar rápido por cima do ombro, com um sorrisinho quase imperceptível.
— Isso é, se você sobreviver tempo o suficiente.
Hazan piscou, absorvendo as palavras.
— Me senti ameaçado.
— Boa observação.
— Isso foi uma piada?
— Foi uma constatação.
Ele fechou a cara, bufando.
— Eu realmente tô vendo um padrão aqui…
Como se já não bastassem os desafios anteriores, o percurso decidiu inovar. Lidaram com armadilhas, mais alcateias de monstros, e, no grande final, pedras enormes rolando para esmagá-los. Aurora, com um olhar avaliador e nenhum sinal de hesitação, escalou a parede ao lado, deixando Hazan para se virar com a situação. — Boa sorte! — disse ela, já no topo.
Depois de muito reclamar (e sobreviver), Hazan seguiu viagem com a polariana, garantindo que, da próxima vez, ela não fugisse das escaladas difíceis.
Um enorme portão finalmente surgiu à frente, idêntico ao da entrada da masmorra. O problema? Entre eles e a saída, havia um abismo escuro, profundo o suficiente para que nem mesmo a luz dos cristais alcançasse o fundo.
Nenhuma ponte. Nenhum caminho óbvio. Apenas algumas plataformas de pedra flutuantes, distribuídas de forma irregular.
Aurora se aproximou da borda e testou o terreno. O peso da bota fez a pedra ranger sob seus pés, inclinando-se ligeiramente.
Por um segundo, sentiu um arrepio subir pela espinha, imaginando-se caindo para a escuridão sem fim. Mas a plataforma se manteve no lugar, contrariando suas expectativas.
Distância considerável… Mas não impossível.
O olhar subiu para o teto. Estalactites afiadas pendiam no alto, algumas tão grandes que pareciam prontas para desabar a qualquer instante.
Uma lufada de ar gelado atravessou a caverna, balançando seus cabelos. O vento não era constante — soprava em intervalos irregulares.
Recuou alguns passos, absorvendo cada detalhe ao seu redor. Sua mente começou a processar o cenário, traçando possíveis caminhos, testando soluções hipotéticas.
Uma ponte de gelo era impossível. Gastaria muita mana, o que a tornaria inútil na luta contra o corruptor. O teto não era tão alto. Se usassem as estalactites como pontos de apoio, talvez pudessem reduzir os saltos necessários.
Mas e o vento? Se ele soprasse na hora errada, poderiam perder o equilíbrio. Precisavam de um plano sólido.
Ela continuou calculando possibilidades, completamente focada.
Hazan já estava em uma das plataformas.
A pedra rangeu sob seus pés, e, antes que ele sequer comemorasse o feito, uma parte dela desmoronou. Pedaços de rocha despencaram para a escuridão, o que o fez olhar para baixo.
Erro fatal.
O ar ficou pesado no peito. O abismo abaixo era uma boca escancarada, um vazio impossível de medir. Os cristais não iluminavam nada.
Os dedos dos pés formigaram. O estômago revirou. Algo primitivo dentro dele gritou. Seu corpo sabia antes mesmo que sua mente admitisse: não havia chão ali.
E se o chão afundasse de vez? E se as próximas pedras não fossem seguras? E se…
Plop!
Um barulho seco cortou seus pensamentos.
O som das rochas atingindo a água lá embaixo trouxe uma constatação estranhamente reconfortante: o fundo existia.
Não saber a altura exata ajudava mais do que atrapalhava. Afinal, se ele não sabia o quão alto estava, também não podia ter certeza absoluta de que morreria na queda.
Hazan respirou fundo, balançou a cabeça e seguiu em frente. Saltou para a próxima plataforma. Não era grande coisa. Não tinha medo de altura. Não mesmo. Totalmente sob controle.
— Certo, definitivamente não é seguro… mas bora continuar.
Antes que Aurora pudesse protestar, ele continuou saltando de uma plataforma para outra, calculando seus movimentos com a precisão de alguém que claramente não tinha um plano.
— Ei, Aurora! Sai desse transe, garota!
O chamado a puxou bruscamente de seus pensamentos. Quando olhou para frente, a boca se abriu, mas as palavras simplesmente não vieram.
Ela respirou fundo, fechando os olhos por um segundo. Inspirar. Expirar. Não matar o companheiro de equipe.
Com um suspiro carregado, pressionou o polegar e o indicador entre os olhos, massageando a testa num gesto que buscava restaurar sua sanidade.
— Hazan… me diz como você chegou até aí.
Ele ergueu os braços, como se a resposta fosse óbvia.
— Bom, eu saltei. Ou você acha que eu criei asas e voei até aqui?
Aurora fechou os olhos mais uma vez. Seu olhar subia e descia entre as pedras flutuantes e as afiadas estalactites no teto.
— O que eu disse sobre me perguntar antes de fazer as coisas, hein? O que eu disse!?
— Ah, mulher, achei que isso só servia pras coisas que eu tinha dúvida!
— Que seja, fica parado! Eu vou te alcançar!
Com a graça de uma ladina, Aurora saltou entre as plataformas, mas não rápida o suficiente para cumprir com o que tinha dito.
Uma rajada de vento soprou repentinamente do abismo. Hazan instintivamente se abaixou, tentando manter o equilíbrio, enquanto Aurora cobria o rosto com o braço.
— O vento não é constante! — ela disse. — Vem em intervalos!
— Beleza, sabe-tudo! Me avisa antes da próxima rajada!
Aurora estreitou os olhos.
— Eu vou avisar. Mas primeiro, você precisa pular na próxima pedra… agora!
Hazan ouviu e saltou por reflexo. Assim que seus pés tocaram a nova plataforma, uma corrente de ar atravessou o abismo, forte o bastante para fazer a pedra onde ele estava antes tombar e desmoronar no vazio.
Ele olhou para Aurora com um olhar satisfeito.
— Aí, você é boa nisso! — elogiou, dando um joinha pra ela.
— Tenha mais foco!
Antes que ela respondesse, um som seco ecoou acima deles. Algo se deslocou. Hazan olhou para o teto e viu as estalactites tremerem levemente. Uma delas, enorme, se soltou e veio abaixo, caindo exatamente onde ele estava.
— Merda!
Saltou para a próxima pedra no último segundo. O impacto da estalactite fez a plataforma rachar. Outra rajada de vento surgiu, jogando poeira no ar e fazendo Aurora recuar um passo.
O vento uivava entre as plataformas flutuantes, rajadas irregulares sacudindo as pedras instáveis. O abismo abaixo se estendia como um poço sem fim, engolindo qualquer fragmento que se desprendesse do teto em ruínas.
Aurora cerrava os punhos, olhos analisando cada detalhe.
Ela inspirou fundo e fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, sua expressão estava afiada como uma lâmina.
— Eu guio você pelo padrão do vento. Pule quando eu disser. Se alguma estalactite cair, eu acerto antes que te esmague.
Hazan arqueou uma sobrancelha ao ver a braçadeira dela emitir um brilho gélido e um punhal de gelo se formar em sua palma.
— Isso parece um plano… ruim, mas melhor do que nada.
Ele flexionou os joelhos, pronto para agir. Aurora manteve os olhos no teto, atentos aos menores estalos.
O vento morreu por um segundo.
— Espera… — Aurora ergueu a mão. — Rajada em três segundos.
Ele sentiu o ar mudar. O vendaval rugiu, tentando arrastá-lo para o vazio. Baixou o centro de gravidade, firmando-se até a corrente diminuir.
— Você já fez isso antes? — murmurou, sem tirar os olhos da porta distante.
— Não. — A resposta veio rápida.
— Ah, ótimo. Isso me deixa bem confiante.
— Cala a boca e pula!
Ele saltou de novo. Um estalo seco ecoou acima.
— Droga! Estalactite! — Aurora puxou o braço e lançou o punhal.
A lâmina cortou o ar, atingindo a base da rocha. A estalactite desviou apenas o suficiente para Hazan passar ileso antes de se despedaçar no abismo.
Ele aterrissou na nova plataforma, mas sentiu o chão estremecer.
— Essa vai cair!
Saltou sem esperar.
— Hazan, espera! — Aurora gritou.
Tarde demais. O vento explodiu com força inesperada.
— Ah, merda—!
VOOOSH!
A rajada o empurrou no meio do salto. Ele caiu desajeitado, rolando até quase sair da borda. Os dedos cravaram na pedra no último segundo.
Aurora soltou um suspiro aliviado ao perceber que ele ainda estava vivo.
Hazan ergueu a cabeça, ainda pendurado na beirada, exibindo um gesto positivo com o polegar.
Ela revirou os olhos e o puxou de volta.
— Você vai pular quando eu disser. Se uma estalactite cair, eu cuido disso. Entendido?
Ele estalou o pescoço, soltando o ar lentamente.
— Beleza. Sem improvisos dessa vez.
O vento cessou. Aurora ergueu a mão.
— Três… dois… um…
Hazan saltou. O teto rangeu.
— Estalactite! — Aurora avisou.
Outro punhal cortou o ar. A lâmina atingiu a rocha em pleno colapso. Hazan aterrissou, abaixando-se no instante em que o vento varreu o espaço acima de sua cabeça.
— Isso foi perto demais! — Ele lançou um olhar para Aurora. O brilho no olhar dela indicava que também estava tensa.
Restava uma última plataforma antes da porta.
Hazan se levantou. O corpo inteiro pulsava com o esforço, mas a adrenalina mantinha os músculos firmes.
— Vamos acabar com isso.
Aurora inspirou fundo.
— Agora!
Hazan saltou.
O teto explodiu acima deles.
— Não… — Aurora arregalou os olhos.
Um turbilhão de rochas desabava sobre Hazan.
O tempo pareceu desacelerar. Ele viu o caos acima, sentiu o frio no peito.
Então, uma mão agarrou seu pulso.
— Segura firme!
Aurora saltou da plataforma e puxou Hazan junto consigo. Os dois despencaram, atingindo a última plataforma em um impacto desajeitado, rolando até baterem contra a porta do outro lado.
Assim que agarrou a mão dele, Aurora tinha certeza de que sofreria a maior parte do impacto. Ela só não contava com a primeira reação de Hazan: envolvê-la em um abraço protetor. Atrás deles, o que restava das plataformas desabou no vazio.
Ofegantes, permaneceram deitados, sentindo os corações batendo forte.
— … Você já pode parar de me abraçar.
Hazan a encarou. — Eu não recebo nem um obrigado?
— Você fez o básico.
Hazan bufou, e Aurora o empurrou para longe.
— Você é um Ímã de desastres.
Ele riu, sem se mexer.
— Mas nós sobrevivemos.
Aurora virou a cabeça para encará-lo, hesitando.
— Por sorte. E se acha que eu vou ficar carregando você por aí como fiz hoje, está muito enganado. Trate de ser mais útil, você entendeu?
Ele deu um sorrisinho.
— Qual é, fivemos um ótimo trabalho em equipe.
Ela desviou o olhar.
— Talvez.
— Isso foi um elogio?
Ela suspirou e se levantou.
— Foi um fato. Não se acostuma.
Hazan riu e fechou os olhos por um instante.
— O que vem depois dessa porta… provavelmente é pior, né?
Aurora suspirou.
— Sem dúvida.
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