Desgrudei de Gaia, colocando meus pés no chão.

    — E então, quais são seus planos? — disse.

    Iríamos passar um tempo juntas novamente.

    Sentia um aperto quanto a situação, mas se eu a confrontasse diretamente sobre o seu sumiço, poderia haver a chance de perdê-la novamente.

    — … — Olhava para todos os cantos, evitando a minha pergunta.

    Ah, então ela não tinha nenhum planejamento previsto.

    — Que tal… — Hesitou ao falar. — Que tal… passarmos nesse festival que terá hoje? 

    Ela murmurou em um tom que nunca havia visto antes, era como se estivesse envergonhada ao falar aquilo.

    Fiquei um pouco aliviada por ela realmente ter algum plano.

    — É claro! — respondi, rindo de sua cara.

    Seu rosto abriu um sorriso genuíno, em meio a todo aquele cabelo fofo que havia crescido em sua cabeça. 

    — Como você se sente com esse cabelo?

    — Ah, está bom, eu acho… — disse Gaia.

    Tinha certeza de que aquilo atrapalhava a sua visão. 

    E pensando bem, talvez todo esse cabelo caído em sua cara não fosse tão ruim quanto parece, era como uma juba de leão. Dessa forma ela ficava tão…

    Não! Se controle.

    — Conheço um salão aqui perto, não quer dar uma olhada? — Fiz carinho na sua cabeça, aproveitando a maciez antes que fosse tirada.

    — Vai demandar muito tempo, assim nós iremos nos atrasar e… 

    — E?

    — Tá bom… vamos.

    Levei ela para as escadas, descendo-as devagar. 

    — Pare de fazer essa cara triste. Nem vamos cortar o seu cabelo, apenas deixar ele arrumado é o suficiente.

    — Ah, sabe como é né.

    Tinha certeza que se eu pulasse naquela juba, iria me perder imediatamente dentro de seus fios de cabelo. Era engraçado pensar nisso, e ver essa negligência de Gaia com seu corpo apenas me encorajava a fazer essa higiene.

    Mas, todo esse momento foi interrompido por uma cena chocante.

    Aos pés da igreja, havia uma senhorinha ajoelhada na grande escadaria, chorando.

    Em sua mão, mesmo de longe, dava para perceber a foto que segurava. Uma fotografia de família, com quatro pessoas.

    E mesmo sem enxergar direito a foto, era apenas ligar os pontos que acharia a resposta. Segurava três fitas em sua outra mão, que naquele instante, já estava encharcada de lágrimas.

    — E– 

    Iria intervir, mas fui impedida no mesmo instante.

    — Não faça isso — disse Gaia, colocando seus braços sobre mim.

    Era… triste apenas. 

    Uma mãe que de repente perdeu seus três filhos em apenas uma tarde, nem consigo imaginar o sofrimento que ela estava passando.

    — Mas não é melhor falar com ela? Tentar confortar essa senhora em seu momento difícil?

    Ver ela chorando destruía meu coração de pouco a pouco, talvez se eu tivesse morrido, voltaria no tempo como daquela vez? Teria essa coragem de perder mais alguma coisa permanente por eles? 

    Esses tipos de pensamentos, me faziam refletir sem parar. 

    Estou mesmo fazendo a coisa certa?

    — Não é recomendado que faça. Estamos no submundo de Hektar, pessoas vêm e vão — respondeu Gaia. — É um pensamento forte que deve ser aguentado, nascer aqui é flertar com o abismo.

    Nunca questionei esse conhecimento excessivo de Gaia, mas dessa vez, era evidente que suas palavras carregavam um peso enorme.

    Passei esses dois meses enfurnada em meu quarto, apenas seguindo instruções e regras que me foram passadas. Mas essa é a primeira vez que vejo uma situação tão lamentável quanto essa.

    Sinto como se eu pudesse ter feito mais.

    — Então temos que apenas olhar.

    — Sim, infelizmente. É assim que a vida funciona. — Gaia pegou em minha mão, arrastando-me lentamente para o final da escadaria.

    Durante todo o caminho, ideias intrusivas entravam em minha cabeça, não parando por um instante.

    “Eu tenho que ser mais forte.”

    “Eu tenho que ajudar. Eu vou ajudar eles.”

    “Orgulharei a quem um dia… me deu a luz.”


    Gaia acabou deixando que eu fizesse as honras, então eu abri a porta do salão.

    Coberto de cores claras e tesouras que mais pareciam espelhos, ofuscaram totalmente o quão pequena a área era.

    Todo o local combinava com o nome que tínhamos visto na porta de entrada, “Lady”. Sendo passado a todo tempo uma sensação de nobreza em todo o estabelecimento.

    Naquele salão, a única coisa que nos surpreendeu de cara, foi a presença de apenas uma pessoa como atendente.

    Um homem relativamente baixo, vestindo roupas formais. Essas características eram simples, mas a sua aparência era marcada por seu corpo bem trabalhado e um bigode de se invejar. 

    Ele não notou a nossa presença dentro do salão, pois a sua concentração estava em outra coisa.

    Em uma cabeça falsa, o homem treinava um corte de cabelo, utilizando a sua tesoura e pente como nunca havia visto antes.

    A concentração dele era muito evidente, e sinceramente? Deu até vontade de dar meia volta.

    — Ei! — gritou Gaia.

    O homem não havia escutado, continuando a sua prática.

    — É, Seven, ele não está escutando. Melhor irmos embora.

    Uma clara tentativa de fugir do corte.

    — Você não vai escapar tão facilmente assim.

    — Tsk.

    Assim que Gaia estalou sua língua, o homem imediatamente parou o seu corte.

    Ele abaixou a sua tesoura, limpando o suor que havia em seu rosto com a toalha de seu ombro.

    — Vocês são? — disse o cabeleireiro.

    — Me chamo Seven, e essa aqui do meu lado é Gaia — Apontei. — Já deve ter percebido, mas será ela que vai receber o corte.

    Seus olhos brilharam quando olhou o cabelo de Gaia.

    — Então que corte vai querer fazer?

    Ops! Essa era uma parte que não havia pensado…

    E agora? 

    Olhei para Gaia, sem saber o que dizer.

    Ela suspirou.

    — Só deixe arrumado, por favor.

    No mesmo tempo, os olhos dele pararam de brilhar, como se tivesse perdido uma oportunidade de vida.

    — Que pena. 

    E então ele conduziu Gaia até uma das cadeiras, onde ele iria consertar o seu cabelo.

    O cara era profissional nesta área, demonstrando bastante domínio sobre os fios.

    Havia vários frascos em seu pequeno balcão, e nenhum deles eu reconhecia. Mas, levando em conta de como pegava e passava no cabelo de Gaia, podia supor que era para tratamento.

    Por outro lado, ela não parecia estar gostando muito dessa situação, talvez por pressa? Não… tínhamos tempo o suficiente.

    — Qual é o seu nome, moço? — perguntei.

    — …Mark. — Demorou para me responder, mas entendia o motivo. Estar diante de todo esse tesouro para os cabeleireiros, significava muita coisa.

    De repente, Mark puxou uma tesoura.

    — Calma aí! Mas eu só disse que queria ajeitar um pouco! — Gaia imediatamente se desesperou.

    — É muito, e arrumar significa cortar, mesmo que seja pouco. 

    Mesmo nervosa, ela aceitou as alterações.

    O processo rodou novamente, demorado, mas andava pouco a pouco. E a grande juba que tinha antes, começou a diminuir.

    Demorou horas, mas não foi nada cansativo. Ver Mark trabalhando era divertido, pois sempre fazia manobras com os frascos e a tesoura, era como se estivesse presenciando um circo.

    — Pronto! — Ele colocou um espelho para que Gaia pudesse ver as alterações feitas na parte de trás.

    E após concordar, ela se levantou em minha direção.

    — …Como estou? — disse Gaia, timidamente.

    Ela estava mais envergonhada agora, e tudo que eu poderia pensar era o quão fofa estava falando assim.

    Seu cabelo estava diferente agora, estava mais felpudo do que o corte anterior, lembrando realmente uma coelha.

    Ri um pouco.

    — Você está linda assim.

    Imediatamente quando eu disse isso, ela escondeu seu rosto para trás de seu cabelo.


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