O corpo do corruptor estremeceu, um espasmo final percorreu sua carcaça monstruosa. Seu único olho perdeu o brilho avermelhado, e um ruído gutural ecoou de sua garganta antes de finalmente se apagar.

    Tudo o que restou foi um vazio tenso, cortado apenas pelas respirações irregulares da dupla.

    O cheiro de sangue ainda pairava no ar. E é claro que não teriam tempo para descanso.

    O solo sob seus pés tremeu, rachaduras se espalharam pela arena. O peso da criatura morta empurrou a borda do campo de batalha para baixo. Pedras cederam, a terra se partiu.

    Aurora sentiu o chão sumir sob seus pés.

    O corpo despencou no vácuo, uma queda que premeditava a morte.

    Um instante antes do fim, algo a segurou. Um aperto forte no pulso. Dedos quentes contra sua pele fria.

    Hazan não estava nas melhores condições. O sangue escorria por seu braço, pingando sobre a escuridão abaixo deles. Mas ele não soltou.

    O frio da pedra contra seu rosto era quase anestésico, mas a dor gritava em cada canto do seu corpo. Piscou os olhos, enevoados pela vertigem e pelo sangue que escorria da testa. Seu peito arfava, os ossos fraturados zunindo em protesto a cada respiração, e o braço direito — o único que ainda podia usar — tremia ao segurar Aurora.

    A ponta dos dedos de Hazan estavam brancos pela força com que agarrava a mão dela. A pele de Aurora estava suada e escorregadia.

    Aurora pendia no vazio, os cabelos prateados se espalhando no ar como se a gravidade tentasse tomá-la. Seus olhos, sempre frios ou furiosos, estavam arregalados em choque. Não era medo — Aurora não temia a morte. Era outra coisa. Algo que Hazan não conseguia decifrar.

    — Seu maldito! — ela rosnou, surpresa com o decorrer da situação. — Se não me soltar, nós dois vamos cair!

    O corpo de Hazan protestou, mas ele firmou ainda mais os dedos ao redor do pulso dela. A ponta da rocha cedeu alguns milímetros, uma lasca caindo no abismo sem fim.

    — Eu me recuso. — Sua voz saiu áspera, engolida pela dor. Seu olhar, porém, queimava com algo inquebrantável.

    Aurora abriu a boca, mas hesitou. Por uma fração de segundo, a mulher de gelo não soube o que dizer. Seus olhos buscaram os dele, uma corrente de algo não dito passando entre os dois. Depois, com um suspiro trêmulo, sua expressão se contorceu em algo entre frustração e desespero.

    O estalo ressoou antes que qualquer um pudesse reagir. O chão abaixo de Hazan gemeu. A pedra estava prestes a partir.

    Ele precisava tomar uma decisão.

    O peso do próprio corpo já parecia insuportável, mas não havia escolha. Com o último resquício de adrenalina rasgando suas veias, Hazan puxou todo o ar que conseguiu e, num ato imprudente, puxou Aurora com a força que lhe restava.

    O chão se partiu.

    Scrash!

    O impacto foi brutal. Os dois rolaram pelo chão, mas Hazan protegeu a cabeça de Aurora. Próximos demais, novamente. 

    Mas isso era irrelevante. Um frio viscoso se espalhava pelo estômago.

    Sua regata branca com capuz, justa ao corpo, estava completamente manchada de um sangue que não era seu.

    Com cuidado, tirou Hazan de cima, deitando seu corpo no chão.

    O olhar da polariana encontrou o dele, mas não encontrou certeza. Hazan não estava ali por completo. As pálpebras pareciam pesadas, e a pele, pálida, denunciava a perda de sangue. Sua consciência era uma chama prestes a se extinguir.

    — Merda… Ei! Hazan! Você não pode ficar assim! — a voz dela trouxe uma autoridade habitual. Mas algo soou estranho, quase vacilante. — Se continuar desse jeito, como vamos sair daqui?! — As palavras saíram afiadas, mas sua expressão… 

    Era diferente. Não condizia com a Aurora que estava acostumado a ver. Não existia aquele rosto cínico ou indiferente com as situações ao seu redor. Em seu lugar, tinha algo confuso, uma hesitação sutil. 

    — Resista! Precisamos ir até a carruagem! Você lembra da carruagem? Podemos tratá-lo na cidade! Mas você precisa se manter acordado! — O tom de comando oscilava, traindo a inquietação que se infiltrava por baixo de cada sílaba.

    Hazan, ainda que atordoado, captou aquilo. Algo na voz dela… preocupação?  Um lapso de humanidade se esgueirava pelas frestas da máscara de gelo. Isso o fez rir, ou pelo menos tentou. O canto dos lábios ergueu-se mesmo sem perceber.

    Então você realmente possui um pouco de humanidade, hein…

    Tinha algo naquele tom de voz, naquela preocupação contida, que remexia o que deveria estar esquecido. Era um chamado distante para um passado que nunca partira por completo. 

    Cheiros, sons, imagens — pedaços de um tempo antigo enredados em uma saudade sem nome. A nostalgia veio, lenta e sutil, envolvendo-o sem aviso.

    Hazan não se moveu.

    — Você… Você só pode estar brincando… — murmurou Aurora, irritada e preocupada.

    Os olhos se fecharam numa tentativa de se apaziguar.

    Cerrou os punhos. 

    A mente gritava que aquilo não era problema seu, mas o sangue manchando suas roupas dizia o contrário.

    Desde que pisaram naquela masmorra, Hazan havia enfrentado dezenas de alcateias e armadilhas, sem trégua. 

    Ele tomou a linha de frente nas batalhas, protegendo alguém que não admitia estar ferida e cansada. 

    Mesmo sem preparação, mesmo sem descanso, continuou lutando. E, por mais que odiasse admitir, era por isso que ela ainda estava respirando.

    Apesar de ser a primeira missão juntos, já estava óbvio que aquele idiota não conhecia a palavra limite. Que se jogar no perigo era um hábito, algo banal e rotineiro.

    As horas passadas ao lado dele foram irritantes e confusas. Ele não fazia sentido. Sua estamina absurda, visão de batalha e as técnicas que usou contra o corruptor provaram que sua sobrevivência na fortaleza de William não foi obra de um mero acaso.

    As emoções se agitaram dentro dela como um mar revolto. Um fio de culpa. Um resquício de algo que se recusava a nomear. Algo antigo e enterrado. Esmagou tudo antes que pudessem se proliferar.

    Seus olhos brilharam num ciano frio.

    Não posso perder o foco. A pior ferida vem primeiro. O resto… ele vai aguentar. Ele é forte.

    Ela não tinha se dado conta, mas queria acreditar nisso. 

    Começou a análise dos ferimentos, estabilizando sua respiração. Estava concentrada.

    Pressionou os lábios em uma linha fina ao examinar o estrago. O braço esquerdo estava coberto por cortes profundos, marcas irregulares dos dentes do corruptor. O ombro, em um estado ainda pior, exibia lacerações onde a criatura havia cravado as presas e garras.

    Preciso converter a mana em ar frio, mas não vai ser fácil. Se eu exagerar na temperatura, posso acabar piorando o ferimento ao invés de ajudar.

    Respirou fundo. A mão pairou sobre os ferimentos, hesitante por um instante ínfimo antes que um pequeno círculo mágico surgisse. Tinha um tom azulado como os seus olhos.

    Sentiu a mana responder, fluindo através de seus dedos e passando pelo círculo conjurado.

    A mana fria se esgueirou pelo braço e ombro dele, uma presença gélida que se expandiu, infiltrando-se sob a pele e se mesclando ao sangue quente. Aurora controlou a intensidade com precisão. 

    Gelada o suficiente para desacelerar a circulação sanguínea e estancar o sangramento, mas não tanto a ponto de congelar os tecidos. Hazan franziu o cenho, mas, pouco a pouco, a tensão em seu rosto cedeu conforme a dor recuava.

    Seu olhar permaneceu fixo no trabalho. Qualquer distração seria imperdoável. Não importava a forma como seus próprios pensamentos insistiam em se desviar para coisas irrelevantes.

    Ele poderia ter morrido. Um movimento errado, um golpe a mais, um segundo a menos. O custo seria permanente.

    Quando terminou, puxou a adaga da bainha e rasgou o tecido de seu próprio capuz. Tirou as sobras e, sem perder tempo, improvisou bandagens apertadas ao redor dos ferimentos. Uma volta, depois outra. Pressão suficiente para conter o sangramento sem comprometer a circulação.

    Suas mãos tremiam. Havia sangue sob suas unhas. Aurora ignorou isso.

    Fazia muito tempo desde que tinha cuidado de alguém. O feito lhe trouxe emoções que estava lutando para destruir.

    Por fim, soltou um suspiro discreto e recuou apenas o necessário para observá-lo. Os ferimentos ainda estavam lá, mas o sangramento tinha diminuído. Sua expressão não era mais tão severa. E o estranho cordão que ele sempre carregava consigo emitia um brilho alaranjado. Um brilho sutil, que Aurora não tinha notado antes.

    Ele vai aguentar. E quando ele acordar, vai ter que me responder.

    Enquanto remendava o corpo de seu companheiro, as cicatrizes do ambiente também se fechavam. As paredes destruídas tinha se restaurado. As pedras estilhaçadas se reagrupavam, o chão se refazia pouco a pouco. Aurora franziu a testa, mas sua atenção não demorou a se desviar para outro detalhe.

    O núcleo da masmorra.

    Sobre um altar de pedra escura, no limite do salão, um globo de cristal repousava, imóvel e sem brilho. 

    Aurora observou sem surpresa. Era o destino de todas as masmorras — sem seu corruptor, voltavam ao seu estado natural.

    Até mesmo o peso quase palpável no ar tinha desaparecido.

    Não acredito que lidamos com uma masmorra de classificação névoa. Mas a prova está bem na minha frente. O núcleo foi purificado.

    Atrás do altar, a pedra se partiu, revelando uma porta onde antes não havia nada.

    Aurora estreitou os olhos, sentindo um misto de satisfação e desconfiança. Algo sobre aquilo parecia anticlimático. 

    Guardou sua adaga na bainha e notou que a outra estava faltando. Ela tinha fincado no olho do corruptor antes da queda no abismo. 

    Olhou para trás e se certificou que Hazan estivesse desacordado. Estendeu a mão para frente e se concentrou. Seus olhos brilharam novamente.

    Num brilho azulado, a adaga que tinha se perdido no abismo retornou para sua mão. O peso familiar lhe trouxe um pouco de alívio. Mas não o suficiente.

    Por ora, precisava sair dali.

    Virou-se de volta para Hazan. Ele continuava imóvel, mas sua respiração seguia estável. Isso teria que bastar.

    Reajustou as bandagens improvisadas, sentindo o tecido áspero contra os dedos. Sem hesitar, passou um dos braços dele sobre seus ombros e o puxou para perto. 

    O peso extra fez seus joelhos protestarem.

    Ele era mais alto, mais pesado, e os músculos pareciam duros como pedra. 

    Mas se recusava a deixá-lo ali.

    Com um último olhar ao redor da masmorra, tomou a decisão.

    O portão estava à frente.

    E ela não pretendia hesitar.


    Aurora saltou da carruagem, tomando cuidado com Hazan em suas costas.

    — Eu disse pra estarem aqui antes do pôr do sol — resmungou o cocheiro enquanto descia da carruagem. — Isso me fez perder tempo, e tempo custa dinheiro.

    Os cavalos estavam ofegantes. O homem retirou algumas maçãs de sua bolsa e os alimentou.

    Aurora nem olhou para ele. O homem exibiu um sorriso nervoso, e continuou a insistir.

    — Vamos combinar, eu tratei vocês como nobres. Esperei além do tempo combinado, vim o mais rápido que pude… — Foi contando cada favor nos dedos. — Sem uma palavra sobre o passageiro desmaiado, sem cobrar taxa extra pelo sangue nos estofados… Se isso não merece um pagamento mais generoso, eu realmente não sei o que vale!

    A polariana o encarou em silêncio. Enfiou a mão no bolso, retirou algumas moedas de prata e as estendeu para ele.

    O cocheiro pegou o dinheiro, mas não pareceu satisfeito.

    — Três moedas? Minha jovem… Manter os cavalos, pagar a ferragem, alimentar minha família… Acha mesmo que isso basta?

    Aurora sorriu. Mas não um sorriso comum — tinha algo estranho nele, algo que fazia o incômodo se instalar na espinha do cocheiro antes mesmo que ele entendesse o motivo.

    Com um movimento casual, pousou a mão no ombro dele.

    — Você vai aceitar essas moedas.

    A voz saiu firme. Fria.

    O cocheiro engoliu em seco. Não discutiu. Apenas assentiu, rígido, enquanto Aurora dava dois tapinhas no ombro dele e seguia em frente.

    Mas para ele, aquilo ainda não tinha acabado.

    Seus olhos a acompanharam, dançando entre a indignação e a hesitação de quem simplesmente não sabe a hora de desistir.

    Sua desgraçada… Isso não vai ficar assim.

    A noite tinha caído. Três luas se erguiam no céu estrelado. Casas e estabelecimentos se estendiam pelas ruas a cada passo que Aurora dava. Ela não pensava em mais nada. Seu objetivo era um passo de cada vez. 

    A cidade, mesmo à noite, nunca dormia completamente — alguns cidadãos caminhavam tranquilamente, lançando olhares preocupados para a mulher carregando um homem inconsciente nas costas.

    Mas hesitavam por conta de uma sombra maior.

    Um vulto de ameaça, esculpido pela luz mortiça dos lampiões. Elas não sabiam exatamente o motivo, mas algo gritava para que se afastassem daquela mulher de cabelos brancos.

    Quando estava prestes a chegar no limite, seus olhos avistaram um vislumbre de esperança. A Igreja de Unitas. O templo não era gigantesco, mas trazia o respeito necessário. 

    Cercas simples de madeira cercavam o terreno, facilitando sua nitidez. Podia não ser uma estrutura enorme, mas chamava atenção.

    As torres gêmeas se erguiam para o céu, uma mais alta que a outra. Na mais alta, havia o símbolo do sol, e na mais baixa, o da lua. O típico simbolismo sobre equilíbrio e dualidade.

    Aurora se aproximou da entrada, onde dois guardas estavam posicionados. Antes mesmo que abrisse a boca, percebeu que eles estavam atentos, avaliando-a com desconfiança. Um deles franziu o cenho, a mão se aproximando do cabo da espada.

    — O que deseja, mulher? — a voz trazia um tom duro.

    — Preciso falar com o sacerdote.

    Os guardas trocaram olhares, decidindo quem lidaria com aquela situação. Um deles soltou um suspiro e deu um passo para a frente, os olhos desconfiados varrendo Aurora de cima a baixo.

    — Hah… é claro que você precisa… — O guarda suspirou, passando a mão pelo rosto. — Uma mulher ensanguentada, arrastando um sujeito desacordado como se fosse um saco de trigo… e ainda quer falar com o sacerdote? — Soltou uma risada seca, cruzando os braços. — Me diz uma coisa, qual é o seu problema, hein?

    Só então Aurora percebeu que sua presença pesava no ar. A tensão acumulada vazava de seu corpo de uma maneira sutil. Um mal-hábito que não conseguia controlar.

    Intenção assassina.

    Ela cerrou os dentes, sustentando Hazan com uma mão enquanto a outra deslizava rapidamente para o cabo da adaga presa ao cinto. Num único movimento, sacou a lâmina e apontou para os guardas.

    — Meu problema é que estou sem paciência. — Sua voz era um sussurro cortante. — Então, saiam da frente antes que eu crie um problema novo. — Estreitou os olhos. — Um que vocês não vão gostar.

    Os guardas recuaram um passo. As mãos deles vacilaram entre segurar as armas ou evitar o confronto.

    — Chega. Acolher os necessitados é nosso dever.

    Uma voz feminina rompeu a tensão com uma calma inquietante.

    Aurora virou a cabeça e viu uma jovem emergir das sombras do pátio da igreja. Seu manto era simples, mas a gola trazia um detalhe notável: um broche de prata adornado com o símbolo de uma chama azul.

    — O que estão fazendo? Não veem que ela precisa de ajuda?

    Os guardas hesitaram antes de abaixar as armas. Quando se aproximaram para ajudar, Aurora deu um passo atrás, mantendo a adaga erguida.

    Seus olhos se fixaram na garota de olhar gentil.

    A jovem recuou ligeiramente ao perceber a firmeza na postura da polariana, mas logo fez um gesto sutil, indicando a entrada da igreja.

    — Por favor, entrem. A graça da Grande Mãe se estende para todos.

    Aurora segurou a adaga por mais alguns instantes antes de guardá-la. Com um ajuste rápido, acomodou melhor o peso de Hazan sobre os ombros e, sem mais hesitação, atravessou a entrada com passos firmes.

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