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    — A verdade é que nenhuma verdade se diz assim. — Render caminhava calmamente entre as lâminas de bambu, a voz tão firme quanto o solo sob seus pés. — Nenhum homem pode afirmar que algo é verdade apenas porque deseja que seja. A realidade torna a verdade mutável. Entenda isso, e entenderá todos os problemas do mundo.

    A frase se agarrou à mente de Dante como um espectro persistente, voltando no momento mais inesperado. A plataforma subia, rangendo acima da sua cabeça, e, por algum motivo, os ensinamentos do pai voltavam com força. Talvez fosse saudade de casa. Talvez fosse o receio de ter sido jogado para longe dela.

    De qualquer forma, lembrar o fazia respirar melhor.

    Havia algo nas palavras do pai que dissipava as mentiras e armadilhas que Dante mesmo criava para si. Suas fraquezas, suas derrotas, seus medos… Todos se transformavam em ferramentas, fragmentos do passado trazidos ao presente. Render era um homem severo, e a Energia Cósmica que emanava dele era assassina, como uma melodia de morte rastejando pela noite. Por muito tempo, aquela presença atormentou Dante, até mesmo quando lhe disseram que ele era uma falha.

    Agora, estava ali, frente a frente com outra figura imponente.

    — Admito, sua coragem é impressionante. — A voz do Glossário era calma, mas o rosto carregava irritação. Ele se aproximava lentamente, cada passo pesado com intenção. — Vir até aqui sem uma base, sem um navio decente… Isso foi um feito e tanto.

    Dante inclinou a cabeça, um sorriso zombeteiro brincando nos lábios.

    — Não tenho um navio decente? — A provocação veio fácil. — Então por que está tão desesperado para tê-lo para si?

    Atrás de Glossário, seus dois subordinados se mantinham imóveis como estátuas. Homens grandes, completamente cobertos por placas de metal de tom arenoso. Um empunhava um machado imenso, o outro uma espada de lâmina larga. Seus olhos semicerrados sugeriam estudo — ou desprezo.

    — O fato de eu querer o navio de um traidor não significa que eu o deseje de fato. — Glossário suspirou, como se estivesse cansado de explicar coisas óbvias. — Existem muitos fatores além da sua compreensão. Aliás, seu nome é realmente “Capital” ou é apenas como eles te chamam?

    — Meus pais me deram o nome de Dante.

    — Ora, que curioso. Um nome fraco para um homem forte.

    Dante riu novamente.

    — Não se preocupe. Você não vai esquecê-lo tão cedo.

    O olhar de Glossário estreitou.

    — Você fez o que fez em Truman… Agora em Singapura… — Ele parecia ponderar algo. — Sabe por que ainda não o matei, jovenzinho?

    Dante deu de ombros.

    — Existem coisas que devem ser passadas adiante.

    — Uma mensagem? — Glossário arqueou uma sobrancelha. — Para quem?

    Dante sorriu de canto.

    — Quem mais seria? Seus aliados. Se está me caçando, quer dizer que me fez de inimigo. Os últimos que tentaram não gostaram muito do que fiz com eles.

    Mentira. Até agora, apenas Felroz o caçara. Mas blefar fazia parte do jogo.

    — Me disseram que você mexe com necromancia, mas duvido que isso seja verdade. — Dante inclinou a cabeça, estudando o homem. — Você não parece um feiticeiro. Mas também não posso subestimar suas ações.

    Glossário sorriu, um brilho curioso no olhar.

    — Ah… Os boatos. — Sua voz carregava um toque de diversão. — Você duvida que eu possa trazer os mortos de volta?

    Dante negou com convicção.

    — O que eu vejo é um homem que sabe muito, mas não o suficiente para me assustar. A morte tem cheiro, tem aura, tem forma. — Seu olhar se fixou na Energia Cósmica ao redor deles. Vibrante. Orgânica. Viva. — E você não carrega nenhuma dessas marcas.

    Glossário soltou uma risada seca.

    — Então é sobre isso que veio falar? Acha que venceu porque levou aquele homem com você? Porque conhece um pouco desse mundo? Deixe-me dizer algo, Dante… A vida é muito mais complicada. Você pode ter viajado bastante, mas não vejo sabedoria alguma em suas ações.

    Dante apenas riu. A última risada que dedicaria ao Glossário.

    Sem pressa, ele se virou e começou a andar em direção à porta da plataforma.

    — Avise ao Bastardo que eu não sou um homem fácil de ser capturado… E sou ainda pior em ser esquecido.

    Parou por um breve momento antes de sair, apenas o suficiente para virar o rosto e encará-lo uma última vez.

    — Não esqueço um rosto facilmente, Glossário. E espero que faça o mesmo.

    O homem sorriu de volta, a expressão carregada de promessas não ditas.

    — Não vou esquecer.

    Dante assentiu, satisfeito.

    — Ótimo. Da próxima vez que nos encontrarmos, eu duvido que teremos uma conversa civilizada. Não é que eu não queira, mas você tentou matar alguns dos meus subordinados.

    Seus olhos brilharam com uma certeza afiada.

    — O Nokia tem um novo capitão. Avise a quem quiser. — Fez uma pausa. — Não vão querer estar na nossa rota.

    I

    Do lado de fora, a tempestade acertava as paredes do que restou das casas e prédios. As vigas eram forçadas a dançar pelo vento, e a bandeira erguida nas torres não tinham tregua ao se manterem amarradas e de pé contra a natureza.

    O que deveria ser uma força destrutiva da natureza contra eles se tornou um passeio. Gregoriano nem precisava erguer a mão, as areias ao seu redor se tornaram uma parede móvel, os protegendo pelas costas e lateral, criando um casulo que se mexia para fora de Singapura.

    — Faz tempo que não venho aqui pra fora. — Carpinteiro respirou fundo. — Acho que não tenho mais como voltar para cá depois disso tudo.

    — Não é seguro, pai. — O braço de Elise passou por trás, o consolando. — Nós fizemos a escolha certa. Gregoriano também está com a gente. Mesmo que…

    — Ainda não é o momento para conversar sobre isso.

    A barreira de areia ao redor ondulou velozmente pelas costas. Trahaus foi a primeira, girou a adaga na mão já virando e abaixando para atacar. O Comandante Dante entrou cuspindo areia e batendo no ombro, desfazendo da sujeira.

    Quando viu os demais com suas armas a postos, deu uma risada e ergueu a mão.

    — Está tudo bem. Eu só precisava falar algo com aquele babaca lá embaixo. E então, estão prontos para voltar?

    Porto soltou uma risada e foi em sua direção, levantando o punho. Dante acertou, sorrindo.

    — Você é maluco, Comandante. O que deu em você de sair na mão com todo mundo? Poderia ter deixado pra gente um pouco.

    — Ah, sabe como é. Eu gosto de me divertir bastante.

    Carpinteiro se aproximou de Dante pelo lado e esticou a mão para ele. O velho o encarou e o cumprimentou.

    — Espero que possa nos manter seguros enquanto estivermos a bordo do Nokia. O Glossário claramente vai querer caçar o senhor pelo que fez, mas tenho certeza de que será o maior desafio dele.

    — O pior — corrigiu Trahaus. — Bastardo e ele podem entrar um na bunda do outro e não vão conseguir nos encontrar. Não vamos cometer o mesmo erro.

    Dante aprovou com a cabeça.

    — As palavras dela são as minhas. Existe um oceano dividindo todos nós, por isso, o próximo encontro não deve ser tão rápido quanto esse. Quando retornarmos, nós faremos o necessário para que tudo esteja em plena funcionalidade, e depois, tomaremos um rumo.

    Gregoriano foi outro que Dante fitou.

    — Essa é a sua casa, mas se você tiver vontade, o Nokia tem lugar para mais um.

    — Esse lugar foi a casa dos meus pais, mas nunca foi a minha. Meu coração não pertence a Singapura. — Mesmo não querendo, seus olhos se movimentaram na direção de Elise, mas ele corrigiu a postura. Dante percebeu. — Eu seguirei o senhor até onde sua moralidade nos levar, mas nunca farei nada contra a minha própria.

    — Ótimo. — Dante deu um tapa nas costas dele, gargalhando. — É isso que eu queria ouvir. Agora, mexa essa bunda e vamos voltar pro navio. Estou exausto.

    — Claro, ficou lutando igual um desgraçado. — Trahaus apontou, irritada. — Pomodoro disse que você não deveria ficar se movendo muito. Não escuta ninguém, isso que dá.

    Dante suspirou.

    — Essas são as consequências das minhas ações.

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