Nos becos mais profundos, nas favelas do grande Império da verdade, em meio a sujeira, podridão e dos horrores que espreitam a cada esquina. Através de um pequeno buraco em uma parede, Yaci rastejava de volta para casa, carregando sua nova bolsa, cheia de novos tesouros e comida, muita comida!

    Ela voltou para casa. Sentia que logo as coisas ficaram perigosas mais cedo que o normal. Essas mortes misteriosas, assassinatos brutais que ouviu falar, algo estava acontecendo. Seu encontro com aquele homem foi a confirmação que precisava para entender que se não fosse cuidadosa, logo seria a sua vida que chegaria ao fim.

    Entrando em sua humilde morada, a única coisa que se mantinha em sua mente era se limpar de todo aquele sangue que respingou nela.

    Yaci se sentia imunda por causa do sangue seco em sua pele. Era hora dela fazer uso da invenção predileta do seu irmão Rafa, o chuveiro da fábrica!

    Não era muito complexo, mas só o fato de dar a dignidade de um banho para seus irmãos e irmãs enchia Rafael de alegria. Ele se aproveitou de um buraco no teto da fábrica, então colocou vários barris, potes, tudo que achou que pudesse conter a água da chuva que escorria pelo buraco, na esteira mais alta abaixo dele. Então o menino ligou tudo com várias mangueiras, e a gravidade fazia o resto.

    O banho foi rápido, mas como não havia chovido muito recentemente, ela não tinha água o suficiente para lavar suas roupas sujas de sangue, então vestiu uma camisa preta  que o mais novo de seus irmãos, e a mais velha de suas irmãs costuraram de presente para ela e uma calça moletom azul marinho, que pegou emprestada de Rafael e nunca teve a oportunidade de devolver, era um pouco larga, mas bastante confortável.

    Limpa, e agora de cabeça fresca, ela decidiu o que fazer em seguida. Guardou metade da comida que achou pelas ruas vazias, ou jogadas no chão e abandonadas, na freezer da fábrica, A outra metade?

    Posta de forma organizada em um pano branco com desenhos e detalhes em costura muito bonitos, tinha assinado no bordado, o nome Iara. O pano descansava no chão, a comida colocada sobre ele, hoje Yaci teria um banquete! Comeria como não comia há muito tempo. Provavelmente não seria o suficiente para saciar sua fome, nem se livrar da desnutrição incapacitante que a atormentava.

    Por enquanto, não pensaria no seu saque, ou no que iria fazer no futuro próximo, até mesmo o mistério da sombra viva que falou com ela parecia pequeno em comparação com a oportunidade de comer boa comida. Agora, só se concentraria em comer. No sabor que vinha junto de cada mordida. Oh como estava feliz!

    Ela pegou uma fruta vermelha e redonda, a segurando com as duas mãos, ao morder, a suculência doce invadiu sua boca, a crocância da casca, a maciez e do seu interior. Para o paladar enrustido da menina, aquilo era digno do título de divino! 

    “Então existem pessoas que podem comer isso todos os dias? Que injusto…”.

    Ela provou de tudo, havia até uma massa de pão que tinha carne de verdade dentro! Dá pra acreditar?!

    Mas tudo que é bom tem um fim, sua gloriosa refeição acabou.

    Ela estava… satisfeita? Sim, na medida do possível estava satisfeita. Pequenos resquícios dos sabores deliciosos permaneceram flutuando no seu paladar.

    Mas de pouco em pouco, foram lavados gentilmente, transformados em boas memórias, guardadas no fundo da sua mente.

    Agora, pairava sobre ela questionamentos importantes, o que faria com tudo que pegou, ou melhor, qual é a extensão e utilidade dos itens que pegou durante o dia.

    Mas todos esses pensamentos eram irrelevantes quando comparados com o sono e cansaço que sentia, suas pupilas lutavam para ficar de pé! Veio de forma fulminante, parecia que ia desmaiar.

    Não sabia o por que, mas se convenceu que foi um efeito de comer muito de uma vez só. Com dificuldade de pensar e andar, ela escondeu sua bolsa debaixo da cama, e foi se deitar, o sono a sobrepujou rápido, e logo, ela se viu em outro sonho.

    Ela estava rodeada de seus irmãos, todos os seis, sentados em uma mesa, bem vestidos e alimentados, comendo comidas deliciosas em um farto banquete. Eles estavam rindo, conversando, sorrindo.

    O jantar continuou como qualquer outro, e a cada segundo que passava ela queria cada vez mais nunca acordar. 

    Entretanto, quando esse pensamento cruzou a sua mente, Yaci sentiu uma presença que não estava lá antes. Ao olhar para o final da mesa, sentada em uma grande e sinuosa cadeira, sua sombra. 

    Manifestada fisicamente naquela cadeira, e não apenas lançada de forma plana em uma superfície, ela tomava forma de uma mulher adulta, com traços parecidos com os de Yaci mas vestindo uma armadura imponente.

    As poucas partes de “pele” amostra eram cobertas por cicatrizes que brilhavam em branco como seus olhos, em meio da escuridão de que era composta. Seu cabelo era uma cascata de branco, parecendo um oceano de marfim.

    Seus membros eram musculosos e definidos, exalando uma força sobrenatural. 

    A sombra olhou diretamente para os olhos de Yaci, como se encarasse sua alma, e então, com calma, disse:

    — Acorde Yaci…

    E assim foi feito, ela abriu os olhos, sem susto, sem medo, sem desespero. 

    — O que está acontecendo comigo?

    Ela perguntou, mas não houve resposta, afinal, ela estava sozinha. Levantou-se, caminhou para fora de sua tenda, olhou em volta e nada, como sempre, ninguém havia chegado.

    Um pouco de luz do sol podia ser vista entrando pelas grandes janelas e buracos ao redor da fábrica. Estava de manhã, provavelmente às cinco ou seis, Yaci não sabia com certeza, já que ela não tinha um relógio.

    Sua determinação vacilou, mas não ruiu. Ela cerrou os dentes e voltou para sua casa, ela já havia dormido o suficiente, já era de manhã e ainda havia muitas coisas a fazer!

    Sentou-se no chão com bolsa e a esvaziou em cima do pano branco, alguns lápis e canetas caíram no chão mas ela não se importou e começou a estimar de forma minuciosa seus ganhos. Começou pelo dinheiro

    — Um, dois, três…

    Contou moeda por moeda, nota por nota. No total juntou 2 lunis e 60 centavos, era muito dinheiro. Poderia facilmente comer comidas frescas e deliciosas todos os dias durante uma ou duas semanas, dependendo de como ela usar.

    Se Yaci se limitasse a comprar apenas comidas simples, e não tão saborosas, provavelmente poderia comer comida de verdade durante um mês. O pensamento de não ter que comer aquele “comida” sintético a deixou muito feliz.

    Terminado com a contagem do dinheiro, ela partiu para analisar as outras coisas em sua bolsa. Três livros, todos de capa dura e lisa, um preto, um vermelho, e um azul.

    Pegou o azul, o abriu com calma, e começou a ler. E junto da leitura uma enxurrada de memórias do mais velho de seus irmãos a ensinando a ler.

    — Por que eu tenho que fazer algo tão chato assim, Benjamin? Isso vai ser realmente útil algum dia?

    Com um olhar calmo e carinhoso ele respondeu sorridente 

    — Mas é claro que vai! Guarde isso com você para sempre Yaci, conhecimento é tudo! O único bem que ninguém pode tirar de você. E que melhor fonte de conhecimento do que livros? Então sim, você tem que aprender a ler! Vai te ajudar muito durante a vida, eu te garanto.

    — Tá bom…

    Uma única lágrima escapou, descendo pelo seu rosto, e junto com ela a realidade voltou para sua frente, e nela, a primeira página de um livro aberto, com uma pequena mancha da lágrima. Escrito nela esteva:

    Livro de distribuição pública 

    Conhecimentos gerais sobre história, geografia e econômica para o estudo e admissão de concursos públicos.

    Seus olhos se arregalaram, um sorriso se formou em seu rosto.

    — Isso… vai ser muito útil, obrigado Benjamim.

    Ela não queria ser concursada, mas se conhecimento era nosso bem mais valioso, o que poderia ser melhor do que um livro de conhecimentos gerais?

    Para alguém que não sabia nada sobre o mundo fora das favelas, era um tesouro inestimável!

    Mas ainda não era hora de sentar e estudar, ela tinha que ver tudo que ganhou, e decidir o que era mais importante de fazer no curto prazo.

    Passando para o próximo livro, ela pegou o de capa vermelha.

    Quando o pegou, uma sensação de déjà vu grande assolou sua mente, a sensação de pegar o livro, passar as páginas com cuidado, tomar anotações, tudo isso, passou por ela em um único instante.

    E assim ela fez, pegou o livro, o abriu, e leu:

    Livro de categoria militar

    Estritamente Proibida a distribuição para civis.

    O estudo e os fundamentos da quintessência, e suas utilizações no corpo e no misticismo 

    Escrito por Albert G. 

    Esse título, esse autor, eram tão… chamativos. Yaci nunca tinha ouvido ou lido algumas palavras do título, e isso atiçou muito sua curiosidade. Ela parecia compelida a se sentar e começar a estudar. Entretanto, ela optou pelo contrário.

    — Ainda não… esse livro, parece ser mais complexo que o azul, só o título tem palavras que eu nem conheço. Eu preciso começar do começo. 

    Agora o último livro, era estranho… ele passava uma sensação sinistra, sua capa preta era feita de couro, e seu toque causava arrepios intensos que subiam pela espinha.

    — O que está acontecendo? Esse livro, ele é todo bizarro, todos os livros de ricos são assim? Por que quanto mais dinheiro alguém tem, mais esquisitos eles se tornam?!

    Não menos bizarro, o livro estava vazio! Nenhuma letra, nem palavra, escritas em suas páginas.

    — Tá bom, né… vou te deixar de lado por enquanto!

    Os últimos dois itens… Yaci não queria mexer neles. Foram o presente de despedida daquele homem, ele entregou a ela, junto com suas últimas palavras. 

    “Que os deuses tenham piedade…”

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