Capítulo 14: Negação
Aquele pedido tinha pouco sentido. Ela estava pedindo que Yaci a acompanhasse em uma viagem que poderia durar até três dias. Uma viagem em direção ao oceano, ir dizer adeus para pessoas que ela nunca conheceu.
Yaci estava, no mínimo, surpresa com o rumo que a conversa tomou tão rápido.
— Olha, isso é muito repentino… desculpa, mas não tenho motivos para aceitar ir com vocês. Queria saber como estavam, e se eu poderia fazer alguma coisa para ajudá-los, mas se isso for tudo que vocês tem a me pedir, então já vou indo embora, agora sei que estão bem, não tenho muito o que fazer por aqui. Se eu achar alguma coisa útil por aí eu trago pro pessoal que tá aqui, como da ultima vez.
Se virou para sair, mas após alguns passos, algo a impediu.
— Escuta, por favor… Eu pulei algumas partes. Urgghh, por que isso é tão difícil?! — Com uma expressão derrotada, a mulher, com delicadeza, pegou a mão de Yaci. — Me desculpa… de novo, vamos começar do começo, com calma, ok?
Ficou relutante, mas cedeu. Esperou com paciência para ver o que tinham a dizer.
— Yaci… eu sei que não sabemos quase nada uma da outra, parece que você não tem motivos pra aceitar ir com a gente, mas tem sim!. Dói admitir isso, mas você se parece com um dos meus filhos, por isso eu e meu avô queremos ajudar você.
— Isso ainda não é motivo. Como você iria me ajudar? Por que você não fala logo o que você quer? Não acredito que vocês só tem isso a dizer, ainda mais quando querem me convencer a cruzar dois estados a pé, para fazer uma coisa que não tem nada haver comigo.
Foi neste momento, que o senhor, até então calado, voltou a falar.
— Mas tem haver com você! Para de enrolar Hilda…
Yaci levantou uma sobrancelha para eles.
“Como assim tem haver comigo? Esse velho ficou senil?
O clima ficou pesado, não sabia o porquê, mas Yaci sentiu que não iria gostar do que eles vão falar a seguir.
— O que você quis dizer com isso?
Hilda, já pouco nervosa, veio em defesa do avô.
— A gente sabe que você está em uma situação parecida com a nossa. — O rosto de Yaci fechou, o pensamento de Hilda continuava insana e delirante pareceu uma possibilidade plausível.
— Não tem nada parecido na situação que a gente se encontra agora! — Sua voz subiu vários tons, mas as pessoas ao redor pareciam não se importar.
— Tem sim! Olha, a gente não ia se meter na sua vida, sério. Mas queríamos poder retribuir o favor. Não sabíamos seu nome então fomos perguntando para as pessoas nas favelas se elas já tinham te visto, ou se você tinha alguma família para te ajudar.
Yaci sentiu o sangue ferver, ela já sabia onde aquela conversa ia parar.
— A gente perguntou para algumas pessoas, muitas na verdade! Você sai todo dia, ou saia pelo menos… Falaram que você estava procurando seus irmão.
— Para! — Yaci não pediu, ela ordenou, sua voz era clara, firme e autoritária.
Mas Hilda não parou, parecia alheia a ordem da menina. Pior, sua voz carregava pena, empatia, como se olhasse para um espelho e falasse consigo mesma.
Mas Yaci sabia que não eram iguais. Que não estavam na mesma situação, no final, ela iria encontrar seus irmãos!
Porém sempre houve a dúvida, e junto dela, o eco das palavras que sua sombra lhe dizia quando ela acordava “Eles não vão voltar”.
A dúvida era insidiosa, corroía lentamente as esperanças, ela não se permitia ter dúvidas, pois significava que estava abandonando seus irmãos. Era jogar fora todo o esforço de um ano para achar as pessoas com que ela mais se importava.
Mas quando inevitavelmente a dúvida se instalava pelas rachaduras da sua determinação, aqueles pensamentos surgiam. Pequenos, baixos, no fundo da sua cabeça, entretanto ainda lá, nunca indo embora, apenas se acumulando, se amalgamando na pilha de inseguranças e incertezas da menina.
“Eu sei que eles vão voltar?”
“Eles estão vivos?”
E quando a realidade vinha bater em sua porta, a lembrava de um fato inoportuno, que Yaci daria tudo para desmentir, mas não importa o quanto se esforçasse, ainda era um fato.
— Yaci “Estamos nas favelas do Império da Verdade” — Hilda falou e Yaci pensou, com as mesmas palavras, sem tirar nem pôr. — É impossível que crianças sobrevivam tanto tempo sozinhas nesse lugar! Você ainda não encontrou nada, não é? Você não vai achar eles, sabe disso, só está se enganando, como eu fiz! Nós não sabíamos quantos eram, então separamos 10 moedas para você, vamos com a gente até o oceano, jogue suas mágoas no mar, siga em frente.
Yaci neste ponto ouvia apenas ruído branco. O misto de ódio e tristeza. A pena e empatia de Hilda eram como veneno para ela. Ela não queria sua pena, ela não queria sua ajuda, não queria se despedir. Ela só queria seus irmãos de volta.
Mas Yaci gostava de desafiar as chances, o impossível, uma palavra que as pessoas colocavam tanto peso sobre. Mas para Yaci era apenas isso, uma palavra, um conceito, que não cabia no seu vocabulário. Afinal:
— Eu sobrevivi não é?
Era esse, seu fio inquebrável de esperança. Se ela, a mais nova, sobreviveu, logo, os mais velhos deveriam prosperar. Sua existência validava sua determinação, sua determinação validava sua busca, sua busca perigosa desafiava sua existência e o ciclo continuava.
E que resposta essas pessoas tinham para contrapor tal argumento? Nenhuma. O impossível estava na sua frente agora, uma criança como ela sobreviveu sozinha naquele lugar inóspito.
Mas no final, Hilda tinha uma resposta.
— Eu também sobrevivi não é? Nesses três dias, depois de ver tanta gente nas portas da morte, eu entendi Yaci. Existem pessoas que nasceram para sobreviver, para lutar, para serem irritantes, sobreviver por puro despeito ao mundo e ao destino. Que só morrem depois de entregarem a última gota de esforço. Alguém já te disse isso, não é?
Yaci não respondeu. Não conseguia, a única coisa que lhe vinha à mente eram os olhos gelados daquele homem mascarado.
“Gente como a gente não pode descansar.”
— Nessas ruas eu vi e ajudei pessoas tão talentosas, geniais, únicas! Mas sabe o que todas elas tinham em comum? Depois de um certo tempo, todas se cansaram e desistiram. Viver cansa Yaci, viver dói!Viver é dor… Porque na morte não há nada, não tem alegria, mas também não tem tristeza. Nem todos têm a garra de sobreviver, com a morte sendo tão misericordiosa, ela acaba com todo sofrimento, entende?
Ela entendia, mas preferia que não fizesse.
— Minha resposta continua a mesma! — Se virou e partiu, sem dizer adeus.
Mas Hilda não desistia fácil. De certa forma, elas realmente eram iguais.
— Vamos te esperar por mais três dias, se não vier nós vamos embora… então adeus, caso você decida não vir.
Yaci não olhou para trás.
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