Em uma rua sem saída, andou até o final, e entrou em um estabelecimento.

    Lá dentro, viu a familiar padaria, paredes de azulejos brancos, diversas prateleiras, com inúmeras comidas deliciosas. 3 mesinhas de madeira, maltratadas pelo tempo, com duas cadeiras cada, igualmente velhas. Yaci tocou um sininho na bancada e se sentou, um tempo depois, uma senhora se aproximou.

    Uma senhora, seus cabelos loiros estavam ficando cada dia mais grisalhos, mas as rugas em seu rosto não eram suficientes para esconder a alegria do seu sorriso, ou a sabedoria dos seus olhos. Vestia um avental branco remendado, por cima do mesmo vestido azul com estampas de flores que sempre usava.

    — O mesmo das últimas vezes, querida?

    — Sim Vovó Heloísa!

    — Um segundo, vou lá buscar, já deixei separado para você!

    Sentada na mesinha de madeira, começou a esperar seu pedido, algumas frutas, que agora sabia o nome, pães, alguns salgados e garrafas d’água. Tudo isso deu sessenta e cinco centavos de lunis.

    Da porta de madeira atrás do balcão, carregava com ela um grande saco com as comidas que Yaci havia pedido. Ela havia descoberto que era muito mais fácil levar um saco grande jogado por cima do ombro, do que vários pequenos em suas mãos.

    — Aqui está Yaci.

    A menina sorriu para ela, antes de responder:

    — Muito obrigado! Espero que você tenha um ótimo dia.

    Dessa vez, foi a senhora que sorriu, de forma calorosa, e muito reconfortante.

    — Já vai? Pensei que iríamos conversar como da última vez. Você está ocupada? Se precisar de mais alguma coisa, só me falar.

    Pensativa, Yaci olhou nós olhos da senhora e disse:

    — Estou planejando mostrar aqueles desenhos que fiz dos meus irmãos para as pessoas na rua, para saber se eles foram vistos.

    Ela pensou um pouco, preocupada com a menina, que já estava a tanto tempo sozinha.

    — Hunf… tudo bem, não desanime querida, um dia você vai achar eles, eles também podem só voltar. E quando isso acontecer trate de trazer todos aqui! Eu preciso de mais netos! Só tome cuidado Yaci, hoje em dia não é seguro para crianças andarem desacompanhadas e sejamos sinceras, nunca foi.

    — Eu entendo, pode deixar que eu vou me cuidar! Obrigado por tudo vovó Heloísa, até semana que vem.

    Ela saudou a idosa uma última vez, Vovó Heloísa foi a primeira pessoa que a tratou bem independente de qualquer coisa, foi sua primeira amiga, e nessas últimas duas semanas, seu respeito por aquela senhora dona de padaria cresceu sempre que se viam.

    Caminhou, lentamente, levando consigo sua bolsa de comida. Ela queria obter informações, tentar descobrir o que pode ter acontecido com seus irmãos, por isso, não refez o caminho pelo que veio, e adentrou a avenida e ruas principais, passando por toda uma feira e algumas lojas. Entretanto, esse foi o primeiro de uma série de erros que arruinaram seu dia.

    Essas pequenas conversas, paradas que fazia de para interagir diretamente com as pessoas, para perguntar sobre seus irmãos ou mostrar-lhes os desenhos, atrasaram sua ida para casa.

    Essas interações, é claro, quase sempre terminavam em desprezo, xingamentos. Mas às vezes, por pena, algumas pessoas paravam para lhe prestar ajuda.

    Toda vez perguntava, mostrava os desenhos, mas as respostas eram sempre as mesmas, ninguém viu nada, ninguém soube de nada. E mais uma vez, parecia que seus irmãos haviam simplesmente desaparecido no ar.

    Decidiu então, finalizar o dia e ir para casa. Estava tarde, e ela estava cansada, conversar com as pessoas era muito mais exaustivo do que parecia.

    Nas últimas vezes em que saiu, ela chegou em casa algumas horas antes do pôr do sol, entretanto, hoje, ainda faltava um terço do caminho, mas o sol, assim como ela, estava cansado, e se deitava atrás dos prédios e construções irregulares da periferia.

    Se aproximando do final do seu percurso, na interseção entre dois grandes cortiços, uma espécie de rua, bem larga, era formada. 

    Normalmente há essa hora, ela fica vazia, desabitada, e desolada. Quem não estava trabalhando, estava dormindo para ter energia para trabalhar de noite. 

    Porém, do outro lado da rua, havia um homem, grande, careca, com a palidez de um cadáver, seus olhos estavam sem vida, dilatados, tremendo incontrolavelmente, sua boca, esbranquiçada, sem sangue, torta para direita.

    Sua camisa estava rasgada, e seus músculos inchados de forma desproporcional, porém, eles não estavam firmes, pelo contrário, estavam moles, como sacos de gordura, a cada passo que davam, balançavam, como se estivessem cheios de algum líquido. Ao lado dele, um homem morto, com a cabeça esmagada, e as pernas quebradas.

    Ao ver Yaci, o “homem” se descontrolou, e começou a rugir como um animal. Ao contrair seus músculos, os mesmos rasgaram junto de sua pele, liberando uma mistura de pus, sangue e vermes, junto a um cheiro pútrido de morte.

    A criatura que uma vez foi um homem se batia, se arranhava e dizia palavras sem sentido. Ao passar as unhas pela pele frígida e seca de sua cabeça, abria feridas grotescas pelo seu rosto.

    Ao ver essa cena, Yaci travou, queria vomitar, gritar e chorar, tudo ao mesmo tempo. Seu coração acelerou, batia com a força de um tambor como se quisesse pular para fora do peito.

    Ela sentiu sua consciência vacilar, ao passo que sua visão escurecia e o barulho de seu coração se tornava ensurdecedor. 

    E no momento em que foi gritar por ajuda, um peso familiar caiu sobre seus ombros, junto com um frio que parecia congelar o tempo. Tudo ficou lento, até mesmo seu medo, seu nojo, e seu horror. E em meio a todo caos, o silêncio se instaurou, nada podia ser escutado, exceto por uma voz.

    Uma voz poderosa, que disse apenas uma palavra:

    — Corra!

    O tempo voltou a correr, e junto com ele, Yaci, jogou para longe a grande bolsa de comida e disparou para longe do monstro, que começou a perseguir a menina como um caçador desengonçado, bruto e mortal. 

    Para aquela coisa, não havia necessidade de estratégias, armadilhas, ele só tinha que avançar e matar. Se algo impedisse seu caminho, ele só teria que destruir e continuar sua perseguição sem fim.

    Yaci correu, se esgueirou por buracos nas paredes, pulou muros, simplesmente para vê-los explodirem em destroços momentos depois.

    Cada segundo que passava, cada passo que dava, a criatura se aproximava.

    Ela não tinha muito tempo. Alguma coisa tinha que ser feita e rápido.

    Ao virar uma curva, ela pulou por cima de mais um muro e ganhou uma pequena distância… mas foi inútil. Depois de curvas mirabolantes, e caminhos sem sentido tentando despistar aquela coisa, Yaci se encontrou de frente para uma gigantesca parede de um edifício abandonado, cercado de muros igualmente enormes. Ela havia encontrado um beco sem saída e agora tinha que tomar uma decisão, pois  enquanto corria em direção aquela parede a besta se aproximava.

    O monstro atravessou edifícios e destruiu qualquer coisa que impedia seu caminho, a grande maioria ou estavam abandonados ou vazios, mas às vezes, juntos com os sons de demolição, um grito de terror de gelar a alma era escutado.

    Demolindo a parede de uma casa e parando logo atrás da menina.

    Vendo que sua presa não tinha mais escapatória, um sorriso grotesco surgiu em seu rosto, mesmo com o lado direito de sua boca paralisado.

    Nessa linha reta, nada os separava, então, em um piscar de olhos, avançou, com ódio brilhando em seus olhos, ele levantou os braços e socou! Seus músculos estouraram em uma explosão cadavérica e nojenta, e o líquido pútrido que expeliu derreteu e contaminou tudo que tocou.

    Entretanto, Yaci não foi acertada. Em um último esforço, usando toda força que lhe restava, se jogou para frente em um pulo.

    Só parou de rolar quando bateu com força na parede.

    Respirando ofegante, todo seu corpo doía, à beira do colapso por exaustão.

    A criatura, por outro lado, gritava e rugia de dor, enquanto tinha o toco do braço reconstruído de uma forma nefasta e repugnante pelos vermes que viviam em sua carne.

    O chão envolta chiava e derretia, como se cada objeto banhado pelo sangue vil da aberração gritasse um pedido de socorro.

    Vendo o estado da besta, uma ideia surgiu em sua mente, uma idéia perigosa.

    Ela tinha que aproveitar aquele momento em que o ser abominável estava se recuperando. Era provável que ela não teria outra chance.

    — Não! 

    A sombra respondeu aos seus pensamentos, mas Yaci a ignorou, ela sabia que não havia outra chance. 

    — Eu disse não!

    Porém isso de nada adiantou, Yaci já tinha começado a correr, não havia mais volta. Seu “plano” já estava em ação.

    Seu coração bateu forte, ela sentiu algo mais fluindo em suas veias do que só sangue, então, seu coração pulsou mais uma vez, como uma explosão, espalhando uma sensação calorosa que se aprofundava por todo seu ser.

    Sua velocidade aumentou de forma vertiginosa e em um momento ela já estava a apenas um passo da criatura, que observava toda a estranha situação da presa que perseguia correr em sua direção. A imagem de Yaci refletia nos olhos cheios de loucura da aberração. 

    Finalmente passando pela abominação, uma sensação de vitória começou a se apoderar da sua mente. Cada passo que dava a deixa mais longe do monstro e por consequência, mais calma.

    Ela estava confiante! Ela não estava a salvo, mas logo teria mais chances, mais opções para fugir e se esconder. Entretanto, logo essa confiança se tornou arrogância.

    Torcido em um ângulo não natural, a cabeça da criatura acompanha cada movimento de Yaci. E então, um estalo foi escutado.

    Os ouvidos de Yaci foram invadidos por um som de trituração, como se ossos fossem esmigalhados. Virando sua cabeça em direção ao barulho, tudo que ela pode ver foi aquela coisa vindo em sua direção como um míssel, com o tronco torcido para que o braço que restava a alcançasse. 

    Em um piscar de olhos, o punho da criatura estava a poucos momentos de atingir o rosto de Yaci, que em um susto, colocou os finos braços a frente do golpe, com a esperança de salvar sua vida.

    Sua arrogância e descuido, trouxeram sua ruína.

    O soco a atingiu, mas para ela, parecia que havia colidido com um trem. Seu corpo foi lançado com violência contra a parede tijolos, e após um estalo ensurdecedor, tudo ficou preto.

    Voltou a si um instante, ou uma eternidade depois, Yaci não sabia. 

    Naquele momento, com sua visão turva e sem cor, seus ouvidos zunindo. Uma sensação quente começou a se espalhar por suas costas, e logo, suas roupas foram manchadas de vermelho.

    A sensação de formigamento que parecia afastar a sua agonia aos poucos era substituído por uma dor excruciante.

    Diversos ossos do seu corpo estavam quebrados. Algumas costelas, ela poderia dizer, pela dor que sentia em respirar. Ela não conseguia mover uma de suas pernas, e é claro, seu braço…

    Todos os ossos de seu braço direito estavam quebrados, além de qualquer recuperação. Estava roxo, e mole como uma massa de carne morta, sem força e sem vida.

    A dor era incapacitante. Nada tinha sentido, tudo que sua mente conseguia pensar era dor, como todo seu mundo, e tudo que conhecia fosse apenas dor. 

    Neste momento, ela aceitou seu destino, ela ia morrer… sua mente pareceu clarear e se acalmar, ficar cada vez mais afiada conforme sua morte se aproximava.

    Ela olhou para cima, para contemplar uma última vez aquela criatura, que nesse momento, devia estar a momentos de acabar com seu sofrimento. Mas quando abriu os olhos para vislumbrar seu fim, tudo que ela viu foram 4 figuras com máscaras brancas e sobretudos escuros, com desenhos e sinais sinistros bordados em vermelho em suas costas. A criatura, decapitada, jazia sem vida no chão.

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