Capítulo 10: Loucura
Não importa por quanto tempo andasse, a destruição seguia sua vista.
Em seu caminho pelas favelas, em direção a padaria de dona Heloísa, Yaci se encontrou com várias pessoas, entretanto, a maioria não estava mais viva, seu estômago embrulhava cada vez mais a cada corpo que encontrava, às vezes, parava, desejava que agora estivessem em paz e quando possível, fechava os olhos deles com gentileza.
Entretanto, para Yaci, a visão do sofrimento dos vivos foi muito mais perturbadora. Jogados ao relento, feridos, chorando e lamentando suas perdas. Ou em choque, estáticas com as mãos na cabeça, balbuciando palavras para o vento.
Alguns poucos andavam pelas ruas com expressões tão abatidas e desesperançosas, não faziam nenhum som, apenas andavam sem rumo. Todos pareciam entender que eles já não tinham mais lágrimas para chorar, nem voz para gritar. Estavam vazios.
Entretanto, no meio de tanto sofrimento, uma mulher chamou a sua atenção, ela andou em meio às pessoas oferecendo sua ajuda, na medida do possível ela parecia normal.
Yaci se aproximou da mulher e perguntou, com a voz embargada.
— Oi… moça, tá tudo bem com você? Você pode me ajudar também?
Ao se virar, a mulher sorriu, mas aquele sorriso nunca alcançou os olhos, que estavam vermelhos. Seu rosto estava sujo de ranho e sangue seco, seu cabelo castanho escuro estava desgrenhado e em seus lábios secos, machucados. Suas roupas sujas de sangue que não lhe pertencia, ficando cada vez mais manchadas a cada enfermo que ajudava.
Quando seu olhar caiu em Yaci, toda sua feição escureceu. Seu sorriso continuava firme, mas agora, lágrimas escorriam dos seus olhos e suas mãos apertavam com força a barra da camisa que usava. Parecia que ela estava de frente para um fantasma.
— Oi, pequenina!, você parece saudável e forte! Eles com certeza te guardaram muito bem, para que você esteja tão bem de saúde. Meus filhos adoravam quando ajudamos os outros, mas acho que não tenho muito que te ajudar.
Falou com rouquidão, sua voz indo e vindo. As vezes mordia o lábio inferior, abrindo mais uma ferida nele.
Yaci sentiu um arrepio na espinha ao ver e ouvir aquela mulher. Havia uma pitada de… de algo, em sua voz, Yaci não conseguia discernir, era sucinto, passageiro, pingando no final de suas palavras.
— Obrigada… mas você pode me ajudar sim! É só me responder uma pergunta. O que aconteceu, como tudo ficou tão destruído?
Então, toda tremedeira parou, e enfim uma luz brilhou no fundo dos olhos daquela mulher.
— Oh querida, o que mais poderia ser? Eles nos abandonaram depois que deixamos com que se afogassem. Vamos todos morrer, nos redimir por tudo que fizemos. As vezes eu consigo escutar eles nos chamando. Às vezes eu sinto eles rastejando.
A mulher antes gentil, agora parecia uma fanática.
Então Yaci entendeu o que era aquilo que cobria aquela mulher. Era loucura. A insanidade que acendeu a luz em seus olhos mortos é a mesma que antes escorria pelas suas palavras, e agora finalmente se tornou uma inundação.
— Olhe a nossa volta menina! Os vermes daqueles cadáveres já estão contaminando nosso mundo, nossas pessoas! Se tivermos sorte, eu, você… todos nós vamos morrer em breve! E finalmente vamos poder ficar todos juntos com quem amamos naquela cidade dos meus sonhos!
A mulher agora chorava, dos seus olhos vermelhos manchados de loucura e tristeza escorriam rios de lágrimas.
— Me levem também! Eu não quero ficar sozinha, eu quero ir com eles!
Yaci não teve outra reação a não ser se afastar devagar, com passos leves, tentando não perturbar aquela pobre coitada.
Parou a alguma distância, dando uma última olhada naquela mulher, antes de voltar a caminhar em direção a padaria.
— Perdoe minha neta, criança…
Disse um velho de pelo menos setenta anos, sentado no chão, observando a decadência da neta.
— O que houve com ela?
— O mesmo que com todos nós. Começou devagar, e agora parece ter se acalmado, mas recentemente tudo que morreu ou perdeu a vontade de viver, voltou diferente, animais, plantas… pessoas. Não como cadáveres ou mortos vivos, mas como… outras coisas, outras pessoas. No final, eram eles ou a gente. Irmão matando irmão, mãe matando filhos.
Terminou a frase com olhos marejados, apontando para sua neta.
— Meus pêsames. Não tem nada pra eu desculpar. Mesmo no pior momento, eu a encontrei ajudando os outros, ela vai sair dessa, tenho certeza!— disse com o máximo de compaixão que podia.
— Obrigado pequena, essas palavras deixam esse velho muito feliz. Siga seu caminho de cabeça erguida por favor, já tem lamento e tristeza demais por aqui.
E assim ela se foi, deixando aquelas pessoas maltrapilhas para trás. Saindo do distrito da miséria, se deparou com ruas vazias, postes derrubados e edifícios danificados.
Com exceção dos locais que ela passou enquanto fugia da criatura, o dano ao redor do distrito da pobreza era superficial. Ela não duvidava que em poucas semanas tudo voltaria ao normal. Se naquele ponto, o normal ainda existisse, é claro.
A caminhada foi rápida, silenciosa e pacífica. Não havia ninguém para jogar comida nela ou xinga-la, mas talvez, também não houvesse ninguém para conversar.
Junto a esse pensamento, o rosto da velha senhora, dona da padaria surgiu em sua mente. Ela estaria lá para vender comidas e bater um papo como sempre? Ela não sabia, mas continuou seu caminho.
Não demorou muito para chegar na rua sem saída onde ficava a padaria da Vovó Heloísa. O bairro como um todo estava bem conservado, dada a situação em que se encontravam.
Havia poucas coisas que indicavam que algo ruim aconteceu aqui. As casas estavam inteiras, com apenas algumas poucas rachaduras estruturais, que qualquer um podia dizer que surgiram por causa do tempo. As ruas asfaltadas tinham pequenos buracos e lombadas irregulares. E no final da rua, com apenas o vidro de uma vitrine um pouco rachado, estava a padaria favorita de Yaci.
Ou melhor, a única que ela já conheceu. Mas tinha certeza que mesmo quando conhecesse outras, aquela ainda seria sua favorita!
Ao se aproximar, a pressa que sentia desapareceu, queria poder ficar mais tempo, conversar com a gentil senhorinha, mas hoje isso não seria possível.
No balcão, tocou o sininho e esperou, entretanto, não escutou a voz gentil e sábia de dona Heloísa.
Silêncio, nem um único som era escutado. Não havia os passos fazendo madeira do chão ranger. Não havia a saudação reconfortante que a idosa sempre lhe dera. Apenas silêncio.
Tocou o sino de novo, por desencargo de consciência, mas ninguém veio.
Um pouco decepcionada? Sim, porém já esperava esse desfecho, Yaci preferia que sua amiga estivesse longe e segura, do que aqui, em risco junto a ela. Mesmo não havendo ninguém para atendê-la, a menina se sentou na mesma mesa de sempre descansar e pensar onde conseguiria comida, mas dessa vez, havia algo diferente.
Pregado na mesa, um papel pautado, arrancado de um caderno, com o nome de Yaci, e logo abaixo, uma seta apontando para o balcão.
Ela arregalou os olhos ao ver isso, Dona Heloísa havia deixado algo para ela?
Um sorriso bobo, feliz, brotou em seu rosto.
— Obrigada — disse, mesmo que não houvesse ninguém para ouvir.
“Sem cerimônias, como aquela velha gostaria.”
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