Capítulo 11: Gentileza
Yaci foi até a portinha na esquerda e passou pelo balcão. Daquele lado não tinha nada, a vitrine de vidro embaixo, onde ficavam vários doces e salgados, agora estava vazia.
Era diferente ver as coisas por trás do balcão, até hoje, Yaci nunca havia cruzado para o outro lado. Procurou um pouco, por via das dúvidas, mas estava certa, não havia nada, nesse caso, só restava ir além da porta de madeira.
A menina hesitou um pouco, mas a imagem daquela mulher lhe dando uma bronca por ser tão cabeça dura afastou sua dúvida.
Além da porta era uma cozinha comum, tudo era branco, exceto pelas máquinas grandes, tinham farinha e cheiro de pão, então Yaci supôs que eram “máquinas de pão” e perto das máquinas uma grande mesa de aço encostada na parede do lado oposto da porta. Seus olhos procuraram por toda a cozinha, até pararem em um freezer muito parecido com aquele da fábrica onde morava, apenas mais moderna.
E na frente da freezer, preso por um ímã, um papel de caderno, com um presente e vários corações desenhados.
Ainda sorrindo, ela se aproximou e abriu a freezer, lá dentro, dois grandes sacos de compra reutilizáveis, e em um deles colada com fita estava uma carta, com envelope e tudo. E na extremidade do envelope estava assinado
Sua vovó!
Yaci tirou a fita, e pegou a carta, e viu que na parte de trás do envelope estava escrita.
PS: Querida, não sei quando estiver lendo isso, mas quando ler, faça o favor de desligar a freezer para essa velhota, ok? Porque senão a conta de luz vai vir muito cara! E seu presente é a única coisa dentro mesmo. NÃO DEIXE DINHEIRO NO CAIXA, É UM PRESENTE, PRESENTE ENTENDEU!
Ela deu uma gargalhada sincera lendo aquilo.
“Vovó, você tem noção que eu podia morrer e nunca vir desligar a freezer né? Boba, obrigada pela confiança!”
Ela guardou a carta dentro de sua bolsa, e pegou as grandes sacolas de comida, cheias até a borda. Foi até a tomada, e desligou a freezer, infelizmente não havia ninguém para conversar, então era hora de ir para casa, quando chegasse, leria sua carta.
O sol já tinha passado de seu pico, mas ainda brilhava forte no céu, mesmo assim Yaci caminhou mais rápido, quase correndo, não tinha boas lembranças da vez que voltou para casa muito tarde.
As ruas estavam vazias, então seu ritmo foi ainda mais rápido, não havia ninguém para xingar nem jogar coisas nelas. Uma experiência única realmente! Somente um desastre desconhecido poderia lhe proporcionar isso.
Ela não sabia se as coisas iriam voltar ao normal, ninguém tem o dia de amanhã nas mãos, então Yaci poderia muito bem acordar amanhã com um comunicado de que a situação foi contida, e que tudo voltaria a ser como era.
Mas ela sentia que não. Era provável que ela acordasse para ver ainda mais destruição e mais morte e ela não poderia fazer nada sobre isso.
Era triste, mas inevitável, se nem adultos não conseguiram fazer alguma coisa, não seria uma criança como ela que conseguiria.
Seu fluxo de pensamentos, sobre como seria o futuro, onde estavam seus irmãos, quando poderia ver vovó Heloísa novamente, foi subitamente interrompido por uma coisa nova que estava a sua frente.
Em frente a porta de uma casa, duas caixas de papelão, com a palavra doação escrita nelas com tinta verde.
Curiosa, deixou suas preocupações no canto de sua mente, e partiu para verificá-las.
Eram roupas masculinas e femininas de adultos, itens de higiene pessoal, cobertores e diversos itens que já não tinham mais uso para os antigos donos.
Olhando tudo aquilo uma ideia surgiu na sua mente.
Ela não conseguia fazer as coisas voltarem ao normal, mas pelo menos conseguia ajudar quem precisava!
— Vocês duas vem comigo! — exclamou alto para as caixas.
Depois de alguns passos, Yaci percebeu que teria que carregar aquele peso todo caminho de volta para aquelas pessoas que viu em seu caminho para cá. Mas seguiu em frente com convicção. Até mesmo riu um pouco daquela situação, quando se deu conta da forma engraçada que andava. Agradeceu a sua sorte pelas ruas estarem desertas, porque com certeza a cena dela tentando carregar a caixa junto de suas coisas teria causado muitas risadas.
Ela não conseguia fazer muito, mas com um pouco de esforço, e saindo um pouco de seu caminho original, ela conseguia talvez, trazer um pouco de esperança além de facilitar a vida de pessoas, que já tinham perdido tanto.
“Bondade gera bondade! Mesmo que toda bondade que eu já fiz ainda não tenha voltado pra mim, uma hora deve voltar… provavelmente”.
Foi cansativo, mas recompensador. Ela não estava fazendo aquilo por obrigação ou porque estava desesperada para sobreviver, ela estava fazendo por vontade própria, ela apenas queria. Ao chegar no mesmo lugar onde encontrou a jovem que enlouqueceu, ela arfava um pouco. Colocou as caixas no chão, atraindo a atenção de todos, Yaci limpou o suor da testa e falou:
— Acho que vocês podem precisar de alguma dessas coisas. Podem vir aqui pegar, é de graça! Sem segundas intenções, em momentos como esse temos que nos ajudar, não acham?
Todos olhavam para ela incrédulos, o senhor e sua neta principalmente, a visão daquela jovem colocando duas caixas cheias de roupas, cobertores e muito mais, era a última coisa que esperavam em um lugar tão cheio de desespero e caos.
O velho, acompanhado pela jovem, parou ao lado de Yaci. A mulher, já mais calma, olhou para os olhos verde esmeralda da menina, observando a chama da determinação que queima por trás deles.
— Algumas pessoas não conseguem andar, vamos distribuir para que eles não fiquem sem nada. Não tem muito, mas se cada um pegar só o que precisa, tenho certeza que todo mundo vai terminar feliz — disse com sua voz limpa de maior parte da loucura que demonstrava antes.
Com um sorriso, Yaci assentiu, e deixou que eles dessem continuidade ao trabalho.
— Bom, muito obrigado. Faço questão que peguem algo para vocês também. Aqui, isso pode ser útil ou esse cobertor!
A mulher riu um pouco ao ver a animação da menina, ela nem sabia que ainda conseguia rir uma risada tão inocente como aquela. Ver e falar com aquela garota estranha lavava sua alma. A alegria, o jeito agitado de falar quando ficavam animados. E aquela pitada de bondade que nem mesmo um lugar horrível como aquele conseguia apagar.
— Vamos aceitar sua oferta então.
Pegou um casaco de couro para seu avô e um vestido limpo para ela. Ambos realmente precisavam de roupas novas. Mas, surpreendendo Yaci, ela não parou. Ela continuou a procurar alguma coisa nas caixas, quando não achou o que procurava em uma, começou a procurar na outra. Parecia que ela iria entrar na caixa, procurando cada canto dela, ela só parou quando finalmente levantou a mão, e exclamou:
— Ahá!
Yaci e o velho encaravam a mulher. Se perguntando o que mais ela tinha pego.
— Acho que isso devia ficar com você. Sem você ninguém teria nada. Então é justo que pelo menos isso fique com você!
Nas mãos dela estava um relógio comum, com tiras de couro e armação de aço. Parecia resistente e ainda funcionava.
— Venha, de seu pulso para colocá-lo.
Yaci olhou para todos. A concordância de que a menina também precisava levar algo foi unânime.
— Um relógio vai ser bem útil. Vou aceitar então.
Estendeu a mão, e a mulher gentilmente o colocou em seu pulso. Então se afastou um pouco para olhá-la toda, colocou as mãos na cintura e sorriu.
— Ficou lindo em você Theo! Quando tudo isso acabar vamos arrumar um para o seu irmão também! Ele vai adorar.
O entendimento da situação a chocou. Ela sentia muito mais que pena daquela mulher, sentia empatia. Elas tinham mais em comum do que parecia. Uma havia perdido os filhos, a outra os irmãos, mas ambas perderam tudo que consideravam família. Se prestou a fazer um último ato de bondade, e simplesmente seguiu o fluxo
— Sim, ele vai adorar… mas tenho certeza que ele ficaria ainda mais feliz se a gente ajudasse todas essas pessoas aqui não acha?
O velhinho lhe deu um sorriso tímido e começou a se aproximar de sua neta. Ela falava animada de como os filhos iriam ficar felizes por estarem ajudando tantas pessoas e o velho gentilmente a afastava de Yaci, indo com ela distribuir tudo que estava nas caixas para as pessoas das redondezas.
— Vou indo então, acho que minha parte eu já fiz. Eu quero voltar para casa antes que escureça, sabe?
Sem dar tempo para eles responderem, ela partiu com suas coisas.
— Obrigado! — gritou o velho uma última despedida.
O resto do caminho para casa foi tranquilo, Yaci tinha em seu rosto um sorriso agridoce o trajeto todo. Entrou em casa feliz e foi logo guardar suas comidas e pensou em terminar o dia desenhando, estava de muito bom humor então com certeza algo lindo seria criado, mas ainda tinha uma coisa muito importante para fazer.
— Minha carta! Minha primeira carta, será que um dia eu vou receber mais? Eu precisaria de uma caixa de correio pra isso…
— Acho que vamos receber muitas cartas com o tempo — disse a sombra.
— Bom, foi legal receber uma carta, vamos ler?
Como Yaci esperava, não houve resposta. Ainda não sabia se estava mesmo ouvindo vozes e vendo sua sombra ganhar vida, ou se estava cada dia mais louca. Mas agora isso não importava, ela tinha uma carta para ler!
Yaci, querida, as coisas realmente ficaram caóticas nesses últimos dias. Meu filho atualmente mora na região sul do Império para estudar. A tempos ele me falava de boatos sobre criaturas e monstros surgindo em todos os lugares no mundo mas não tinha ideia que eles pudessem ser reais.
Conheço você, e sei que você não é normal(digo no melhor dos sentidos querida), e que você vai ficar bem, por isso deixei esse presente pra você, também sabia que iria desligar o freezer. Estou escrevendo isso pra você com muita pressa, já estou de malas feitas, e meu filho já está quase chegando para me buscar.
Já estava planejando me mudar, meu filho estava a muito tempo insistindo para que isso acontecesse, e esses acontecimentos foram apenas a gota d’água. Entretanto, nesse meio tempo, comecei a planejar trazê-la comigo, mas não consegui preparar tudo a tempo, então, me perdoe por te deixar sozinha querida.
Trouxe comigo os documentos que estava preparando para conseguir ter sua guarda. Entretanto, ainda precisaria de seus documentos, e dada sua realidade, sei que não vai tê-los, acredite em mim, a burocracia é uma merda.
Por enquanto vou ficar vivendo na cidade de Verdemar, duas semanas talvez, vai depender de quando tudo voltar ao normal. Peço que depois de pegar o presente evite ao máximo sair, fique segura, e logo logo vou voltar.
Beijos Yaci, da sua vovó!
Yaci achou que não iria mais chorar depois de perder seus irmãos, já que nada podia a deixar mais triste do que perder sua família. Ela só não sabia que podia chorar de felicidade, por ter encontrado um novo membro para essa sua grande e esquisita família.
Seu coração estava alegre, estava leve. As melhores memórias, as mais felizes e divertidas, as mais amorosas e com mais companheirismo que tinha com seus irmãos e irmãs, pairavam em sua mente, junto com os momentos doces e aconchegantes que passou com sua avó.
Sentindo-se feliz como não ficava a muito tempo, aproveitou o restinho do seu dia.
Algumas horas depois, após sua janta, um trovão ecoou por toda a fábrica.
— Finalmente chuva! A água dos barris lá em cima estava quase acabando. Espero que dê pra encher bastante.
Logo o som e o cheiro da chuva estavam por toda parte, dando um ar aconchegante que combinava bem com sua tenda.
Parecia que aquele dia não podia ficar melhor. Yaci achava esse clima perfeito, não tinha nada mais aconchegante para ela. Qualquer coisa que não fosse sair de casa ficava melhor com uma boa chuva como essa.
Tudo estava bem, estava na hora de dar um fim ao seu dia. Amanhã terá outro, e ela tinha que estar descansada para ele. Tirou seu relógio, deixando em cima do seu baú de roupas, apagou a luz, e foi se deitar. No chão, perto de sua cama, estavam suas mais novas pinturas.
Pintado na primeira folha, uma mulher, usando um vestido branco imaculado, segurando as mãos de seus dois filhos. Todos de costas andando em um campo de flores na direção de horizonte amarelo.
Na segunda, Vovó Heloísa estava sentada na mesinha de sua padaria, ostentando um sorriso que acalmaria o coração da pessoa mais perdida. Seu vestido azul florido fazendo contraste com o branco do fundo.
Yaci já dormia, a chuva caia, os sons das gotas batendo no metal ressoavam como uma canção de ninar. Apesar de tudo, hoje foi um bom dia. Apesar de tudo, Yaci ainda não tinha se perdido, ela ainda era gentil.
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