Capítulo 03 - A ampulheta e a Mentirosa
ALVO PRIMEIRO
Após despertar, me levantei e fui ao banheiro do batalhão me lavar. Ficava alguns lances de escada abaixo.
Enquanto voltava aos meus aposentos, os sinos tocaram, informando o início do terceiro Raio do dia. Ao entrar no quarto senti flutuações de mana no ambiente, e sabia que tinha alguém perto. Esta habilidade é pouco comum entre os Magos, e é muito parecido com sentir uma brisa na pele, só que mais quente e viva. Assim eu sabia que não estava sozinho.
— Se revele de uma vez, ou eu transformarei este prédio todo em escombros até te achar! — Ameacei o mais alto e claro possível, enquanto uma aura brilhante começou a me rodear.
— Não seja tão passional, Alvo, apenas vim reportar a você! — Uma voz feminina familiar, nenhum pouco preocupada, respondeu, enquanto entrava pela janela ao lado da minha cama.
— Listro, não faça mais esse tipo de aparição, eu quase explodi meu quarto!
— Desculpe General, eu não posso ser vista por aqui, você sabe.
O que eu tinha de força, Listro tinha de bela. Com um metro e setenta de altura, magra, cabelos longos e escuros. Sua pele era clara, como areia da praia. Este tom de pele e cabelos são comuns entre os humanos deste lado do planeta. Meu próprio cabelo é escuro e bem curto, para não atrapalhar em batalhas. Listro usava roupas um pouco largas para esconder seu corpo esbelto e bem definido. Fazia isso apenas para não chamar muita atenção, pois, mesmo entre a nobreza, mulheres como ela são raras.
— Enfim, descobriu algo? — Perguntei impaciente.
Listro sentou em minha cama, cruzou as pernas, esticou as costas, respirou fundo, e disse:
— Nada que você já não saiba. O ataque, aparentemente, foi um erro de cálculo dos elfos. Apenas isso. Eles queriam garantir mais terras para suas florestas e esbarraram com o grande Alvo, o Brilhoso!
— Por mais que odeie este título, o correto é “O Brilhante”… Para uma agente da inteligência você não tem se saído muito bem, Listro. Você foi até o território élfico pelo menos?
— Você me desonra ao insinuar que não faço bem meu trabalho. Nenhuma pessoa na nação humana é mais furtiva e eficiente que eu!
— E mesmo assim, um mero General conseguiu sentir a mana da “Grande Listro” do lado de fora de seu quarto…
— Eu fico mais relaxada perto de você, Alvinho! — Falou Listro, entre risadinhas.
— Seu charme não funciona comigo, Listro, preciso de seu lado sério por enquanto. Sabe que não sou de frivolidades!
— Ok, “Alvo” — Listro levantou os indicadores e os dedos médios para cima e, quando falou meu nome, abaixou e levantou esses dedos duas vezes, como se meu nome fosse um apelido sem graça. — Para minha próxima missão terei que ir bem profundamente na floresta dos Elfos. Voltarei com informações concretas em vinte dias. Caso eu não retorne até o vigésimo primeiro dia após minha partida, me dê por morta.
Com esta frase seu ar gracioso e brincalhão desapareceu por um momento.
— Listro, sei de suas capacidades, mas não acho que se embrenhar no meio daquelas árvores seja uma atitude inteligente.
— Não foi decisão minha, o Q.G. da inteligência precisa de informações concretas e não achismos.
— Pois bem, tome cuidado. Posso não te tratar tão bem, devido ao meu jeito, mas quero que saiba que você é a pessoa que mais confio e respeito!
Ela enrubesceu.
— Não se preocupe, pequeno Alvo, eu sei. Te conheço desde criança, e entendo que o modo como se preocupa é diferente da maioria das pessoas.
Fiz uma breve pausa, apenas para colocar meus pensamentos no lugar, e disse:
— Me diga, Listro, por quê não se alistou comigo nas Força de Proteção? Se tivesse entrado na mesma época que eu, você seria, pelo menos, uma comandante de regimento hoje. Poderia ter dado uma vida melhor para sua mãe.
— Eu te devolvo outra pergunta, Alvo: por quê falar disso agora? — Listro parecia ter algo entalado na garganta.
— Desculpe, foi insensível da minha parte. É que você vai se aventurar em território inimigo, sozinha… Por mais forte que seja, é um pensamento inconcebível para mim. Infelizmente algo pode acontecer, então gostaria de poder finalizar alguns assuntos em aberto, caso não retorne… — Não gostei de ter dito isso. — Você é o mais próximo que eu tenho de uma família.
— Tudo bem, General, eu digo o motivo: Você! Meu querido amigo de infância… Por isso não me alistei na mesma instituição!
— Eu não entendo…
— Quando se alistou você tinha o que, quinze verões? Eu fiquei muito irritada. Eu só tinha quatorze primaveras e estava perdendo a pessoa que eu mais conversava e convivia. Você tinha acabado de perder sua mãe e queria se distanciar de tudo… Então eu acatei seu desejo não dito e me distanciei também. Por isso decidi me alistar em outro “órgão” do governo. Agradeço por ter ajudado minha família, mas dinheiro não compra afeto ou tempo com quem se gosta.
— Li, me desculpe, meu modo de demonstrar carinho não é muito convencional — eu não a chamava assim há mais de dez verões, meu peito apertava com cada palavra que ela dizia.
— Tudo bem, Alvo, eu entendo. Eu não posso cobrar nada de você, ainda mais depois de tudo o que fez por minha mãe.
Dizendo isso ela levantou da cama, atravessou o quarto até onde eu estava, e me deu um abraço longo, quente e forte. Eu retribuí abraçando-a também.
Após me soltar, com os olhos cheios d’água, ela se virou em direção a janela e secou-os, ainda de costas, para tentar esconder isso de mim.
— Li, por favor, tenha cuidado. Mesmo o melhor entre os combatentes humanos têm problemas dentro daquela floresta maldita.
— Não se preocupe, Alvinho, eu volto inteira para você — enquanto terminava de falar, ela piscou para mim e pulou pela janela, três andares acima do chão, sumindo de minha vista.
— Você ainda vai me matar do coração… — Falei baixo, apenas para eu ouvir.
Alguns ciclos depois já era o oitavo raio do dia, ao décimo eu precisava estar no palácio junto dos outros dois eleitos pelo povo. Coloquei as vestes de oficial e me dirigi até o meu destino.
Durante o trajeto muitas pessoas me reconheciam e me cumprimentavam à distância, apenas com acenos. Um garoto me parou e perguntou se ele poderia ser como eu após crescer, respondi que se ele treinasse o bastante conseguiria. Sejamos realistas, nem em sonhos ele iria tão longe.
Quando cheguei à frente do palácio, pouco antes do nono raio do dia, os guardas me reconheceram imediatamente, e abriram os portões. Subi uma escadaria com mais de cem degraus, feita de pedra branca, muito bonita. Ao topo da escadaria encontrei algumas pessoas que trabalham no palácio, limpando ou decorando a entrada da grande construção. As portas duplas estavam fechadas.
Pigarreei e disse:
— Bom dia, senhores!
— Grande general, não esperávamos o senhor tão cedo! Por favor, me siga, o rei Grenford pediu para que todos entrem no décimo raio. Até lá, por favor, fique nesta sala — disse o funcionário solícito, que me encaminhou para uma antessala enorme, à esquerda da entrada. Dentro dela estava cheio de aperitivos e decorações.
Sentei-me para aguardar, e comecei a sentir o nervosismo tomando conta de mim. Não havia percebido, até aquele momento, que me aproximava de estar na presença do rei, não para falar sobre batalhas vencidas, mas sim para participar de um evento único, que poderia me tornar o monarca sucessor.
O tempo passou devagar enquanto eu estava nervoso, me privando de sentir fome, mesmo que eu não tenha comido nada desde que acordei. Percebi que meu nervosismo estava em um nível maior que o aceitável, justamente por ter tantos aperitivos gostosos diante de mim e eu não querendo comer nada. A sensação que eu tinha era que se comesse, vomitaria no mesmo instante.
— Então, dormiu bem, Alvo? — Falou Rufo ao entrar na sala de espera.
— Espantosamente bem. Mas o nervosismo começou agora… Como é possível eu não sentir uma emoção tão forte ao pular no meio de mil e quinhentos magos inimigos, mas estar nervoso demfalar com o rei… Ainda mais eu, que já o conheço há tanto tempo?
— Bem, você nasceu para a batalha. Infelizmente, para o grande general Alvo, esta reunião com o rei pode ser mais difícil que uma guerra contra milhares de Lizards famintos… Falando nos Lizards, você já teve o desprazer de conhecer algum?
— Senhores, o rei solicita a presença de ambos. — falou um criado, ao abrir a porta.
— Depois continuamos essa conversa. Vamos, Rufo.
— Rapaz, onde está Henco? — Rufo perguntou ao criado que nos chamou.
— Acaba de chegar, senhor. Já se dirigiu ao salão principal.
— Excelente!
A porta dupla, antes fechada, agora está escancarada para um corredor longo e todo decorado com flores de várias cores. Eu e Rufo entramos guiados pelo criado. Após algumas curvas chegamos ao salão principal. Lá dentro estavam cerca de dez pessoas, que eu não conhecia, e o velho rei Grenford, sentado em seu trono, cerca de vinte metros de distância da entrada.
As pessoas no recinto estavam dispostas perto das paredes a pouco mais de dez metros do trono, provavelmente eram serviçais. Apenas uma mulher não estava com os servos, ela usava um vestido com tecido verde-escuro, quase brilhante. Seus cabelos cor de fogo, presos em um penteado complicado acima da cabeça. Ela estava de costas para nós, de forma que não víamos seu rosto, mas tínhamos uma clara visão de sua enorme bund-
— Alvo, a esperança da humanidade, bem-vindo de volta ao meu castelo! Ah, e está acompanhado de Rufo, que bom revê-lo! — Falou o rei Grenford, quando entramos no salão, cortando meu pensamento travesso.
— É uma honra, Senhor! — Respondi enquanto Rufo apenas acenou com a mão direita.
Eu e Rufo nos ajoelhamos quando ficamos ao lado da mulher de vestido verde.
— Podem se levantar! — O rei ordenou.
— Vossa majestade, se não for muita intromissão de minha parte, poderia dizer se o senhor Henco já chegou? Um criado nos informou que ele já veio ao salão — falei com dúvida na voz.
— “Senhora” para você, general Alvo! — Falou a linda mulher ao meu lado, seu rosto era severo, de nariz empinado, mas muito bonito.
— Mil perdões, acredito que esteja enganada. Falo sobre Henco, o senhor feudal que ficou em segundo, na eleição do povo.
— Prazer em te conhecer também, Alvo. Me chamo Henco, da família Pleno, ao seu dispor! — Disse a bela moça, em um tom mais severo que o anterior, sem olhar em minha direção.
Fiquei sem fala. Um silêncio assustador tomou conta do recinto.
Então o rei gargalhou.
— HAHAHAHAHAHAHA. Que virada de acontecimentos mais divertida. Sim, general, Henco é esta formosa moça. Ela é a única filha de Hentis Pleno Quarto, meu falecido amigo. A província que a família dela controla não é tão retrógrada como a nossa. Lá as mulheres podem governar. Não vejo isso com maus olhos.
— Certamente, vossa majestade! Perdoe-me, Senhorita Henc-
— Já disse, para você é “Senhora Henco”! — Ela me advertiu, sem dar tempo para eu terminar a frase.
— Vamos acalmar os ânimos, os enganos já foram corrigidos. Muito prazer em vê-la novamente Senhora Henco, como tem passado? — Falou Rufo com o máximo de cordialidade que podia expressar por sua voz grave.
— Ah, olá velhote! Tenho passado bem, obrigado por perguntar. Ainda viciado em apostas? — Perguntou Henco a Rufo, com indiferença na voz.
— Hahahaha… Não seja tão dura comigo, foi apenas uma fase. Eu aprendi com meus erros. Paguei cada moeda de prata que eu devia! — Ele respondeu enquanto coçava a parte de trás de sua cabeça.
Fiquei em silêncio desde o momento que Henco cortou minha fala. Eu estava completamente irado por dentro, mas contive o ódio. Uma mulher governando eu não me importava, mas agir como superior, na frente do rei, me fez esquentar de raiva. Tive que usar toda minha concentração para não ativar inconscientemente minha aura. Foi exatamente como Rufo falou, mal começou e eu já estava sentindo que esta reunião seria mais difícil que enfrentar um exército.
— Se todos já se cumprimentaram, vamos começar as provas, tudo bem?
— Sim senhor! — Falamos eu, Henco e Rufo ao ouvir as palavras do rei.
— Clen, traga o artefato. — Grenford apontou para um criado magro e baixo perto da porta, ao fundo do salão.
O rapaz entrou na sala e retornou empurrando uma mesa com rodas, que carregava uma linda ampulheta de vidro transparente, toda ornamentada em ouro. Não era muito maior que a palma da minha mão.
— Acredito que todos os presentes saibam do que se trata, correto? — Assentimos e o rei continuou. — Ótimo, mas, como tradição, falarei sobre este artefato… Nada mais é que um instrumento de detecção de mentiras. Mintam em minha presença e algo ruim pode acontecer com vocês. Não se preocupem, estas “provas” não tomarão muito de seu tempo, apenas preciso decidir quem, entre vocês, é o mais apto a se tornar rei após minha partida.
Nós três permanecemos em silêncio.
— Então eu, Grenford Oitavo, farei algumas perguntas para cada um de vocês. Não será em segredo, todos ouvirão. Estão de acordo?
— Sim senhor! — Novamente, respondemos juntos.
E com nossa confirmação a ampulheta brilhou, como se uma luz amarelada divina caísse do teto abobadado em direção ao artefato.
— Com isso o contrato foi selado! — O rei falou em tom solene. — Agora estão sob efeito da ampulheta. Não podem, em hipótese alguma, mentir para mim até que eu informe que o efeito acabou.
Não dizemos nada. Estávamos com muito medo de sermos interpretados erroneamente pela ampulheta, e algo ruim acontecer conosco. Aguardamos as próximas instruções de Grenford.
— Começaremos com o mais velho. Rufo, meu amigo, já estivemos em uma posição parecida, quando se tornou prefeito dessa cidade, não é mesmo? Me diga, como foi a sua vida até o momento?
— Nasci em uma família rica, e, confesso, fui muito mimado. Na adolescência aproveitei os prazeres da carne, pois sabia que, quando adulto, não poderia ser tão irresponsável. Estudei e me preparei para a vida de comerciante, mas não gostava de como as coisas aconteciam, tudo era bastante entediante para mim. Já adulto, após conhecer diversas pessoas da época de comerciante, criei laços de grande força na cidade, e, aos poucos, fui construindo minha carreira política. — ele respirou fundo, e fez uma pausa, enquanto olhava para a ampulheta.
Engoli em seco, e Henco prendia a respiração. O medo do artefato só crescia em nós. Rufo continuou:
— Me casei com vinte e quatro verões, com uma jovem senhorita de saúde fraca, cinco primaveras mais nova que eu. Seis verões depois minha querida Rona faleceu devido a uma anemia que, obviamente, não conseguimos curar… Me senti devastado, sem vontade de seguir em frente… — Ele parecia cansado ao falar, como se o discurso fosse equivalente a uma corrida em volta de cidade. — Dois verões após este acontecimento, decidi continuar minha vida, honrando um juramento que fiz a Rona: “me tornaria o prefeito de Porto-Norte, além de ser um bom político para a cidade”. Eu brinco ao dizer que nunca teria tomado um rumo certo na vida se não tivesse conhecido ela. Demorou mais do que eu esperava, e após quase quinze verões tentando, a população me acolheu como seu prefeito. Minha candidatura fala por mim. Após os cinco verões como prefeito me aposentei da vida política, mas sigo dando conselhos a algumas pessoas de importância, para pagar as contas… Hoje estou diante de vocês como alguém que superou obstáculos, mas sempre teve ajuda de todos ao seu redor. Agradeço a aqueles que fizeram eu chegar até aqui.
Com esse testemunho Rufo respondeu a primeira pergunta do rei.
Todos nos voltamos para a ampulheta, esperando que ela reagisse ao que Rufo nos contou.
Nada aconteceu.
— Nossa, isso foi mais estressante do que imaginei. Obrigado pela paciência pessoal, sou muito tagarela às vezes.
— Muito bem, Rufo, obrigado pela resposta. Próxima é Henco, certo? Você é um pouco mais velha que Alvo, por mais que não aparente… Por favor, me conte: como foi sua vida até aqui? — Perguntou o rei Grenford.
— Sou filha única de meus pais, Hentis e Flo. Venho da província de Ferti-Pastos, ao noroeste daqui. Tive uma infância conturbada, pela pressão em seguir os passos de meu pai, ao mesmo tempo que sou uma mulher. Quando eu tinha vinte primaveras, meu pai faleceu precocemente, devido a um acidente, quando escorregou de uma escadaria escorregadia. Minha mãe, acredito eu, morreu de tristeza, três anos depois… — Ela deu um breve suspiro antes de continuar — Como o próprio general Alvo demonstrou, não fui completamente aceita em meu cargo de Senhor-Feudal, mas, após utilizar o que aprendi, com anos de dedicação e estudos, consegui a aceitação dos habitantes da minha região. Tenho bastante experiência com as massas e acredito que serei um bom Rei…
Em nossa cultura os nomes cargos políticos, ou de responsabilidade, são, por padrão, masculinos. Desta forma, mesmo que um senhor-feudal seja uma mulher, ainda será chamada de “senhor-feudal”. O mesmo vale para o rei.
Henco não me impressionou com seu breve discurso. Na verdade isso tudo era basicamente o que eu havia imaginado sobre ela. Se ela conseguiu a aprovação de sua província, isso só mostra como ela é capacitada. Ainda não sei ao certo o por quê Rufo sente tanta aversão dela, além do fato de ser bastante geniosa. Vou manter minha impressão inicial por ela como “neutra”.
— …Sobre minha vida pessoal, nunca me casei. Não tive tempo para estas coisas supérfluas. De maneira geral, acredito que isso é tudo o que tenho para falar sobre minha vida até aqui.
Novamente todos se viraram para a ampulheta, e, novamente, nada aconteceu.
— Agradecemos suas palavras, senhora Henco. Agora só resta nosso general mais forte. Alvo, por favor, nos diga: Como foi sua vida até aqui?
Hesitei por um momento. Eu sabia qual era a pergunta que seria feita desde ontem a noite, mas não pensei no que falar. Bem, o segredo é ser simples e direto, então comecei:
— Como a Senhora Henco, também sou filho único e perdi meu pais muito jovem. Todos sabem que sou um dos poucos escolhidos pela mana, e isso botou uma carga violentíssima de responsabilidade em minhas costas desde muito cedo. Me alistei com quinze verões nas Forças de Proteção e rapidamente subi de patente. Minha vida desde então foi uma sucessão de treinos, batalhas e mais treinos. Dessa forma, algumas pessoas podem considerar que eu joguei grande parte de minha vida fora, pois não aproveitei como uma pessoa normal faria. Não penso dessa forma. Gosto de ser útil ao meu povo. Me sinto muito pouco preparado para me tornar rei, mas aceitaria a proposta sem dúvida alguma — fiz uma pausa e olhei de esguelha para Henco antes de continuar. — Estou solteiro também. Como não tenho espaços em minha agenda, não sobra tempo para perder com romances, e acredito que estou bem dessa forma. Contarei com a ajuda de todos para ser um bom governante — olhei para Rufo.
E, assim, percebendo que não sabia mais o que dizer, apenas encerrei minha fala.
Novamente a ampulheta não reagiu.
— Obrigado, general! Agora, algum de vocês gostaria de fazer algum comentário ou pergunta?
Novamente, o medo pelo efeito da ampulheta nos calou.
— Bem, então faremos uma pausa para que eu delibere o que foi exposto. Volto logo. Quando não estão em minha presença a ampulheta não funciona, podem relaxar quanto a isso — com um pouco de dificuldade o rei levantou com apoio de uma bengala de seu trono. Ele seguiu em direção a mesma porta que o criado, Clen, havia trazido a ampulheta.
Após a porta fechar atrás dele, nos três ofegamos, como se estivéssemos segurando a respiração desde o momento que a ampulheta entrou. Percebi neste momento que minha testa suava. Nem mesmo treinos que duram vários ciclos me faziam ficar assim.
— Isso nunca é fácil — falou Rufo, ainda ofegante, com as mãos nos joelhos.
— Fale por você. Se não tiver nada a esconder, a ampulheta é inofensiva! — Henco tentou usar um tom casual para falar isso, mas também parecia um pouco abalada.
— A Senhora Henco é divertida, falando tais palavras, mesmo não conseguindo esconder o cansaço na voz. Às vezes não é um problema admitir que-
— Não lembro de ter pedido sua opinião, lacaio do governo — ela me lançou um olhar tão afiado que parecia uma adaga entrando diretamente em meu rosto. Sei da sensação por experiência própria, já que tenho uma cicatriz embaixo do olho direito, devido a uma facada, que levei durante um treinamento.
— Senhora Hen… Não, Henco, Acredito que não precise mais usar este tom comigo. Em nenhum momento lhe desrespeitei. Apenas me enganei, pois os títulos, como bem sabe, são ditos “no masculino”. Apenas peço que me trate com o devido respeito. Lembre que a sua segurança depende de Lacaios, como eu! — Falei duramente para a bela, e irritada, Senhor-feudal.
— Não lhe devo respeito, general. Apenas evite dirigir a palavra a mim sem ser solicitado — com isso, virei em direção ao trono, tentando ignorá-la. Pelo menos assim evitamos “bater boca”.
Rufo tentou cochichar perto de meus ouvidos, mas eu era mais alto, então ele ficou nas pontas dos pés:
— Prefiro que um Lizard retardado seja nosso rei a esta moça. Ela tem alguns parafusos fora do lugar, escute o que digo!
— Parafusos fora do lugar e um ouvido muito bem treinado, Velhote! — Henco falou sem olhar para nós, fitando o trono como eu fazia.
Não voltamos a conversar.
Longos instantes depois, o rei voltou ao salão. A bengala ainda o ajudando em sua caminhada.
— Se estiverem prontos, seguirei com a segunda prova. Podemos começar?
— Sim senhor! — Como de praxe, falamos juntos.
Novamente a ampulheta brilhou, mas dessa vez ela girou, fazendo com que a areia, antes acumulada embaixo, começasse a cair, como se confirmasse ao rei que estava ativa.
— Dessa vez começaremos com o mais novo. Senhor Alvo, o que fará se for o próximo rei?
— Continuarei o bom trabalho do senhor, rei Grenford. Manterei a paz e a segurança. Acredito que seremos mais fortes se expandirmos nossos domínios, para termos mais acesso a plantações. Como sabem, os elfos não são um problema — seis dos lacaios em volta começaram a rir baixinho. — Infelizmente não tenho experiência em governar, por isso precisarei de um bom conselheiro ao meu lado — quando disse isso, olhei rapidamente para Rufo, que se endireitou, demonstrando classe. — Caso escolhido, farei tudo o que estiver ao meu alcance para podar os ramos ruins desta árvore que é império humano — ao dizer isso eu estava olhando diretamente nos olhos de Henco, que ficou visivelmente irritada.
Com a minha pausa, todos entenderam que terminei minha resposta. Olhamos para a ampulheta, que nada fez, além de derrubar mais areia.
— Certo. Agora, Henco, a mesma pergunta: o que fará se for o próximo rei?
— Mudarei tudo, vossa majestade. Não estou criticando o senhor diretamente, mas sim o sistema como um todo. É retrógrado, totalmente ultrapassado. Como mulher consigo ter uma visão que vocês aqui presentes não tem. Discriminação por gênero ou classe, fome entre a plebe, medo na população de retaliações d’Os Cinco, após ações expansionistas… — Ela me olhou por um breve instante. — Antes de tentar aumentar o império, farei com que ele se torne mais estável para quem já temos conosco. Após isso pensarei em expansão. Não é à toa que Ferti-Pastos é a província mais rica dos humanos, já que agimos assim. Peço perdão por minhas palavras duras, rei Grenford, mas acredito que muito possa ser melhorado no futuro, e eu sou “o futuro”!
Com esta poderosa afirmação, Henco terminou sua resposta.
Novamente a ampulheta nada fez além de derrubar areia sobre areia.
— Não se preocupe, Henco, minha querida. Não estamos aqui para julgar suas falas, como um tribunal. Preciso exatamente disso que você fez: nada de omissões!
Grenford fez uma breve pausa com os olhos fechados. Percebi agora que ele ainda estava de pé, ao lado do trono.
— Rufo, vamos continuar: o que fará se for o próximo rei?
— Renunciarei! — Rufo disse sem hesitação, como faz quando sabe o que quer.
— Me desculpe, não entendi… O que quer dizer com isso? — O rei indagou.
— Eu não seria um bom rei, majestade. Não sou uma boa pessoa. Mas se eu fosse escolhido teria algo que eu faria: entregaria a coroa para o Alvo, nosso prodigioso general!
— Você tem certeza disso?
Todos estávamos atônitos com tais alegações, até mesmo eu não imaginaria que ele falaria isso na frente do rei.
— Sim senhor! Como a ampulheta confirmará, estou convicto do que disse!
— Entendo, então esta disputa entre três se tornou uma disputa entre dois, não é mesmo? Não farei uma pausa desta vez, pois acredito estar muito próximo de meu veredito. Rufo, por favor, espere no fundo da sala. Estarei considerando apenas os dois eleitos restantes para o cargo. Obrigado!
Meu nervosismo voltou com força total.
— Clen, traga duas mesas ao invés de três.
Clen, junto de outros três criados, trouxeram duas mesas, cada uma sendo carregada por dois deles. Colocaram uma na minha frente e outra na frente do Henco. Logo depois trouxeram duas cadeiras para nós.
— Vocês não são tão jovens, mas devem se lembrar como eram feitas as provas em seus respectivos colégios, correto? Não farei uma pergunta exatamente, como das últimas vezes. Eu considero esta “prova” mais importante que as outras. Dessa vez não precisamos da ampulheta. Clen, retire o artefato, por favor.
Após retirar a ampulheta da sala, senti o peso que estava sobre meus ombros diminuir. Lembrei que Rufo não tinha informações sobre esta última prova, o que me deixou ainda mais nervoso.
O senhor Grenford continuou:
— Poderão demorar o tempo que quiserem. Se precisarem de dias, tudo bem. Quero apenas que escrevam o que eu pedir no papel. Por favor, sentem-se.
Seguimos as orientações e nos acomodamos nas cadeiras.
Eu e Henco nos mantivemos atentos, com nossas penas com tinta prontas em mãos.
— Quero que escrevam os nomes de todas as cidades, províncias e feudos sob domínio humano. Esta é a terceira prova!
— Senhor Grenford, isso é algum tipo de piada? Desculpe a linguajar, mas isso não signific-
O rei levantou um dedo e Henco cessou a fala.
— Tudo ao seu tempo, minha jovem. Podem começar!
“Com esta espada lascada farei com que todos pereçam!”
Deus Roxo (Violeta)
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