Capítulo 48 - Poço de Almas (2/3)
A essa altura, o ataque ao portão já havia se tornado algo como uma rotina para Zorian. Ele lidou com os defensores Ibasans praticamente sem falhas, com a única complicação sendo que o par de drakes das cavernas que ele usara como distração caindo um pouco rápido demais para o seu gosto. Eles eram grandes e resistentes, mas aparentemente hordas de oponentes mais fracos eram uma escolha melhor para manter os defensores ocupados até que ele pudesse garantir o portão. Ainda assim, todos os seus golens haviam sobrevivido ao ataque à base Ibasan, e a maior parte de seu estoque de itens mágicos ainda não havia sido usada, então Zorian considerou a primeira fase do ataque um sucesso. Com o portão garantido, a verdadeira operação poderia começar. Ele empurrou o corpo inconsciente de um dos Ibasans através do portão para enganar as barreiras mágicas da mansão, fazendo-as pensar que a incursão estava autorizada, e então atravessou, com seu grupo de batalha de golens o seguindo.
O plano era simples: Zorian permaneceria na sala do portão, protegido por um dos grandes golens, enquanto o restante de sua força seria enviado para o interior da mansão para confrontar Sudomir. Zorian estaria essencialmente se projetando através do menor golem, de aparência mais humana, ocasionalmente dando aos demais golens comandos verbais supérfluos para completar a ilusão. Esperava-se que isso enganasse Sudomir, fazendo-o pensar que estava lidando com dois invasores humanos, um dos quais estava apenas guardando o portão enquanto o outro liderava uma força de golens para o interior de seu domínio, em vez de apenas um humano que os controlava remotamente. Isso não apenas impediria Sudomir de tentar interromper o controle remoto de Zorian, como também manteria a atenção de Sudomir firmemente nos golens que avançavam e reduziria a chance de ele enviar suas forças para atacar o verdadeiro Zorian.
A primeira surpresa veio quando seus golens alcançaram o local onde as proteções se voltaram contra ele na reinicialização anterior. Desta vez, elas não foram ativadas. Estranho. Depois de pensar um pouco, Zorian concluiu que provavelmente era porque nenhum dos golens tinha alma. As proteções provavelmente eram baseadas em almas, assim como tudo naquela casa.
Infelizmente, isso só atrasou o problema, pois logo ele encontrou uma porta trancada pela qual precisava passar para continuar avançando. O golem que Zorian estava usando como marionete não tinha nada para abrir a fechadura e, mesmo que tivesse, faltava-lhe a destreza manual para realizar algo tão delicado quanto arrombar fechaduras, então ele simplesmente ordenou que o grande golem arrombasse a porta.
Sem surpresa, isso foi demais para as barreiras ignorarem, e elas imediatamente se tornaram hostis. Zorian ordenou que o grupo de golens avançasse, tentando levá-los o mais perto possível do centro da mansão antes que Sudomir reunisse suas forças mortas-vivas e tentasse interceptá-los.
Curiosamente, o portal dimensional permaneceu aberto, apesar da ativação das proteções. Zorian podia sentir a agitação das barreiras à medida que elas o identificavam como ameaça e se intensificavam ao seu redor, mas mesmo tendo acionado as proteções de forma tão descarada, mesmo estando bem ali na sala do portal, a abertura dimensional se recusava a se fechar. Obviamente, acionar as proteções fora da sala do portal contornava a contingência de desligamento automático, mas isso soou como um descuido tão bobo que Zorian não pôde deixar de pensar que Sudomir queria que as coisas funcionassem daquele jeito. Com certeza um especialista em proteções mágicas como Sudomir não cometeria esse tipo de erro, certo? E mesmo que cometesse, quase certamente tinha uma maneira de fechar o portal por iniciativa própria, independente de qualquer desligamento automático.
O que ele estava perdendo aqui? Por que Sudomir iria querer que o portal permanecesse aberto, mesmo que houvesse intrusos dentro de sua mansão?
Bem, tanto faz. Só havia uma maneira de descobrir. Os golens seguiram em frente, mesmo quando as primeiras ondas de mortos-vivos começaram a se chocar contra eles. Zorian tinha muitos itens mágicos para gastar desta vez, então os usou generosamente contra os atacantes, com grande efeito. Seu avanço era constante e imparável, e os ataques ao seu grupo de golems tornaram-se cada vez mais frenéticos e desorganizados com o passar do tempo. Sudomir nem sequer tentou contatá-lo, pessoalmente ou por projeção.
Havia muito menos armadilhas do que Zorian esperava, embora, em retrospecto, fizesse muito sentido que Sudomir não espalhasse explosivos e outros efeitos destrutivos em seus corredores. Ninguém queria que seus pertences fossem destruídos por suas próprias defesas, e a mansão geralmente estava lotada de guardas de qualquer maneira. Quando Zorian finalmente encontrou uma armadilha de verdade, ela veio na forma de uma armadilha de gás que rapidamente encheu um corredor inteiro com uma fumaça amarela e espessa. Considerando que o gás não teve efeito sobre seus golens e que a ativação da armadilha foi logo seguida por um último ataque dos defensores mortos-vivos da mansão, Zorian imaginou que o gás fosse venenoso. Era uma ótima maneira de debilitar inimigos vivos despreparados, sem afetar os javalis e guerreiros mortos-vivos. A fumaça também reduzia a visibilidade para quem dependesse da visão normal, enquanto os mortos-vivos não pareciam afetados pelos problemas de visibilidade resultantes.
Sudomir claramente havia se esforçado ao máximo neste último ataque, chegando a enviar um par de golens de carne para reforçar os já familiares javalis e cadáveres humanos vestidos de preto. Os golens de carne conseguiram destruir dois de seus golens menores antes de serem dilacerados, mas o resultado nunca esteve realmente em dúvida. Os mortos-vivos foram destruídos e Zorian atravessou a última porta entre ele e seu destino. O golem que ele manipulava entrou no coração da Mansão Iasku, e a visão deixou Zorian sem palavras.
A sala era grande e cilíndrica, com cada centímetro das paredes coberto por glifos de fórmulas de feitiço. Em vez de serem simplesmente gravados ou pintados, no entanto, os glifos eram feitos de um metal brilhante e prateado incrustado nas paredes. O que realmente chamava a atenção, porém, era o enorme cilindro cristalino colocado exatamente no centro da sala. Estendia-se do chão ao teto, fixado a ambos por bases de pedra e grossas faixas de metal, e emanava um suave brilho azul que diminuía e aumentava em um padrão lento e regular. Como um coração cilíndrico gigantesco e brilhante.
Zorian encarou o pilar brilhante e a parede coberta de glifos em silêncio, imaginando em que diabos havia se metido. Esperava encontrar algo interessante ali, sim, mas a escala absoluta daquela coisa à sua frente era simplesmente intimidadora.
“Lindo, não é?”, disse Sudomir, saindo de trás do pilar. “Levei anos para construir tudo isso. É uma obra de amor, e eu realmente odiaria vê-la danificada. Então, tome um pouco de cuidado com esses explosivos que você está carregando por aí, ok?”
Zorian franziu a testa para o homem à sua frente. Sudomir estava parado ali, sorrindo para ele com arrogância. Era como se estivesse desafiando Zorian a atacá-lo. Por um momento, ele ponderou se deveria simplesmente ordenar que seus golens avançassem e esmagassem Sudomir até virar uma pasta, mas decidiu se conter por enquanto. Queria ver se conseguia arrancar algo do homem primeiro.
“O cilindro é um dispositivo de armazenamento de almas, não é?” Zorian falou por meio do golem. “É assim que você está energizando as barreiras neste lugar. Deve haver centenas de almas presas lá…”
“Um dispositivo de armazenamento de almas!?” Sudomir repetiu, parecendo bastante indignado. Sua mão esquerda se contraiu incontrolavelmente por um segundo antes de Sudomir usar a outra mão para conter seus movimentos. “Você acha que tudo isso é só…”
Ele caiu na gargalhada, como se tivesse acabado de ouvir uma piada muito engraçada.
Era só Zorian ou Sudomir parecia só um pouco mais desequilibrado desta vez?
“Meu caro, tolo e indesejado visitante… você não tem ideia do que encontrou aqui, tem? Olhe ao seu redor!” disse Sudomir, fazendo um gesto amplo com as mãos para indicar a sala em que estavam. “Você realmente acha que este lugar é apenas um simples dispositivo de armazenamento de almas? Não, não, meu amigo – o que você está vendo é um verdadeiro poço de almas contendo milhares de essências espirituais, e com espaço suficiente para mais um milhão!”
“Um milhão de almas?” perguntou Zorian, incrédulo. “Vamos lá, Sudomir… como você conseguiria reunir tantas almas em um tempo hábil?”
“Cyoria tem quase meio milhão de pessoas”, disse Sudomir, dando de ombros levemente. “Se o ataque a Cyoria correr como planejado, a maioria delas vai morrer esta noite. Elas então virão para cá para se juntar às que eu já coletei.”
Ele bateu levemente no pilar de cristal para enfatizar.
“O quê?” perguntou Zorian, uma realização aterrorizante tomando ele.
“Ah, sim… Este lugar?” começou Sudomir, girando sobre si mesmo com os braços abertos. “Isto é o equivalente a uma armadilha de formigas-leão para almas1. Todos que morrem nas proximidades da Mansão Iasku têm suas almas atraídas para cá e presas no poço. Normalmente, isso não significa muito, já que estamos no meio do nada. Mas agora…”
“O portal”, disse Zorian. “Permite que você estenda sua armadilha de almas sobre a cidade enquanto os ibasans matam pessoas. É por isso que você não fechou o portão, mesmo depois de perceber que estava sob ataque.”
“Cada momento que o portão fica fechado é um momento em que as almas não fluem para o poço”, disse Sudomir. “E, veja bem, não havia mais atacantes entrando quando percebi a intrusão. Só vocês dois… ou talvez só um? Não consigo ver nenhuma alma em você. Você também não reagiu quando inundei o corredor com gás que rouba o fôlego. Sem mencionar o quão suspeitosamente passivo o mago ao lado do portal é. Você é algum tipo de projeção extravagante, não é?”
Antes que Zorian pudesse dizer qualquer coisa, Sudomir começou a rir novamente, alto e histericamente, suas mãos se contraindo e rangendo de forma perturbadora. Zorian tinha quase certeza, neste ponto, de que havia algo muito errado com Sudomir. Ele havia provocado uma mudança bastante radical no necromante com sua invasão bem-sucedida. O riso, os espasmos, a franqueza incomum de suas respostas… Sudomir parecia quase drogado. Teria entrado em pânico diante da crise e tomado alguma poção de aprimoramento imprudente? Ou talvez realizado algum feitiço com efeitos colaterais severos? Seja qual for a resposta, Sudomir estava ficando cada vez mais instável à medida que a conversa progredia, e Zorian não achava que conseguiria muito mais dele.
“Por quê? Por quê!?” Sudomir gritou de repente, instantaneamente passando do riso para um desespero exagerado. Sua pele se contorcia como se cobras estivessem nadando em sua carne e seus olhos começaram a brilhar com um suave brilho azul. Sim, ele definitivamente havia entrado em pânico e feito algo estúpido. “Por que você veio aqui!? Tudo estava indo tão bem, tão perfeitamente! Todos aqueles anos de planejamento, todos os sacrifícios que fiz… Não vou deixar você tirar tudo de mim! Não vou, não vou, não vou, não vou!”
Zorian ordenou que seus golens atacassem o homem, mas ele agiu tarde demais. Antes que os golens pudessem alcançá-lo, o corpo de Sudomir rapidamente se expandiu e se contorceu, transformando-se em um enorme monstro humanoide. Era verde, vagamente reptiliano e tinha pequenas asas vestigiais crescendo em suas costas — como um cruzamento entre um troll e um dragão.
Os golens que ele ordenou que atacassem Sudomir continuaram investindo contra seu alvo, impassíveis diante da transformação, mas a criatura era mais forte e ágil do que as criações de Zorian. Provavelmente tinha mesmo parte troll, pois definitivamente se regenerava como um quando ferido. Não demorou muito para que os golens menores fossem reduzidos a sucata, e o golem grande também não estava se saindo tão bem.
Zorian estava prestes a atingi-lo com todos os itens mágicos que lhe restavam quando descobriu que aquele troll-dragão também podia cuspir fogo. O pobre golem que ele estava seguindo não resistiu um segundo sob o calor antes de falhar.
O grande golem desapareceu de seu controle menos de um minuto depois. Sabendo que não tinha chance contra essa versão transformada e em frenesi de Sudomir, Zorian voltou para a base Ibasan do outro lado do portão dimensional e tentou analisá-lo para ver como funcionava.
Previsivelmente, o portal logo detectou sua interferência e se desligou. É claro. Ele meio que imaginou que isso aconteceria. Bem, pelo menos assim Sudomir não conseguiria alcançá-lo, e ele também havia localizado uma das armadilhas que Quatach-Ichl havia colocado no portal para impedir qualquer interferência. Levaria um bom número de reinícios, mas ele sentiu que poderia localizar e desmontar a proteção do portal com um pouco de tentativa e erro.
Ele não teve muito tempo para refletir, no entanto, porque Quatach-Ichl apareceu logo após o portão se fechar para ver o que estava acontecendo. Zorian ativou seu interruptor de reinicialização em vez de confrontá-lo.
* * *
- Armadilhas de formigas-leão são buracos cônicos no solo (formato de funil) que capturam presas que caem dentro de sua respectiva área[↩]
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