Capítulo 320: Governadas Reuniões
Quando Otamandi Missuri pisou sobre o casco do Mitsuya Kurai, seu primeiro gesto foi soltar um suspiro profundo, como se carregasse nos ombros o fardo de mil viagens, ou talvez apenas o peso de estar ali, entre rostos conhecidos e expectativas silenciosas.
Sua presença, como sempre, era marcante.
O corpo largo, moldado pelos anos de travessias hostis, vestia uma cota grossa de malha entrelaçada com placas de ferro opaco que cobriam o peito. Essas placas eram unidas por cordões finos de cobre, adornando ombros e cintura como se fosse uma armadura cerimonial, pesada, mas funcional.
Um turbante vermelho vibrante envolvia sua cintura como uma faixa de guerra, e as botas de couro negro estalavam sobre a madeira a cada passo, o som reverberando como um anúncio.
Mesmo conhecido por suas escolhas imprevisíveis e por navegar as rotas mais traiçoeiras do Oceânico Polar II, locais onde até mesmo piratas hesitavam em passar, sua chegada não era, de forma alguma, um evento a ser tratado com leviandade.
Cabeças se curvaram respeitosamente conforme ele avançava, como se um velho mito tivesse acabado de desembarcar. E mesmo Kamitase, experiente e cauteloso, inclinou-se levemente em saudação ao vê-lo frente a frente.
— É sempre um prazer te reencontrar, Convidado — disse Otamandi com um tom descontraído, quase provocador. — Nada de formalidades, vai. Somos parceiros de bebida e de negócio. Dessa vez, trouxe um colega pra somar à conversa.
Atrás dele, descendo a prancha com passos calmos e firmes, vinha um homem alto, magro como um galho seco, vestido com um terno preto engomado e um sobretudo escuro que caía pelos ombros como uma capa de veludo. O vento do mar fazia a barra da roupa dançar levemente, mas ele manteve a postura rígida. Fez uma breve menção com a cabeça, polida, contida — como se seu próprio silêncio já carregasse status.
— Este é Gaster — anunciou Otamandi. — Um dos nomes mais fortes do comércio fluvial. Madeira, ferro, especiarias… se alguém quer fazer algo grande nesses mares, esse é o homem. Aposto que se lembram dele dos tempos do falecido Rei Bulianto, não?
Kamitase estendeu a mão, e Gaster a apertou com firmeza, ainda que mantendo certa distância. Era o tipo de cumprimento que dizia: respeito, mas observação.
— É uma bela embarcação — comentou Gaster, girando os olhos ao redor com a precisão de quem avalia navios como quem lê contratos. Seu olhar era frio, analítico. — Ouvi dizer que esteve envolvido com alguns mercadores menores, ilhéus, mas não sabia que também estava transportando mantimentos.
— Depois da queda de Bulianto, passamos um tempo tentando nos reerguer — respondeu Kamitase. — Estamos trabalhando junto de Flavio Sobeer. Já ouviu falar?
Gaster assentiu com um meio sorriso.
— Claro. Um homem de palavra. Raro de se encontrar por aqui. Se está com ele, tem bons ventos ao seu favor. — Então, lançou um olhar por sobre o ombro, observando a prancha ser preenchida por mais uma figura. — Bem… achei que ele fosse se esconder mais um tempo. Mas parece que perdeu a vontade de ficar à sombra.
Kamitase virou o rosto para ver quem era.
O homem que descia agora era robusto, com feições duras e um olhar marcado pela fadiga. Reinal Missuri. Um nome pesado entre os comerciantes, um dos grandes, ou pelo menos, já tinha sido. Tinha sobrevivido a um encontro com Duncan Reborn semanas atrás, quando três embarcações haviam sido destruídas de forma brutal e misteriosa.
Alguns diziam que Reinal havia morrido naquele ataque. Outros, que enlouquecera. Mas ali estava ele, caminhando, ainda que com passos mais lentos, como se o próprio ar em volta dele carregasse estilhaços do que viu.
Kamitase o observou em silêncio.
Ainda vivo, pensou. Mas não parecia o mesmo. Havia algo quebrado ali, no jeito que mantinha os braços próximos ao corpo, no olhar que evitava o horizonte.
Não que a sobrevivência significasse algo valioso, não naquele contexto. Duncan Reborn ainda não havia retornado. Nenhum saque. Nenhuma palavra. Nenhum avanço.
Três navios afundados. Zero lucro. E silêncio.
Por quê? A pergunta permanecia flutuando, sem resposta.
Talvez, apenas talvez, o boato de um navio fantasma vagando pelo oceano, camuflado como névoa viva, tivesse finalmente atingido até os corações mais endurecidos.
Kamitase conteve um sorriso cético.
Até parece.
— Irei aguardar enquanto os demais são preparados para a recepção — disse Kamitase, com um leve aceno de cabeça. Seu tom era firme, mas cortês. Então, girou a mão no ar e estalou os dedos para os subordinados atentos nas laterais. — Tragam mesas e cadeiras. Que o banquete comece a ser disposto. E cidra, tragam bastante.
— Prefiro rum — comentou Otomendi, esticando os braços em um espreguiçar preguiçoso, como um urso em fim de hibernação. — Você tem?
— Claro — respondeu Kamitase com um sorriso breve, que mais soava como parte de um ritual entre velhos lobos do mar do que gentileza propriamente dita.
Os primeiros criados se moveram depressa, arrastando bancos, ajustando bandejas com frutas, carnes secas, jarras de cobre e vidro. O convés ganhou vida por alguns minutos, com sons de talheres, estalos de madeira e murmúrios discretos entre os tripulantes.
Mas então, como se o tempo tivesse decidido parar por capricho, algo mudou.
As conversas começaram a diminuir. Primeiro os risos mais soltos cessaram, depois as vozes se tornaram sussurros inquietos. Os rostos se voltaram automaticamente para o mar, como se guiados por um instinto que ninguém sabia nomear.
O céu, sem pressa, assumiu uma tonalidade levemente mais acinzentada, embora nenhuma nuvem nova estivesse à vista. O vento parou. Nem uma bandeira tremulava. O próprio oceano parecia prender a respiração, silencioso e tenso como um animal à espreita.
Todos sentiram.
Kamitase ergueu o olhar com a mesma cautela de quem sente a aproximação de algo que não entende. Seu corpo se manteve ereto, mas os dedos se fecharam discretamente sobre o punho da cadeira. Ele conhecia bem os sinais do mar e esse não era natural.
Ao seu redor estavam os três capitães que havia reunido com esforço nas últimas semanas.
Otomendi Missuri, imponente como sempre, mantinha o olhar fixo no horizonte, girando o copo de rum de forma quase meditativa.
Nuno Moria, calado, observava com olhos semicerrados e expressão de pedra, como se estivesse esperando por isso desde o momento em que pisou no navio.
E Filipinas Sallaes, a mais imprevisível dos quatro, mantinha-se com os braços cruzados, a postura firme e os olhos fixos na linha d’água. Seu nome corria entre os portos como uma lenda viva desde a queda de Bulianto.
Muitos tentaram caçá-la. Nenhum voltou para contar como foi. Atacava as linhas de suprimento do Rei do Oeste com precisão quase cirúrgica, dominando ilhas e sabotando depósitos como se o mar inteiro trabalhasse para ela e, de certa forma, parecia que trabalhava mesmo.
Agora, os quatro estavam ali. E algo se aproximava.
Foi então que um deles, talvez um marinheiro distraído, deixou cair uma colher, e o som seco na madeira pareceu uma explosão naquele silêncio denso.
— O que é isso…? — murmurou alguém, mais atrás.
E o céu finalmente respondeu.
Foi com uma vibração quase imperceptível no ar. Um zumbido sutil, grave, como se o próprio oceano estivesse aguardando permissão para revelar o que escondia.
Então, ali, no vazio onde antes só havia mar — atrás da linha do Mitsuya Kurai, como um vulto saindo de um pesadelo brando —, o Nokia apareceu.
Não houve brilho. Não houve distorção visível, como nos contos que falavam de magia ou tecnologia exótica. Só um borrão de névoa sendo empurrado para os lados, até que o casco imenso surgisse completo, sólido, imponente.
A embarcação tinha crescido. Não em altura ou comprimento, mas em volume. As laterais estavam mais reforçadas, fundidas com placas negras que lembravam metal vulcânico, mas tinham reflexos azulados sob o sol. Torres de observação estavam erguidas em pontos estratégicos. O deque agora era dividido em níveis, como se o navio tivesse se adaptado a carregar mais — ou a resistir mais.
Era como se o Nokia tivesse saído de um sono profundo e voltado… diferente. Um predador com armadura nova.
Os marinheiros do Mitsuya Kurai prenderam a respiração. Mesmo os veteranos.
E então, de uma escotilha no alto do convés principal, uma figura surgiu.
Nenhuma fanfarra. Nenhum gesto grandioso. Só passos decididos.
O Capitão Dante.
Ele caminhou pela prancha que fora estendida entre os navios com naturalidade, como se chegasse atrasado a um jantar comum. Vestia um sobretudo escuro, sem brasões ou símbolos. A gola alta cobria parte do pescoço e o vento jogava o tecido para trás a cada passo. Os olhos, como sempre, estavam firmes. Claros. Um pouco cansados.
Ao seu lado, ninguém. Nem guardas, nem representantes.
Apenas ele.
Quando alcançou o convés do Mitsuya Kurai, Kamitase foi o primeiro a erguer-se.
Dante olhou em volta, como quem mede o terreno antes de decidir se vai sentar ou continuar em pé. Seu olhar passou por Otomendi, por Nuno, por Filipinas. Não disse nada. Apenas assentiu com um leve movimento de cabeça, reconhecendo cada um.
Havia um rosto conhecido, no entanto, mais afastado, o fitando com a boca aberta e olhos arregalados. Dante recuperou um sorriso de lado, ignorando-o na hora.
— Desculpem o atraso — disse ele, enfim. A voz era baixa, mas audível. — O mar tem seus caprichos.
E foi só isso.
Virou-se para Kamitase.
— Posso me sentar?
Como se estivesse chegando num boteco de pescadores e não numa reunião entre os nomes mais perigosos e influentes do Oceânico Polar II.
E talvez, exatamente por isso, ninguém disse nada.
Ele não precisava. O Nokia já tinha falado por ele.
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