Índice de Capítulo

    Quintus respirou fundo e pisou na calçada, deixando a van para trás. Enquanto caminhava em direção ao restaurante, tocou no rosto ainda sensível, um lembrete físico da humilhação sofrida. 

    “Dois tapas” — prometeu a si mesmo — “Vou dar tão forte que ele vai precisar reincarnar para sentir o rosto de novo.”

    Dentro da van, Dr. Zaratustra esperou que Quintus estivesse longe o suficiente e virou-se para a mulher da prancheta, falando em voz baixa:

    — Anota aí — ordenou, ajustando o relógio de pulso — O tapa não foi suficiente para despertar uma nova alma ou uma nova personalidade em seu corpo. Precisamos testar pancadas mais fortes e em outros momentos emocionais. 

    A mulher assentiu silenciosamente, registrando as palavras com eficiência metódica. Enquanto escrevia, seu olhar clínico se deteve brevemente sobre as anotações anteriores:

    “Ele realmente acredita que pode provocar a invasão de outras almas não reencarnadas que vagam tentando se apossar de corpos alheios.” — pensou ela, analisando friamente as teorias do bilionário. 

    “A mesma coisa que os religiosos chamam de possessão demoníaca ou que a psiquiatria moderna classifica como transtorno dissociativo de identidade, múltiplas personalidades… Dr. Zaratustra e suas experiências sempre na fronteira entre ciência e misticismo…” — concluiu suas reflexões, voltando à sua postura profissional, continuando a documentar cada aspecto do experimento com a mesma imparcialidade de sempre.

    Indiferente à conversa na van, o cérebro de Quintus fervilhava enquanto se aproximava da entrada. Nunca tinha sido agredido daquela forma antes, nem mesmo nas raras brigas do colégio, onde ele geralmente desaparecia antes que qualquer confronto físico começasse. 

    “Talvez o bilionário maluco estivesse certo? Talvez ele realmente tivesse sido superprotegido, vivendo em uma bolha longe da dureza da vida real?” — pensou.

    “Não!” — retrucou sua mente defensiva — “Olhar para uma mulher bonita é completamente normal. Todo homem faz isso! O velho está delirando com essas teorias conspiratórias sobre relacionamentos.”

    A determinação cresceu em seu peito enquanto subia os degraus do restaurante. Nunca mais deixaria alguém o agredir sem consequências. Não importava o tamanho do oponente ou o quanto podia perder, enfrentaria qualquer um que ousasse tocá-lo novamente. O mundo real queria jogar duro? Ele responderia à altura.

    — Boa noite, senhor. Posso ajudá-lo? — o ‘maître’, um homem alto de aparência aristocrática, bloqueou sutilmente sua entrada com uma prancheta.

    — Eu… tenho uma reserva. — Quintus tossiu, tentando projetar confiança — No nome de Dr. Zaratustra.

    — Ah, sim! Dr. Zaratustra, claro! — o homem inclinou-se ligeiramente e transformando-se instantaneamente de suspeita para servilismo absoluto — Por favor, me acompanhe até sua mesa, senhor.

    O jovem Maximus foi conduzido através de um salão que parecia retirado de um filme de época. Candelabros de cristal pendiam do teto alto, mesas cobertas com toalhas brancas impecáveis abrigavam a elite da cidade, e garçons em trajes formais deslizavam pelo ambiente como fantasmas elegantes. 

    O ar carregava aromas que ele nem sabia identificar, mas que certamente custavam mais por grama do que seu aluguel mensal.

    “Nunca estive num lugar assim” — pensou maravilhado enquanto seguia o maître. 

    O contraste com os restaurantes universitários e lanchonetes de bairro que frequentava era tão grande que parecia ter atravessado um portal para a casa custeada com a lei Rouanet de Caetano. 

    Uma vez acomodado em uma mesa estrategicamente posicionada com visão para o salão inteiro, um garçom materializou-se ao seu lado oferecendo o cardápio encadernado em couro:

    — Algo para beber enquanto decide, senhor?

    — Eu… — Quintus lembrou-se subitamente do cartão que o bilionário havia lhe dado, autorizando-o a gastar sem preocupações. Um sorriso malicioso formou-se em seus lábios — Traga-me sua melhor champanhe. E para começar, quero experimentar essas… — apontou para algo no cardápio cuja pronúncia nem tentaria massacrar — …ostras francesas.

    — Excelente escolha, senhor.

    Enquanto o garçom se afastava, olhou ao redor com renovado interesse. Se ia embarcar nessa missão absurda, pelo menos aproveitaria os benefícios. 

    “Vou pedir um de cada item desse cardápio se for possível” — prometeu a si mesmo, imaginando-se como uma primeira dama que passava fome antes de fisgar um governante otário e velho — “Talvez até peça para embrulhar o que não conseguir comer. Não sei quando terei outra oportunidade assim.”

    — Teste, teste. Você está me ouvindo? — a voz do Dr. Zaratustra crepitou subitamente em seu ouvido, fazendo-o pular na cadeira.

    — Sim! — sussurrou Quintus, inclinando-se para disfarçar que estava falando sozinho — Estou ouvindo.

    — Ótimo! Agora, olhe ao seu redor discretamente. Vê alguma candidata potencial?

    O jovem Maximus ergueu os olhos, analisando o ambiente sem virar a cabeça como um predador observando presas. Três mesas se destacaram imediatamente: todas com mulheres desacompanhadas.

    Na primeira, uma loira de aproximadamente trinta anos trabalhava em um laptop enquanto bebia algo que parecia ser martini. Seu blazer executivo e a rápida digitação sugeriam uma CLTzilla escrava do ponto eletrônico em um raro momento de autocuidado. 

    “Difícil. Um pouco velha também. Provavelmente nem vai me notar, muito menos sair comigo” — concluiu.

    Na segunda mesa, uma morena com óculos de armação preta folheava um livro grosso. Vestia-se com elegância discreta e ocasionalmente fazia anotações em um caderninho. 

    “Intelectual. Vai me desmantelar em dois minutos de conversa quando descobrir que meu conhecimento literário se limita a memes e resumos do Google” — descartou mentalmente.

    Na terceira, mais próxima à janela, uma ruiva sorvia uma taça de vinho tinto enquanto checava o celular ocasionalmente. Seu vestido verde-esmeralda combinava perfeitamente com os cabelos flamejantes, e algo em seu olhar parecia mais acessível, quase como se estivesse… esperando por alguém?

    — Escolha a ruiva — a voz de Zaratustra voltou, como se tivesse lido seus pensamentos — Ela já olhou para você três vezes enquanto você estava ocupado babando no cardápio.

    — Sério? — Quintus quase virou a cabeça bruscamente, mas conteve-se a tempo, optando por um movimento casual.

    — Confie em mim. Aproveite que o garçom está trazendo sua bebida e vá até lá, pergunte se pode se juntar a ela.

    O jovem que acreditava ser um reencarnado franziu a testa enquanto um pensamento incômodo cruzava sua mente:

    “Por que o bilionário o estava ajudando? Não seria mais fácil para Zaratustra se ele falhasse e não tivesse que entregar os outros quinhentos? E as pesquisas científicas não deveriam ser esterilizadas para não influenciar os pesquisados?” 

    Algo não parecia certo naquela situação toda. Mas a possibilidade de experimentar uma nova realidade, comer de graça e ter dinheiro suficiente para comprar um PlayStation 18 acabaram dominando sua mente, afogando qualquer lampejo de bom senso.

    O garçom retornou com uma garrafa cujo preço equivalia a aproximadamente 412 pacotes de miojo, o que, nos cálculos de Quintus, daria para sobreviver quase dois semestres na universidade.

    — O que devo dizer? — murmurou o jovem Maximus através de um sorriso forçado enquanto o garçom servia a champanhe — Não tenho experiência com esse tipo de abordagem.

    — Apenas seja direto. Vá até a garota e diga que a notou e gostaria de fazer companhia.

    — E se ela me rejeitar?

    — Pense que nunca mais verá essas pessoas na vida! — respondeu Zaratustra — O máximo que pode acontecer é um ‘não’, e você continua sua vida ordinária em outro mundo completamente diferente do dela. 

    O garçom finalmente se afastou, deixando Quintus sozinho com sua taça de champanhe caríssima e um coração acelerado. Respirou fundo, ensaiando mentalmente as frases que diria: 

    “Oi, notei você daqui e pensei… Não, muito clichê. Que tal: Este lugar é incrível, não é? Posso me juntar a você para… Argh, ainda pior.”

    — Pare de pensar e vá logo, antes que ela termine o vinho e vá embora!

    Com um último gole de coragem líquida, Quintus levantou-se e caminhou em direção à mesa da ruiva. Cada passo parecia mais pesado que o anterior, como se estivesse atravessando areia movediça. Seu cérebro gritava para dar meia-volta, mas seu corpo, impulsionado pela promessa de dinheiro e vingança, seguiu em frente.

    A poucos passos da mesa, ensaiou seu melhor sorriso, aquele que tinha praticado infinitas vezes no espelho do banheiro e nunca tinha coragem de usar em público. A ruiva ergueu os olhos do celular, parecendo notar sua aproximação. Havia um brilho de curiosidade em seu olhar que acendeu uma pequena faísca de esperança em Quintus.

    — Oi, eu não pude deixar de notar…

    As palavras morreram em sua garganta quando, quebrando qualquer expectativa com a mesma brutalidade de todo o Governo em extorquir o povo com mais impostos, um homem alto e bem-vestido surgiu do nada e sentou-se exatamente na cadeira para a qual se dirigia.

    — Desculpe o atraso, querida — disse o recém-chegado, inclinando-se para beijar a ruiva, que sorriu como se tivesse acabado de ganhar na loteria — O trânsito estava infernal.

    O casal olhou confuso para Quintus, que permaneceu paralisado como uma estátua de sal no meio do restaurante, com uma frase inacabada pairando no ar e o rosto gradualmente assumindo o tom de um pimentão maduro.

    — Posso ajudá-lo? — perguntou o homem, franzindo ligeiramente a testa.

    — Eu… eu só… — engoliu seco — Pensei que tinha visto… um amigo. Me confundi. Desculpem.

    Recuou desajeitadamente, quase derrubando um garçom que passava com uma bandeja cheia de pratos. De volta à sua mesa, afundou na cadeira querendo desesperadamente que o piso se abrisse e o engolisse.

    — Isso foi espetacularmente desastroso! — A voz de Zaratustra voltou, agora mal contendo uma risada — Mas não desista. Você ainda tem duas opções. A loira executiva ou a morena intelectual. Escolha sabiamente desta vez…

    O fracasso com a ruiva despertou em Quintus todas as lembranças de rejeição que havia guardado no fundo da memória. Seus dedos tremiam ao segurar a taça de champanhe, e um suor frio começou a escorrer por suas costas. 

    O fiasco público trouxe à tona cada ‘não’ que já havia recebido, cada risadinha de deboche, cada mensagem deixada em visto. A garota do segundo ano que riu quando ele convidou para sair; a vizinha que fez cara de nojo quando ele tentou puxar conversa no elevador; a colega de escola que fingiu não ouvi-lo quando propôs um café; as inúmeras mensagens na rede social não respondidas, os match do Tinder nunca alcançados.

    “NÃO VOU CONSEGUIR!” — pensou, sentindo o estômago revirar — “Não pertenço a este lugar. Estas pessoas provavelmente ganham em um dia o que ganho em meses. Até o garçom parece mais confiante e sofisticado que eu.” 

    Seu instinto gritava para sair correndo, voltar para o conforto do seu quarto apertado, onde ninguém poderia testemunhar sua inadequação. A simples ideia de tentar novamente e colecionar mais um vexame fazia seu corpo congelar na cadeira como se tivesse raízes.

    — Escuta aqui, garoto! — a voz de Zaratustra cortou o turbilhão de auto-depreciação — Sabe qual é a diferença entre um perdedor e um vencedor? O vencedor falhou tantas vezes quanto o perdedor, mas tentou mais uma vez. Todo homem de sucesso que conheço coleciona mais rejeições do que você jamais terá coragem de enfrentar. Você pode fugir agora e confirmar o que já pensa sobre si mesmo, ou pode mostrar que tem fibra para algo maior. A escolha é sua… mas lembre-se dos quinhentos reais e dos dois tapas que está deixando escapar.

    Quintus observou as duas mulheres restantes, seu orgulho ferido clamando por redenção enquanto tentava se apegar com todas as forças e foco na coragem recém descoberta:

    “Qual seria sua próxima tentativa? A workaholic intimidadora ou a intelectual potencialmente arrasadora?”

    Agarrou a taça de champanhe e virou-a de uma vez, sentindo o líquido borbulhante queimar sua garganta. O álcool espalhou um calor imediato pelo seu corpo, anestesiando o medo e acendendo uma faísca de coragem que as palavras do bilionário não haviam conseguido. 

    Era o combustível que precisava. Não para se tornar um conquistador, mas para ao menos tentar mais uma vez sem desmoronar. Com as bochechas já coradas e a sensação de leveza artificial, levantou-se, decidido a enfrentar mais uma rodada de humilhação pelo prêmio prometido.

    “Qualquer uma das duas provavelmente resultará em mais um desastre!” — pensou, mas o brilho dourado das notas de quinhentos reais dançou em sua mente, junto com a imagem satisfatória de sua mão conectando-se à face do bilionário, duas vezes.

    Emborcando mais uma taça do líquido borbulhante com a sede de quem atravessou o sertão nordestino a pé, Quintus encarou as próximas candidatas como um jogador de futebol encarando o gol vazio, sabendo que ainda assim poderia errar. Mas a promessa dos dois tapas restauradores de honra e os quinhentos de consolo já estavam reservados em seu orçamento mental.

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