Olá, segue a Central de Ajuda ao Leitor Lendário, também conhecida como C.A.L.L! Aqui, deixarei registradas dicas para melhor entendimento da leitura:
Travessão ( — ), é a indicação de diálogos entre os personagens ou eles mesmos;
Aspas com itálico ( “” ), indicam pensamentos do personagem central em seu POV;
Aspas finas ( ‘’ ), servem para o entendimento de falas internas dentro da mente do personagem central do POV, mas não significa que é um pensamento dele mesmo;
Itálico no texto, indica onomatopeias, palavras-chave para subverter um conceito, dentre outras possíveis utilidades;
Colchetes ( [] ), serão utilizados para as mais diversas finalidades, seja no telefone, televisão, etc;
Por fim, não esqueça, se divirta, seja feliz e que os mistérios lhe acompanhem!
Capítulo 97 — O Peregrino das Perguntas Não Respondidas
Atenção: dos capítulos 96 a 100, estamos passando por histórias paralelas e futuras do mundo de ASDI, por conta disso até mesmo a forma narrada, pode acabar sendo alterada para primeira pessoa, não estranhem.
Rússia, Athos, Monastério Troitse-Porsmalov.
A vista de fora sempre era magnífica.
Os peregrinos, aos poucos, chegavam — alguns a pé, outros a cavalo, todos com os olhos voltados para as torres douradas que brilhavam sob o céu pálido.
— É como um sonho — murmurou um deles, ajustando o pesado manto sobre os ombros.
— Um sonho que exige fé para ser vivido — respondeu outro, cruzando-se devotamente.
E assim seguiam, entre suspiros e preces, enquanto o vento frio trazia o eco distante dos sinos.
— O que será que nos espera lá dentro? — pensou um jovem, hesitante.
— Será que encontrarei as respostas que busco? — questionou-se um ancião, escondendo as mãos trêmulas nas mangas largas do hábito.
O mosteiro, impassível, observava.
O grande portão de madeira rangia sob o peso dos séculos, abrindo-se lentamente para recebê-los.
— Entrem, filhos da Santa Rússia — ecoou uma voz grave de um monge oculto nas sombras.
Os peregrinos avançaram, um a um, pisando na terra sagrada onde tantos haviam derramado lágrimas e súplicas.
— Aqui, o tempo não corre como lá fora — disse o jovem, sentindo o ar denso de incenso e cera queimada.
— E mesmo assim, ele pesa como chumbo — refletiu o ancião, olhando as paredes negras de fuligem e oração.
No pátio central, velas tremeluziam diante dos ícones, e monges de longas barbas murmuravam salmos em vozes roucas.
— A paz esteja convosco — saudou um deles, inclinando-se levemente.
— E contigo também, irmão — responderam os peregrinos em uníssono, alguns curvando-se mais que outros.
— Será que eles sabem por que viemos? — questionou-se o jovem, observando os rostos impassíveis dos monges.
— Ou será que nem nós mesmos sabemos? — completou, em silêncio, o ancião, enquanto a brisa noturna enroscava-se em suas vestes como um lembrete do mundo que haviam deixado para trás.
O refeitório era amplo, iluminado apenas por lamparinas que lançavam sombras dançantes nas paredes de pedra. Longas mesas de carvalho, gastas pelo tempo, aguardavam os recém-chegados.
— Sentem-se — ordenou um monge mais velho, erguendo a mão em gesto solene. — O pão que partilhamos aqui não sacia apenas o corpo, mas também a alma.
Os peregrinos obedeceram em silêncio, trocando olhares entre si. O jovem, ainda inquieto, observava os monges, tentando decifrar os segredos por trás de seus olhos baixos.
“Eles vivem, mas parecem já ter um pé na eternidade”, pensou, sentindo um arrepio percorrer-lhe a espinha.
O ancião, por sua vez, fechou os olhos ao primeiro gole de kvass1, deixando o sabor amargo e doce invadir-lhe a boca como uma memória antiga.
— Quantos como eu já se sentaram neste mesmo banco? — ponderou, deslizando os dedos sobre a madeira áspera. — Quantos pediram, choraram, duvidaram?
Do lado de fora, o vento uivava entre as frestas, carregando consigo o murmúrio distante de cantos litúrgicos.
— Irmãos — anunciou um monge ao fundo, erguendo um ícone de São Nicolau —, antes do repouso, a vigília. Antes do silêncio, a palavra.
O jovem apertou as mãos sobre o colo, os nós dos dedos brancos de tensão.
— O que devemos dizer? — quase escapou-lhe em voz alta, mas os lábios não se abriram.
O ancião sorriu, como se lesse seus pensamentos.
— Nada — pareceu responder-lhe com um olhar. — Aqui, as palavras são como folhas ao vento. O que importa é o que fica depois que elas se vão.
E assim, entre o não dito e o insondável, a noite começou a cair sobre o Mosteiro Troitse-Porsmalov, envolta em orações e no peso suave da graça.
…
A lamparina na cela do jovem peregrino tremulava, projetando sombras vacilantes nas paredes nuas. Ele se ajoelhou diante do pequeno ícone da Mãe de Deus, mas as palavras da oração não vinham.
“Por que o silêncio dói tanto”
Pressionou as palmas das mãos contra os olhos.
Do corredor, chegavam passos surdos — alguém caminhando descalço sobre as tábuas enceradas. Parou diante de sua porta.
— Filho — chamou a voz serena do starets2, — a madrugada é irmã da melancolia. Não lute contra ela.
O jovem abriu a porta, encontrando o velho monge segurando uma lamparina. Seus olhos brilhavam como dois sóis pequenos na escuridão.
— Pai, como sabias que eu…
— Os mesmos demônios visitam cada um de nós — interrompeu suavemente o monge. — Só mudam de máscara.
No quarto ao lado, o ancião peregrino virou-se no estreito leito de madeira. O som da conversa chegava até ele como murmúrios de um rio distante.
— Que busca esse jovem com tanta ânsia? — refletiu, puxando o grosso cobertor de lã sobre os ombros. — O que qualquer um de nós busca aqui, senão o que já carregamos dentro?
Lá fora, a primeira neve do inverno começava a cair, cobrindo de branco as cruzes do cemitério monástico. Um sino badalou, único e profundo, marcando a vigília noturna.
— Vem — disse o starets, estendendo a mão ao jovem. — A oração dos insones também é sagrada.
E enquanto seguiam pelo corredor escuro, a neve continuava caindo — sobre os vivos, sobre os mortos, sobre as dúvidas e as frágeis certezas — igualmente, indiferentemente, santa.
O refeitório noturno estava vazio, exceto por uma única mesa onde queimava uma vela de cera de abelha. O starets conduziu o jovem até lá, seus passos leves quase não ecoando no silêncio sagrado do lugar.
— Senta, filho. O pão da madrugada tem outro sabor.
O jovem pegou o pedaço escuro de pão de centeio que lhe foi oferecido. Mastigou devagar, sentindo a aspereza dos grãos entre os dentes.
— Por que aqui tudo parece mais real do que lá fora? — arriscou a perguntar, baixinho.
O velho monge sorriu, fazendo sombras dançarem em seu rosto enrugado.
— Porque aqui não há pressa para fingir.
Em algum lugar do mosteiro, uma porta rangeu. O ancião peregrino apareceu no limiar, envolto em seu manto. Seus olhos encontraram os do starets num entendimento silencioso.
— A noite é longa para os que carregam perguntas — disse o monge, acenando-o para se juntar a eles.
O ancião sentou-se pesadamente, seus ossos rangendo como as vigas antigas do mosteiro.
— E as respostas? — perguntou, aceitando uma xícara de chá quente.
— Ah. — O starets suspirou, olhando o vapor subir como incenso. — As respostas são como a neve lá fora. Chegam quando paramos de esperar, cobrem tudo igualmente, e derretem quando menos precisamos delas.
O jovem olhou pela janela estreita. Os flocos brancos giravam no escuro, infinitos.
— Então vale a pena perguntar?
O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo crepitar da vela. O starets inclinou a cabeça, como se escutasse algo além deles.
— Vale a pena viver a pergunta, filho. Até que ela deixe de ser pergunta.
O ancião assentiu, levando a xícara aos lábios. Seu olhar perdido no vazio dizia que ele já sabia — e ainda assim, continuava vindo ao mosteiro, inverno após inverno.
Lá fora, entre as árvores do bosque sagrado, um lobo uivou. Longínquo, solitário, puro. Como uma oração sem palavras.
O uivo do lobo ecoou pelos corredores de pedra como um salmo não escrito. O jovem estremeceu, sentindo o som penetrar em seus ossos.
— Ele também reza? — murmurou, sem perceber que falara em voz alta.
O starets inclinou a cabeça, os olhos semicerrados:
— Tudo o que existe louva a Deus à sua maneira. Até a dúvida. Especialmente a dúvida.
O ancião peregrino esfregou as mãos enregeladas em torno da xícara. Seu olhar perdera-se nas profundezas do chá, onde folhas mortas afundavam lentamente.
— Na minha cidade — começou, voz rouca como casca de bétula — dizem que os lobos cantam para os monges que se perderam na floresta. Guiam-nos de volta… ou levam-nos mais fundo, conforme o que sua alma precisa.
Uma rajada de vento sacudiu as portadas da janela. A chama da vela curvou-se, quase se apagando, antes de se reerguer ainda mais viva.
— E como saber… — O jovem engoliu seco — …qual dos dois está acontecendo?
O silêncio que se seguiu foi tão denso que parecia palpável. Até o tic-tac do relógio de parede no canto cessou, como se o tempo mesmo tivesse prendido a respiração.
Foi então que o sino da madrugada começou a tocar. Um badalo, depois outro, rompendo o gelo da noite.
O starets levantou-se lentamente, seus ossos estalando como galhos sob a neve.
— Vinde — disse, estendendo as mãos a ambos. — A Divina Liturgia não espera por nossas respostas.
Ao seguirem pelo corredor, o jovem percebeu que a neve parara. No pátio, sob um céu negro cravejado de estrelas, fileiras de monges moviam-se como sombras em direção à igreja. Seus cantos subiam em nuvens de vapor, misturando-se à própria noite.
O ancião parou por um instante, olhando para trás, na direção da floresta. Algures entre os pinheiros, dois pontos de luz verde cintilaram e desapareceram.
— Às vezes — sussurrou, mais para si mesmo — estar perdido é o único caminho que resta.
E quando o primeiro raio de sol dourado atingiu as cúpulas do mosteiro, os três já estavam entre os outros, desaparecidos na multidão de fiéis, suas dúvidas queimando como velas perante os ícones — pequenas, frágeis, e inexplicavelmente necessárias.
O primeiro raio de sol atravessou os vitrais como uma espada de fogo, cortando a névoa de incenso que pairava sobre os fiéis. O jovem peregrino ajoelhou-se, mas não por devoção — suas pernas simplesmente recusaram-se a continuar sustentando-o.
— O que é isto que me esmaga? — pensou, enquanto o coro entoava os primeiros Kyrie Eleison3.
Ao seu lado, o ancião permanecia imóvel, os lábios movendo-se em sincronia perfeita com cada palavra do ofício divino, como se recitasse não uma oração, mas um pacto antigo.
O starets, de pé junto ao iconóstase, voltou-se por um momento. Seus olhos encontraram os do jovem, e no espaço de uma respiração, algo passou entre eles — não uma resposta, mas um reconhecimento.
— Tu és visto — pareciam dizer aqueles olhos profundos. E isso basta.
…
O pão quente fumegava nas mesas, mergulhado em sal e em silêncio. O jovem mastigava sem sentir o gosto.
— Padre. — Ousou perguntar ao monge sentado à sua direita — como sabem quando um peregrino encontrou o que veio buscar?
O monge, de barba grisalha e olhos claros como água de riacho, sorriu enquanto espalhava mel numa fatia de pão.
— Filho, alguns voltam para casa com passos mais leves. Outros deixam parte de si aqui, enterrada sob a neve. Ambos encontraram o que precisavam.
O ancião, ouvindo a conversa, pousou a faca com um clique suave.
— E há os que voltam ano após ano — acrescentou, limpando os dedos no pano áspero da mesa — porque aprenderam que a busca é o achado.
…
Ao meio-dia, quando os sinos dobraram pela sexta hora, os peregrinos reuniram seus mantos à porta do mosteiro. O jovem ajustou a mochila nos ombros, sentindo-a inexplicavelmente mais pesada do que quando chegara.
O starets apareceu no portão, segurando um pequeno ícone embrulhado em linho.
— Leva isto — disse, entregando-o ao jovem. — Não para te lembrar de Deus, mas para te lembrar que Ele nunca esquece de ti.
O ancião já estava a alguns passos à frente, seu cajado marcando o ritmo lento na estrada empoeirada. O jovem apressou-se para alcançá-lo.
— Para onde vamos agora? — perguntou, embora soubesse que nenhuma resposta seria suficiente.
O velho peregrino apontou para o horizonte, onde nuvens escuras se acumulavam sobre a floresta.
— Para a próxima pergunta, rapaz. Sempre para a próxima pergunta.
E quando olharam para trás pela última vez, o Mosteiro Troitse-Porsmalov já parecia uma miragem — dourado e distante, como um sonho que persistisse teimosamente no limiar da memória, recusando-se a ser totalmente lembrado ou totalmente esquecido.
Alexei parou no meio do caminho, o ícone do starets apertado contra o peito. O vento agitava seu manto como se tentasse levá-lo de volta.
— Alexei! — chamou o Ancião, sem se virar, sua voz carregada de uma estranha urgência. — A neve não espera pelos indecisos.
Mas Alexei não podia mover-se. Algo dentro dele rachava como o gelo do rio na primavera.
— E se eu nunca encontrar as respostas? — Suas palavras saíram em uma nuvem branca, dissolvendo-se no ar frio.
O ancião finalmente voltou-se, seus olhos queimando com uma luz que Alexei nunca vira antes.
— Então você as carregará consigo, como o fogo que não se apaga, como a cicatriz que não some. E um dia, sem perceber, será a resposta que outros procurarão.
O vento silvou entre os pinheiros, trazendo o eco distante dos sinos do mosteiro — uma última bênção, um último adeus.
Alexei respirou fundo, sentindo o nome que o starets sussurrara em seu ouvido ao se despedirem:
— Alexei. Portador da dor alheia. Aquele que permanece.
E então, sob o céu que escurecia, os dois peregrinos seguiram adiante, seus passos deixando marcas efêmeras na neve fresca — breves testemunhas de que, por um momento, alguém havia passado por ali, buscando, duvidando, crendo.
O mosteiro desapareceu atrás das árvores. A estrada abria-se à frente. E em algum lugar entre o silêncio e o uivo do lobo, entre a dúvida e a fé, Alexei finalmente compreendeu:
A jornada nunca termina. Apenas transforma-se.
E isso era suficiente.
- O kvass é uma bebida fermentada, feita originalmente com pão de centeio, água e ervas. Seu nome, no idioma original, é квас e significa justamente “fermento”. O processo de fabricação é semelhante ao da cerveja, mas esta iguaria tem um teor alcoólico muito baixo, que geralmente varia entre 0,05 e 1,44%.[↩]
- Em russo, “starets” (старец) significa “ancião” ou “pai espiritual” e é um termo que se refere a um líder espiritual carismático dentro da tradição monástica ortodoxa oriental[↩]
- “Kyrie Eleison” é uma oração cristã de origem grega que significa “Senhor, tende piedade”. É uma expressão de súplica e arrependimento, usada em várias tradições cristãs, incluindo a católica, ortodoxa, anglicana e luterana. [↩]
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