Capítulo 24 - Faz o ‘L’ e posta no TikTok
“Não precisamos tomar o poder…” — as palavras de Jabá ecoavam na mente de ‘Che’ como um mantra herético.
— Porque já o têm — completou o jovem mártir latino reencarnado, compreendendo a nova dinâmica com uma mistura de admiração e horror ideológico.
A sindicalista sorriu satisfeita, como uma professora orgulhosa de um aluno excepcionalmente rápido. O guerrilheiro reencarnado observou aquela mulher com fascínio mórbido.
Ela representava tudo o que ele combateu em vida, mas fazia isso enquanto usava seus mesmos símbolos e linguagem. Era como ver a revolução transformada em uma paródia bem-sucedida de si mesma.
A sindicalista circulou pela sala com passos deliberadamente lentos, como uma predadora estudando sua presa antes do bote final. Seus dedos gordos deslizaram pela superfície polida da mesa de mogno enquanto ela calculava quanto poderia extrair mais daquele jovem idealista que havia aparecido tão convenientemente em sua porta.
— Exatamente! — Jabá contornou a mesa, aproximando-se perigosamente — Agora me conte mais sobre você. Não é todo dia que aparece um revolucionário com menos de 18 de anos com nome de guerrilheiro morto.
“Che” entendeu que, para ganhar acesso aos recursos sindicais, precisava fingir o que nenhum revolucionário jamais ousou: remorso. Cruzou os braços, ajeitou a boina e forçou a expressão mais rara da esquerda: o olhar de autocrítica sincera, algo tão improvável quanto um socialista pagando conta no bar.
— Companheira… estive refletindo sobre o inigualável… E histórico Che Guevara — começou ele, sentindo uma estranha sensação ao falar de si mesmo na terceira pessoa, como se falasse de um parente folclórico e não dele mesmo — Um sujeito cheio de boas intenções.
— Na Bolívia? — disse, apertando os olhos como quem cava na alma à força e continuo lembrando de uma derrota amarga… tão amarga que faria até Marx pedir férias remuneradas no mítico e paradisíaco Morro de São Paulo na Bahia ou quase tão amarga quanto morder uma granada achando que era jabuticaba.
— Teve um erro de avaliação… — falou, olhando pro teto como quem pede ajuda aos deuses socialistas — erro porque o grande comandante, coitado, ainda acreditava que o latino-americano era revolucionário por natureza… Culpa de quem? Culpa dele? Ou do povo que não estava à altura e vendeu a alma como quem se vende por um carnezinho gostosinho em pequenas parcelas no Magazine Luiza?
Jabá arregalou tanto os olhos que parecia pronta pra ver a revolução descer do céu de bandeira e tudo. Mordeu o lábio inferior, quase salivando de emoção. A análise histórica? Para ela, parecia aviso de elevador: entrava por um ouvido e saía pelo outro sem nem parar no térreo.
O que a arrebatava mesmo era o olhar dramático do Che, o timbre grave da voz e aquelas mãos grandes que, a cada gesto, pareciam desenhar no ar revoluções que ela queria abraçar, ou, quem sabe, morar dentro.
— E… a prática? — perguntou Jabá, puxando uma cadeira com tanta pressa que parecia prestes a abrir um sindicato só pra poder ficar ali plantada. Sentou-se tão próxima que seus joelhos robustos tentavam fundir nos dele por osmose revolucionária.
Não perguntou para ouvir resposta nenhuma, queria era que ele continuasse falando, pra ter mais desculpa pra se embriagar em mais um capítulo daquela novela épica que passava entre as sobrancelhas dramáticas e os gestos de cinema mudo do rapaz, cada um arrepiando até a espinha dorsal da luta de classes.
— A prática… — prosseguiu o revolucionário, realizando uma dolorosa mas necessária autocrítica — mostrou que o povo prefere picanha e cerveja a revoluções intermináveis. Uma triste lição para o espírito elevado do grande heroi e Comandante inigualável Guevara.
— Meu Deus, onde seus pais encontraram tanta literatura marxista para te dar? — ela sussurrou, inclinando-se ainda mais com seus olhos brilhando com um interesse carnal mal disfarçado — Estou impressionada, ‘bebê Che’.
— Autodidata — respondeu ele, automaticamente — A revolução começa com a educação.
— A revolução começa na cama! — corrigiu Jabá com uma risada rouca — Mas antes… que tal a gente trocar experiências revolucionárias? Eu conto uma história de luta, você conta outra. Só pra aquecer o espírito revolucionário… e o resto também, né? — emendou, mais preocupada em manter o rapaz falando do que com qualquer linha histórica.
“Nem precisa fazer sentido, só continua falando aí, revolucionário lindo!” — pensou, mas quase deixou escapar em voz alta e sem esperar resposta, ela começou seu relato com o entusiasmo de quem conta uma proeza esportiva:
— Uma vez, cortei meu próprio dedo durante uma assembleia só para conseguir aposentadoria por invalidez! — declarou, mostrando orgulhosamente o dedo mínimo faltando metade da falange — Sangue para a causa, literalmente!
‘Che’ engoliu em seco, dividido entre horror e admiração pela dedicação pragmática da mulher.
— Impressionante — comentou, pensando rapidamente em como competir com aquela história sem revelar sua verdadeira identidade — Eu… uma vez invadi um bordel capitalista para libertar as trabalhadoras do sexo da opressão patriarcal!
Não era tecnicamente mentira. As memórias do patético Quintus forneciam material suficiente sobre um episódio autêntico de sua juventude bêbada: a noite gloriosa em que, encantado pela primeira mulher que lhe sorriu no puteiro Bostil, prometeu arrancá-la daquele mundo e construir uma vida de amor e muitos boletos não pagos.
Tentou puxá-la pela mão, tropeçou em cadeiras e foi arremessado pra fora pelo segurança. No fundo, a mentira atual era só uma reedição com maquiagem ideológica.
— Haha! Adorei a ‘reinterpretação revolucionária’ de uma ida ao puteiro! — gargalhou Jabá, dando um tapa no joelho do jovem herói de boina — Mas isso não é nada! Visito semanalmente um velho político na prisão, o alimentando com promessas. Quando ele sair, se tornará nosso maior aliado… ou minha maior apólice de seguro. Afinal, ele tem milhões escondidos que só ele sabe onde estão!
— Estratégico! — comentou ‘Che’, admirando a frieza — A revolução precisa de aliados com data de validade. Especialmente aqueles que acham que vão dividir o poder, mas acabam dividindo só o patrimônio e os recursos estratégicos.
— E sabe pra que serve o imposto sindical? — ela falou como quem revela plano de governo — Pra investir em cultura: já rodei sete vezes todo o mundo provando caipirinha…Já representei a classe trabalhadora sambando na Índia, rodopiando no México, saltitando em Paris e comprando vestido que parece cortina de motel cinco estrelas!
O revolucionário pensou no quanto seus companheiros de Sierra Maestra teriam se horrorizado com tal uso dos recursos da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, não pôde deixar de admirar a eficiência com que essa mulher havia transformado ideais revolucionários em conforto pessoal sem perder o discurso.
— A verdadeira revolução está nos pequenos detalhes — filosofou ‘Che’, tentando mascarar seu desconforto moral — Como diria Marx, de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade.
— E eu necessito MUITO! — completou Jabá com uma piscadela conspiratória — Sua vez, ‘bebê Che’. Conte-me sua maior façanha revolucionária.
O jovem revolucionário exilado no tempo hesitou. Não podia revelar sua verdadeira identidade, mas precisava impressioná-la o suficiente para ganhar acesso aos recursos sindicais. Decidiu, então, misturar suas próprias histórias com as memórias disponíveis de Quintus.
— Certa vez — começou ele, adotando um tom confidencial — organizei uma… ocupação temporária de uma instituição capitalista de luxo. Digamos que um bilionário teve seus privilégios estrategicamente redistribuídos.
Jabá inclinou-se ainda mais, seus olhos brilhando com uma mistura de admiração e algo que parecia perigosamente próximo ao desejo.
— Venha cá, revolucionário! — chamou ela, batendo em seu próprio colo volumoso como quem chama um gato para um afago — Tenho mais histórias para compartilhar… mais intimamente.
‘Che’ avaliou rapidamente suas opções táticas. Por um lado, sentar no colo daquela mulher parecia uma afronta à sua dignidade revolucionária. Por outro, a causa exigia sacrifícios, e ele precisava daqueles recursos sindicais para sua vingança contra a jovem capitalista que havia humilhado o corpo que agora habitava.
“A revolução exige sacrifícios” — pensou, levantando-se com a solenidade de quem marcha para o pelotão de fuzilamento.
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