Índice de Capítulo

    — Pelo jeito, eu fico uma semana sem aparecer e as coisas viram uma bagunça.

    Anayê limpou os olhos e bocejou.

    — Mestre? — indagou se esforçando para acordar.

    O velho estava jogando algumas roupas sujas pela janela com seu cajado.

    Anayê se espreguiçou e levantou em seguida.

    — Onde você estava?

    — Cuidando dos meus afazeres. Sabia que você estava em boas mãos. Só não sabia que era tão desorganizada.

    — Me desculpe, estive tão focada no treinamento que não me preocupei com mais nada.

    A garota abriu a porta e se dirigiu ao lago para lavar o rosto.

    — Esteve muito atarefado, né? Pois você sumiu por uma semana! — ela reclamou.

    — E você? O que estava fazendo? Pelo visto, obteve sucesso com os postes — o velho comentou observando as marcas de adagas na madeira.

    — Espere só pra ver, aprendi uma habilidade incrível.

    — Oh, isso será bem útil.

    — Como assim? — Anayê perguntou enxugando o rosto numa toalha.

    — Venha, Nally.

    Uma garotinha sardenta com cabelos curtos e cacheados veio correndo na direção deles.

    — Olá — a menina disse.

    Anayê cumprimentou também e depois fitou o mestre.

    — Preciso que cuide da pequena Nally hoje.

    — Como é?

    — Apenas um dia — o velho revelou. — Nada demais.

    — Vou me comportar, eu prometo — Nally falou de maneira infantil.

    — E o meu treinamento? — Anayê perguntou.

    — Já falei com Chokhmáh, e ela pediu apenas para te entregar isso — o mestre retirou um livro pequeno de sua túnica.

    Anayê pegou o objeto de capa de couro de baixa qualidade e leu o nome: Manual Prático para Derrotar Uma Aberração.

    — Faz parte do seu próximo treinamento — o velho falou tentando animá-la. — Você pode ler enquanto cuida da pequena Nally.

    — Meu próximo treinamento é ler e… — ela se segurou para falar de Nally.

    — Conhecimento — o mestre corrigiu. — A vida de um ceifador não consiste apenas de batalhas contra monstros, mas também de alguma diplomacia e informação. Por exemplo,  como você identificaria que tipo de criatura está caçando?

    Anayê fez uma careta com a boca procurando essa resposta, mesmo sem saber.

    — E, se por sorte identificasse a aberração, como faria para derrotá-la?

    Ela pensou em dizer: “com minha rajada de vento cortante”. No entanto, não era toda a verdade, pois sua habilidade especial não cortava tudo.

    — Qual é o ponto fraco de uma aberração? Como elas lutam? Onde costumam se esconder? O que você faria se fosse atacada de surpresa? Tem alguma defesa em mente?

    — Tá legal, tá legal — ela ergueu a mão. — Já entendi.

    — Que ótimo. Então fico grato por sua colaboração. Vejo vocês à tarde.

    — Até logo, mestre — Nally se despediu.

    — Se comporte direito.

    Assim que o mestre saiu pela porta, Anayê fitou a menina por alguns segundos e se seguiu um silêncio entre elas.

    — Hã… huuum… você já comeu?

    Nally assentiu.

    Anayê buscou assuntos para tentar conversar, mas percebeu que poucas vezes tivera contato com uma criança. O que deveria falar?

    Ela coçou a testa e ajeitou uma mecha de cabelo.

    — Você também foi resgatada pelo mestre? — Nally questionou.

    — De certa forma, sim.

    — Eu também, mas ainda não posso me tornar uma ceifadora.

    — Esse é seu desejo? Se tornar uma ceifadora?

    Nally concordou e contou:

    — Todo o meu vilarejo foi atacado e meus conhecidos foram mortos. Então a Thayala apareceu e derrotou todos os monstros.

    Anayê notou um brilho particular refletido nos olhos da menina e reconheceu aquele tipo de admiração.

    — Por isso, quero ser forte como ela. Me tornar a mais poderosa ceifadora do mundo — Nally disse com um tom confiante. — Mas o mestre disse que preciso crescer mais porque ser ceifador é uma responsabilidade muito grande.

    — Quantos anos você tem?

    — Dez.

    — Então logo será a sua vez.

    “E ainda bem que você não precisa esperar enquanto vive uma vida de escrava”, Anayê pensou.

    — Gostaria que fosse mais rápido — Nally comentou. — O tempo passa devagar, às vezes.

    — Na verdade, você pode aproveitar enquanto o tempo passa devagar. Ser uma criança é algo muito especial e viver com o mestre e as outras crianças torna tudo ainda mais legal.

    — Sim, morar com eles me faz lembrar de casa. No meu vilarejo, haviam muitas crianças e a gente brincava nas cavernas e nas cachoeiras. Era muito divertido.

    — Tenho certeza que sim! Eu brincava muito de esconder na floresta. E eu era a melhor nesse jogo.

    Os olhos de Anayê desbravam os céus e sua mente viajou por poucos segundos até a infância, mas ela se desvencilhou da memória e notou o mesmo tipo de semblante em Nally.

    Quando a menina percebeu que Anayê a fitava, virou o rosto para o lago.

    Anayê abriu um curto riso.

    — Sente falta deles, né?

    A garotinha não respondeu.

    — Eu sinto — Anayê continuou. — E, às vezes, é como se o meu peito pegasse fogo.

    Nally voltou a atenção para ela.

    — Também sonho com a minha casa e isso me deixa triste de manhã — Prosseguiu e se aproximou da menina. — Mas, agora, com a presença do mestre, Thayala, Boyak e as crianças, faz com que a lembrança seja menos dolorida.

    — Acho que é assim comigo também — Nally admitiu.

    Anayê depositou uma mão no ombro da menina e falou:

    — É porque a nossa casa pode ter sido destruída, mas aprendi que podemos reconstruir.

    Nally concordou.

    — Então eu vou me tornar ceifadora e vou esperar você para juntas derrotarmos os monstros.

    — Parece uma ideia legal.

    Anayê se abaixou e mostrou o dedo mínimo, mas Nally franziu o cenho.

    — O que é isso?

    — Na minha vila, ao fazer um juramento, a gente entrelaçava os dedos — Anayê explicou.

    Nally gostou do gesto e, rapidamente, juntou seu dedo ao de sua mais nova amiga.

    — Agora está jurado.

    — Está jurado.

    Anayê se levantou e disse:

    — Bem, eu preciso estudar esse livro para meu treinamento. Enquanto isso, você pode… sei lá, inventar alguma brincadeira.

    — Pode deixar. Eu não vou atrapalhar o seu treinamento.

    — Obrigada.

    Anayê se ajeitou na cadeira do lado de fora e começou a folhear o livro. Nally saiu correndo pelo local tal qual uma criança explorando um lugar novo e deixando sua imaginação ditar seus passos.

    O livro separava as aberrações por nível de perigo e isso era definido de acordo com seu poder. Entre os mais perigosos estavam os demônios e o próprio Astaroth, e logo abaixo deles, os generais do lorde sombrio. Já os mais fracos eram as aberrações menores ou inferiores, como os maggs, os gors, os gritadores e os farejadores.

    Anayê procurou o registro da garota pálida, a aberração responsável pela morte de sua mãe, mas não encontrou informações. Ficou um pouco desapontada.

    — Ahhhhhhh!

    Ela saltou da cadeira e arregalou os olhos.

    — Nally?!

    Deixou o livro para trás e correu ao redor da casa com o olhar desesperado à procura da criança. O que havia acontecido? Não se lembrava de nenhum lugar perigoso para uma menina se aventurar.

    Assim que alcançou a parte traseira, viu Nally correndo do lago em sua direção. A menina acabou tropeçando nos pés e caindo no chão.

    Os olhos de Anayê se depararam com uma cabeça saindo do lago e ela segurou a respiração.

    O corpo curvado do monstro se projetou para fora da água e várias gotas pingavam de seus joelhos dobrados. Seus dedos cumpridos se arrastavam na areia formando uma cicatriz no chão.

    Anayê engoliu a saliva e reconheceu a aberração, pois já tinha visto uma criatura assim durante sua fuga com Boyak pelas terras de Astaroth. Era um farejador.

    É muito bom ter você aqui!
    Espero que esteja curtindo a jornada de Anayê para se tornar uma ceifadora.

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