Capítulo 63 - A Garota Sardenta e A Garota Libertada
— Pelo jeito, eu fico uma semana sem aparecer e as coisas viram uma bagunça.
Anayê limpou os olhos e bocejou.
— Mestre? — indagou se esforçando para acordar.
O velho estava jogando algumas roupas sujas pela janela com seu cajado.
Anayê se espreguiçou e levantou em seguida.
— Onde você estava?
— Cuidando dos meus afazeres. Sabia que você estava em boas mãos. Só não sabia que era tão desorganizada.
— Me desculpe, estive tão focada no treinamento que não me preocupei com mais nada.
A garota abriu a porta e se dirigiu ao lago para lavar o rosto.
— Esteve muito atarefado, né? Pois você sumiu por uma semana! — ela reclamou.
— E você? O que estava fazendo? Pelo visto, obteve sucesso com os postes — o velho comentou observando as marcas de adagas na madeira.
— Espere só pra ver, aprendi uma habilidade incrível.
— Oh, isso será bem útil.
— Como assim? — Anayê perguntou enxugando o rosto numa toalha.
— Venha, Nally.
Uma garotinha sardenta com cabelos curtos e cacheados veio correndo na direção deles.
— Olá — a menina disse.
Anayê cumprimentou também e depois fitou o mestre.
— Preciso que cuide da pequena Nally hoje.
— Como é?
— Apenas um dia — o velho revelou. — Nada demais.
— Vou me comportar, eu prometo — Nally falou de maneira infantil.
— E o meu treinamento? — Anayê perguntou.
— Já falei com Chokhmáh, e ela pediu apenas para te entregar isso — o mestre retirou um livro pequeno de sua túnica.
Anayê pegou o objeto de capa de couro de baixa qualidade e leu o nome: Manual Prático para Derrotar Uma Aberração.
— Faz parte do seu próximo treinamento — o velho falou tentando animá-la. — Você pode ler enquanto cuida da pequena Nally.
— Meu próximo treinamento é ler e… — ela se segurou para falar de Nally.
— Conhecimento — o mestre corrigiu. — A vida de um ceifador não consiste apenas de batalhas contra monstros, mas também de alguma diplomacia e informação. Por exemplo, como você identificaria que tipo de criatura está caçando?
Anayê fez uma careta com a boca procurando essa resposta, mesmo sem saber.
— E, se por sorte identificasse a aberração, como faria para derrotá-la?
Ela pensou em dizer: “com minha rajada de vento cortante”. No entanto, não era toda a verdade, pois sua habilidade especial não cortava tudo.
— Qual é o ponto fraco de uma aberração? Como elas lutam? Onde costumam se esconder? O que você faria se fosse atacada de surpresa? Tem alguma defesa em mente?
— Tá legal, tá legal — ela ergueu a mão. — Já entendi.
— Que ótimo. Então fico grato por sua colaboração. Vejo vocês à tarde.
— Até logo, mestre — Nally se despediu.
— Se comporte direito.
Assim que o mestre saiu pela porta, Anayê fitou a menina por alguns segundos e se seguiu um silêncio entre elas.
— Hã… huuum… você já comeu?
Nally assentiu.
Anayê buscou assuntos para tentar conversar, mas percebeu que poucas vezes tivera contato com uma criança. O que deveria falar?
Ela coçou a testa e ajeitou uma mecha de cabelo.
— Você também foi resgatada pelo mestre? — Nally questionou.
— De certa forma, sim.
— Eu também, mas ainda não posso me tornar uma ceifadora.
— Esse é seu desejo? Se tornar uma ceifadora?
Nally concordou e contou:
— Todo o meu vilarejo foi atacado e meus conhecidos foram mortos. Então a Thayala apareceu e derrotou todos os monstros.
Anayê notou um brilho particular refletido nos olhos da menina e reconheceu aquele tipo de admiração.
— Por isso, quero ser forte como ela. Me tornar a mais poderosa ceifadora do mundo — Nally disse com um tom confiante. — Mas o mestre disse que preciso crescer mais porque ser ceifador é uma responsabilidade muito grande.
— Quantos anos você tem?
— Dez.
— Então logo será a sua vez.
“E ainda bem que você não precisa esperar enquanto vive uma vida de escrava”, Anayê pensou.
— Gostaria que fosse mais rápido — Nally comentou. — O tempo passa devagar, às vezes.
— Na verdade, você pode aproveitar enquanto o tempo passa devagar. Ser uma criança é algo muito especial e viver com o mestre e as outras crianças torna tudo ainda mais legal.
— Sim, morar com eles me faz lembrar de casa. No meu vilarejo, haviam muitas crianças e a gente brincava nas cavernas e nas cachoeiras. Era muito divertido.
— Tenho certeza que sim! Eu brincava muito de esconder na floresta. E eu era a melhor nesse jogo.
Os olhos de Anayê desbravam os céus e sua mente viajou por poucos segundos até a infância, mas ela se desvencilhou da memória e notou o mesmo tipo de semblante em Nally.
Quando a menina percebeu que Anayê a fitava, virou o rosto para o lago.
Anayê abriu um curto riso.
— Sente falta deles, né?
A garotinha não respondeu.
— Eu sinto — Anayê continuou. — E, às vezes, é como se o meu peito pegasse fogo.
Nally voltou a atenção para ela.
— Também sonho com a minha casa e isso me deixa triste de manhã — Prosseguiu e se aproximou da menina. — Mas, agora, com a presença do mestre, Thayala, Boyak e as crianças, faz com que a lembrança seja menos dolorida.
— Acho que é assim comigo também — Nally admitiu.
Anayê depositou uma mão no ombro da menina e falou:
— É porque a nossa casa pode ter sido destruída, mas aprendi que podemos reconstruir.
Nally concordou.
— Então eu vou me tornar ceifadora e vou esperar você para juntas derrotarmos os monstros.
— Parece uma ideia legal.
Anayê se abaixou e mostrou o dedo mínimo, mas Nally franziu o cenho.
— O que é isso?
— Na minha vila, ao fazer um juramento, a gente entrelaçava os dedos — Anayê explicou.
Nally gostou do gesto e, rapidamente, juntou seu dedo ao de sua mais nova amiga.
— Agora está jurado.
— Está jurado.
Anayê se levantou e disse:
— Bem, eu preciso estudar esse livro para meu treinamento. Enquanto isso, você pode… sei lá, inventar alguma brincadeira.
— Pode deixar. Eu não vou atrapalhar o seu treinamento.
— Obrigada.
Anayê se ajeitou na cadeira do lado de fora e começou a folhear o livro. Nally saiu correndo pelo local tal qual uma criança explorando um lugar novo e deixando sua imaginação ditar seus passos.
O livro separava as aberrações por nível de perigo e isso era definido de acordo com seu poder. Entre os mais perigosos estavam os demônios e o próprio Astaroth, e logo abaixo deles, os generais do lorde sombrio. Já os mais fracos eram as aberrações menores ou inferiores, como os maggs, os gors, os gritadores e os farejadores.
Anayê procurou o registro da garota pálida, a aberração responsável pela morte de sua mãe, mas não encontrou informações. Ficou um pouco desapontada.
— Ahhhhhhh!
Ela saltou da cadeira e arregalou os olhos.
— Nally?!
Deixou o livro para trás e correu ao redor da casa com o olhar desesperado à procura da criança. O que havia acontecido? Não se lembrava de nenhum lugar perigoso para uma menina se aventurar.
Assim que alcançou a parte traseira, viu Nally correndo do lago em sua direção. A menina acabou tropeçando nos pés e caindo no chão.
Os olhos de Anayê se depararam com uma cabeça saindo do lago e ela segurou a respiração.
O corpo curvado do monstro se projetou para fora da água e várias gotas pingavam de seus joelhos dobrados. Seus dedos cumpridos se arrastavam na areia formando uma cicatriz no chão.
Anayê engoliu a saliva e reconheceu a aberração, pois já tinha visto uma criatura assim durante sua fuga com Boyak pelas terras de Astaroth. Era um farejador.
É muito bom ter você aqui!
Espero que esteja curtindo a jornada de Anayê para se tornar uma ceifadora.
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