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    O nevoeiro parecia feito de vidro trincado. Fragmentos de gelo boiavam como ossos no mar, e os mastros negros do Escárnio de Ferro cortavam as nuvens baixas em silêncio. Nenhum pássaro. Nenhuma canção. Apenas o rangido do casco atravessando a água congelada.

    Era o som que estava acostumado desde sua vitória.

    O Bastardo observava em silêncio. Encapuzado, de pé na proa, as mãos ocultas nas mangas. Seus olhos — dois cacos âmbar cravados num rosto duro — fitavam a silhueta distante da Prisão Onkotho surgindo entre os vapores. As torres inclinadas, cercadas por picos de gelo esbranquiçados, lembravam dentes corroídos.

    Um lugar que por muito tempo teve outro nome em sua mente.

    — Capitão? — disse um dos vigias, hesitante. — Confirmamos os sinais térmicos vindo do setor leste da prisão. Mas… algo nos sensores está instável. Parece… distorcido.

    O Bastardo não respondeu de imediato. Moveu os olhos para o bracelete metálico em seu pulso esquerdo. Um leve brilho âmbar pulsava, mas era fraco. Inconstante.

    — A Pedra Solar… — ele murmurou, como se falando para si mesmo. — Ontem, quase queimou os ossos de um desertor. Hoje, mal acende.

    Retirou o bracelete com calma. Pesado. O cristal preso ao centro parecia mais opaco do que na última noite. Com os dedos, girou lentamente a superfície circular. Nenhuma reação. Nenhum calor.

    — Oscilação energética? Interferência? Ou sabotagem? — perguntou, olhando para trás. Um dos oficiais hesitou, mas ninguém respondeu.

    O Bastardo então virou-se, encarando o restante da tripulação no convés.

    — O que vocês temem está dentro daquela prisão. Eu, não. — Sua voz cortou o frio como aço. — Mas agora quero saber se essa oscilação… é um sinal do que nos espera, ou do que já começou.

    Silêncio. Ninguém ousou sugerir que recuassem.

    — Iniciem o protocolo gélido — ordenou. — Nenhuma emissão de calor. Vamos nos aproximar como uma sombra. Se os guardas lá dentro ainda servem à Coroa, vão nos abrir as portas. Se não…

    Fez uma pausa, olhando novamente para a Pedra adormecida.

    — …vamos forçá-las. Mesmo com esta coisa falhando, ainda temos aço e pólvora.

    Enquanto o Escárnio de Ferro mergulhava lentamente entre as camadas de gelo quebrado, os olhos do Bastardo não deixaram a prisão. Era como se buscasse algo invisível entre as paredes tortas, como se já soubesse que as respostas não estavam no cristal — mas nas ruínas onde os gritos haviam sido esquecidos.

    As ondas tornaram-se rasas e silenciosas conforme se aproximavam. O Escárnio de Ferro parecia curvar-se à presença da prisão, sua estrutura dobrando-se sutilmente como se o próprio casco respirasse. Para quem observava da costa, o navio era uma miragem disforme: ora real, ora embaçado pelas brumas que cobriam o mar como um véu. Mas mesmo envolto em névoa, havia algo de inegavelmente ameaçador naquela embarcação — como se seu próprio silêncio gritasse.

    Quando o Escárnio cruzou a linha de pedra que separava o oceano das docas, duas das torres de vigia da prisão Onkotho acenderam seus sinos em chamas. O dourado cintilante no topo misturou-se ao vermelho intenso das labaredas, escorrendo pelas laterais das torres como sangue quente em mármore frio, até tocar o chão de pedra com lentidão ritualística.

    O Bastardo aproximou-se da borda da embarcação. Manteve as mãos cruzadas atrás das costas, os olhos fixos na movimentação adiante. Soldados surgiam nas ameias, nos muros, e aos poucos desciam para a parte inferior da prisão. As sombras se acumulavam em pontos estratégicos, como se já tivessem treinado para essa recepção.

    O Escárnio de Ferro não era um dos maiores navios dos mares, mas carregava uma aura de comando que sufocava dúvidas. Um cão pequeno com dentes de aço.

    — Nós vamos descer — disse o Bastardo assim que atracaram. Sua voz não precisava ser alta. Bastava o tom. A prancha foi abaixada com precisão militar, rangendo em contato com o cais. — Cloud, comigo. Os demais, mantenham-se preparados.

    Sem pressa, ele iniciou a descida até a base do navio. O ar ali era mais seco, mais denso. Os ventos sopravam mais cortantes do que no mar aberto, e tinham o gosto amargo das celas.

    Como diziam os antigos: em terra firme, tudo é mais difícil. Até mesmo o frio.

    Quando sua bota tocou o solo de pedra, o som ressoou alto, como um desafio. No mesmo instante, as armas se ergueram. Trinta ou quarenta carabinas velhas, com canos oxidados pelo sal e pelo tempo, apontavam diretamente para ele.

    Todas idênticas. Todas gastas. Todas letais.

    E nenhuma o fez hesitar.

    — Essas armas são perigosas — disse o Bastardo, encarando um por um, os olhos deslizando com frieza pelas miras alinhadas. — Se puxarem os gatilhos, colocarão em risco a vida de todos neste oceano. Não só a de vocês… mas de cada ser humano que ainda respira neste inferno gelado.

    Fez uma breve pausa.

    — Afinal, quem em sã consciência atiraria no atual Rei do Leste?

    O impacto de suas palavras não foi imediato. Foi lento, corrosivo. Como o sal entrando em feridas abertas.

    As expressões nos rostos dos soldados começaram a mudar, uma a uma. Alguns franziram o cenho, outros desviaram o olhar, procurando um superior que lhes desse uma ordem — qualquer ordem — para se apoiarem. Nas torres, o mesmo desconcerto se espalhava, como fumaça após um disparo. Nenhum deles parecia ter coragem suficiente para tomar a decisão que, até segundos atrás, parecia óbvia.

    Porque um nome muda tudo. Porque um título pesa mais que a razão de estarem com armas erguidas.

    — Bastardo, não é? — veio uma voz grossa, vinda do centro da passarela que ligava o cais ao portão principal da prisão. Ela chegou antes mesmo do som dos passos. — Ouvi seu nome. Mas seu rosto… esse não me parece estranho. Se não me falha a memória, passou um tempo no navio do velho Bulianto, estou certo?

    O Bastardo não respondeu de imediato. Respirou fundo, seus olhos semicerrando por um instante. A brisa que vinha da muralha da prisão carregava o cheiro de suor e ferro oxidado — e agora, de reconhecimento indesejado.

    Gladius. O homem que ele esperava encontrar do outro lado dos portões… e não ali fora.

    O comandante da prisão surgiu em completo silêncio, sem necessidade de escolta. Seu corpo era imenso, com ombros largos e músculos grossos que pareciam talhados em pedra bruta. A pele escura e firme cobria um rosto severo, sem traço algum de humor. Seus olhos fundos, quase soterrados em sombras, observavam o Bastardo como se estivessem vendo através dele.

    — Até mesmo os deuses sangram — disse Gladius, sem pressa, sem elevar a voz. — E pensar que o filhote mais velho de um rei viria até aqui. Não pelos motivos corretos, imagino.

    Havia uma secura cruel em sua fala. Um desdém velado, mas não provocativo. Era só a verdade, cravada em pedra.

    O Bastardo não se moveu, mas algo em seu semblante pareceu pesar por um breve momento. Não pelo medo. Mas pela memória. Estava na hora de ter uma conversa com um homem irritante.

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