Capítulo 31 - Vou pedir tia Nimsay em casamento!
A tristeza grudou no Quintus igual roupa em corpo suado no Carnaval de Salvador. Agora, sem o caos familiar para distraí-lo, estava completamente vulnerável ao olhar inquisitorial de sua mãe.
O olhar da Glorizelda era tipo o do Datena ouvindo ‘suspeito tentou fugir’: indignado, dramático, pronto para prender até o cachorro e, se precisasse, encerrar a discussão com uma cadeirada, como quem saca o último argumento na base do móvel. Para o jovem Maximus, era semelhante a ter sua alma vasculhada por um detector de mentiras ambulante com permanente químico nos cabelos.
O silêncio que se seguiu era tão espesso que parecia caldo de mocotó em dia frio, e Quintus estava atolado até o pescoço, sob o olhar da mãe que fedia a interrogatório da Polícia Federal.
O celular de Glorizelda começou a apitar incessantemente. Ela o tirou da bolsa e olhou para a tela com desprezo.
— Bando de urubus! — exclamou, dedos voando sobre o teclado — Todo mundo querendo saber o que aconteceu, no teatrinho digno de novela ruim, bancando os preocupados. Já estão espalhando que você fugiu de casa para se juntar a uma seita! Vou colocar esses fofoqueiros no lugar deles.
Quintus observou, horrorizado, enquanto sua mãe digitava furiosamente o que parecia ser um comunicado oficial para o grupo da família no WhatsApp. Seus lábios se moviam silenciosamente enquanto escrevia, e ocasionalmente ela sorria de forma maníaca.
— Pronto! — anunciou finalmente, guardando o celular — Agora todos sabem que você teve uma leve indisposição nervosa devido ao estresse dos estudos e que está descansando sob os cuidados especializados do renomado Dr. Zaratustra, que coincidentemente é também um velho amigo da família e padrinho do seu tio por parte de mãe.
— Mas nada disso é verdade. — murmurou Quintus, ainda tentando organizar seus pensamentos.
— Claro que não é verdade! — ela revirou os olhos como se a constatação fosse óbvia — Se eu contasse a verdade, seu tio Geraldo teria um material para me infernizar pelos próximos dez Natais! Você acha que eu daria esse gostinho para aquele invejoso?
Ela se sentou na beira da cama, subitamente séria. O olhar que lançou para seu filho era penetrante, no estilo de quem tenta ler cada pensamento dentro de sua cabeça confusa e finalmente perguntou:
— Agora, me diga uma coisa… quem é ela?
— Ela? — Quintus piscou, confuso.
— Não se faça de desentendido! — Glorizelda estreitou os olhos — A namorada! Aquela que você pediu em namoro no restaurante, segundo o Dr. Zaratustra. Pediu em namoro sem me consultar! Sem me apresentar primeiro! Sem deixar eu investigar a família dela, as ex-amigas, o histórico escolar e médico!
O jovem Maximus sentiu o sangue fugir de seu rosto enquanto várias questões passavam em sua mente:
“Namorada? A última vez que alguém me chamou de amor foi a atendente da farmácia… por engano.”
— Mãe, eu juro que não sei do que você está falando. Eu não tenho namorada.
— Ah, agora vai esconder isso também? — o tom melodramático voltou com força total enquanto ela se levantava e andava de um lado para o outro do quarto — Meu próprio filho ocultando uma mulher de mim! Sabe o que são as garotas hoje em dia? Golpistas! Todas elas! Só pensam nelas mesmas! Usam garotos inocentes e bonzinhos como você!
— Mãe, eu juro pela minha coleção de mangás que não existe namorada nenhuma! — Quintus tentou se levantar, mas uma onda de tontura o forçou a voltar para o travesseiro — A pessoa que eu mais amo é você, mãe. Nunca vou substituir você.
O efeito foi imediato. Feito mágica, o drama evaporou do rosto de Glorizelda, substituído por um sorriso radiante.
— Eu sei disso, meu amor — ela disse, pousando uma mão carinhosamente e surpreendentemente delicada no rosto do filho — Mas seu amigo Leon disse que você estava com uma garota no restaurante antes de… bem, antes de tudo acontecer.
“Leon? Aquele traidor!” — pensou Quintus, fazendo uma nota mental para cobrar explicações do amigo na primeira oportunidade.
— Mãe, eu prometo, não tem nenhuma garota. — E então, tal qual um pensamento tardio: — Espera, você falou com o Leon?
— Claro que sim! Você acha que eu ia deixar uma pedra sem virar? — ela deu de ombros como se fosse a coisa mais natural do mundo — Liguei para todos os seus amigos, os pais deles, os vizinhos, o porteiro do prédio do Gustavo, e até para aquela senhora que vende pipoca na esquina da escola. A propósito, ela disse que você deve cinco reais para ela.
Quintus fechou os olhos, tentando absorver a magnitude da investigação que sua mãe havia conduzido em… quanto tempo mesmo?
— Há quanto tempo eu estou apagado?
— Vinte e quatro horas, seis minutos e… — ela consultou o relógio — trinta e dois segundos. Não que eu esteja contando.
Vinte e quatro horas. Um dia inteiro havia desaparecido de sua vida, deixando para trás apenas acusações de roubo, agressão, um suposto pedido de namoro e um diagnóstico de múltiplas personalidades. Era igual a acordar em um episódio particularmente cruel de pegadinha televisiva.
Quando Glorizelda finalmente saiu do quarto, prometendo voltar com um caldo de galinha ‘que cura tudo, até personalidades extras’, Quintus teve seu primeiro momento a sós para tentar fazer um inventário mental da situação.
“Fato número um: ele havia fugido da clínica-mansão do bilionário maluco. Fato número dois: ele tinha ganhado 500 reais para conquistar uma garota, mas acabou se empolgando e sendo enrolado por uma profissional do Job. Fato número três: depois disso, zero lembranças. Fato número quatro: aparentemente, nesse período de amnésia, ele havia se tornado um delinquente juvenil com habilidades para roubar motos e agredir motoboys. Fato número cinco: também tinha, de alguma forma inexplicável, arranjado uma namorada.”
Este último fato era o mais perturbador de todos. Em dezessete anos de vida, suas tentativas de aproximação romântica haviam resultado em uma coleção impressionante de foras, humilhações públicas e longas noites assistindo a tutoriais e influences de sedução no YouTube que só o deixavam mais confuso.
E agora, de repente, em algumas horas de inconsciência, ele havia conseguido o que anos de esforço consciente não alcançaram?
“Será que o problema sou eu?” — pensou, encarando o teto — “Basta eu não ser eu para as coisas darem certo?”
A ideia era deprimente e, ao mesmo tempo, estranhamente libertadora. Talvez o tal ‘Quintiliano’, que nome ridículo, fosse uma versão melhorada dele mesmo, sem a tendência para o desastre e o constrangimento crônico.
Seus pensamentos vagaram para Mirela, a garota por quem nutria uma paixão secreta. Bem, não tão secreta, considerando que provavelmente até a senhora da pipoca sabia disso.
Ela que se aproveitava de sua devoção, ria de suas tentativas desastradas de impressioná-la, mas de alguma forma ainda mantinha uma fagulha de esperança viva ao ser gentil ocasionalmente, principalmente quando necessitava de alguma coisa ou favor.
“Quem sabe um dia ela se cansará de todos os aproveitadores, marginais, malandros e homens egoístas que sempre estavam em volta dela.” — pensou, repassando o mesmo devaneio que havia alimentado por anos — “E então ela finalmente entenderá que eu sou o melhor para ela. Que eu, como meu pai faz com minha mãe, sempre estarei ao lado dela e nunca a abandonarei.”
A comparação com seu pai o fez estremecer. Será que era esse seu destino? Tornar-se um homem tão submisso quanto Paulo Costa, vivendo sob o domínio de uma mulher manipuladora? A imagem mental de si mesmo ajoelhado diante de Mirela, implorando perdão por um crime imaginário, era perturbadora demais para continuar.
Suas reflexões foram interrompidas quando a porta do quarto se abriu novamente. Glorizelda entrou, mas desta vez sem o caldo de galinha prometido. Em vez disso, trazia nas mãos um envelope dourado que cintilava sob a luz do quarto da mesma forma que se tivesse glitter incorporado ao papel.
— Esqueci de te dizer uma coisa, filho. — anunciou ela, sentando-se na beirada da cama — Chegou isto para você.
Ela estendeu o envelope, e Quintus o pegou com cautela, como se pudesse explodir a qualquer momento. Era pesado e tinha um selo ornamentado com as letras “I.S.” impressas em alto relevo.
— É um convite para a festa de comemoração da Illusia! — explicou Glorizelda antes mesmo que ele abrisse o envelope — Amanhã à noite. Você vai rever seus amigos e colegas do colegial, vai fazer bem para você.
— Amanhã?! — Quintus quase engasgou — Mas mãe, eu acabei de acordar de um coma ou sei lá o quê, tenho amnésia, talvez múltiplas personalidades, e aparentemente estou sendo procurado pela polícia por roubo e agressão!
— Bobagem! — disse sua mãe, dispensando todas essas preocupações com um aceno de mão, como se fossem meros inconvenientes do dia a dia — Você tem até amanhã para descansar. Já comprei uma roupa nova para você, está pendurada no armário. Você só precisa se preocupar em recuperar suas forças para aproveitar a festa.
Ela se levantou e arrumou o cobertor sobre ele com gestos precisos, da mesma forma que se estivesse embalando uma múmia.
— Quintus, querido, você precisa voltar à normalidade. A vida não vai esperar você estar pronto. — filosofou ela, ajeitando uma mecha rebelde do cabelo dele — Acabamos trocando pneu com o carro andando, entende?
Não, ele não entendia. Como poderia entender qualquer coisa nesse momento?
— Você é forte, filho! — continuou ela, com um sorriso que era uma estranha mistura de orgulho e aviso — Não é a primeira vez que passa por isso, e vai se recuperar mentalmente mais rápido do que das outras vezes.
— Outras vezes? — a pergunta escapou antes que pudesse contê-la.
— Claro! — Ela riu, do mesmo jeito que se ele tivesse contado uma piada particularmente engraçada — Mas agora, espero que não invente outra explicação esdrúxula igual a reencarnação. Apenas aceite o fato de que ocorrem esses… apagões com você. E nós, sua família, vamos lutar para resolver isso, ou pelo menos diminuir os efeitos para que você tenha uma vida cada vez mais normal.
Ela depositou um beijo em sua testa e se dirigiu à porta. Antes de sair, virou-se uma última vez:
— Ah, e querido… se acontecer qualquer coisa estranha na festa, qualquer lapso de memória ou comportamento incomum, me liga imediatamente. Não quero ter que explicar para o Dr. Zaratustra como você conseguiu roubar outro veículo.
E com essas palavras finais de conforto, ela saiu, deixando Quintus sozinho com seus pensamentos caóticos e um convite dourado para o que prometia ser mais um episódio desastroso em sua vida cada vez menos normal.
“Ótimo!” — pensou ele, encarando o envelope, tal qual se fosse um boleto vencido da Light em pleno dia de corte — “Uma festa cheia de gente que provavelmente me viu fazer algo humilhante nas últimas 24 horas, sob risco de ter um ‘episódio’ e acordar depois acusado de roubar o sistema de som ou pedir a professora Nimsay em casamento.”
Ele fechou os olhos, respirou fundo e fez a única coisa que parecia razoável naquele momento: puxou o cobertor sobre a cabeça e tentou se convencer de que, talvez, se dormisse o suficiente, acordaria em uma realidade onde sua família era normal, sua memória funcionava adequadamente, e ele não era suspeito de roubar veículos motorizados em seus momentos de amnésia.
Era um sonho bonito. Improvável, mas bonito.
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