Capítulo 34 - Confissões antes da festa da Illusia começar
“Certo, deixa eu ver se entendi…” — Quintus Maximus recitava para si mesmo, contando nos dedos como um contador paranóico conferindo se há dinheiro suficiente para sobreviver ao apocalipse.
“Tenho exatamente quatro horas…” — continuou — “Até uma garota da internet que pode muito bem ser um homem chamado Cunha com fetiche em jovens desajustados aparecer na porta da minha casa para ir a uma festa onde praticamente todo mundo já tinha me visto viralizar pelo menos três vezes com meus micos de estimação durante o ano letivo inteiro. E meu plano B é um urso gigante de pelúcia que já causou traumas coletivos na feira de ciências.”
Ele olhou para o teto do quarto como se esperasse que alguma divindade aparecesse para confirmar que tudo era apenas uma pegadinha cósmica. Nada aconteceu, exceto pelo barulho do ventilador que parecia estar tentando criar um novo idioma através de rangidos metálicos.
“Esse é exatamente o tipo de situação que meu pai me alertou sobre” — pensou enquanto pegava o celular e abria o grupo do WhatsApp intitulado ‘3 Mosqueteiros e Nenhum Juízo’, seu chat particular com Gustavo e Leon. Após contemplar o teclado por alguns segundos como se estivesse prestes a digitar códigos nucleares, criou uma videochamada.
O rosto de Gustavo apareceu primeiro na tela, tão próximo da câmera que só era possível ver parte de um olho, a ponta do nariz e metade da boca. Típico dele, filmar como se o celular fosse um microscópio.
— QUINTUS! Qual é, dessa chamada em grupo a essa hora?” — berrou o futuro cunhado Gustavo, sacudindo o celular como se estivesse tentando espantar mosquitos digitais com ele.
— Cara, afaste esse celular da sua cara. Tô vendo até os poros do seu nariz se expandindo em alta definição. — respondeu o jovem Maximus, ajustando o volume para evitar danos permanentes em seus tímpanos.
— Ah, foi mal! — Gustavo recuou, revelando finalmente parte de seu rosto e o quarto caótico atrás dele, com pôsteres de animes e uma coleção impressionante de latinhas de energético formando uma pequena torre Eiffel no canto — Estou meio paranoico hoje, por motivos que prefiro não comentar ainda.
Nesse momento, um terceiro quadrado apareceu na tela, completamente escuro.
— Leon, ou você tá numa caverna, ou esqueceu de pagar a conta de luz? — disse, inclinando-se para tentar enxergar algo na escuridão.
— Não tô a fim de mostrar minha cara hoje. — a voz familiar de Leon ressoou, rouca e com um tom claramente irritado — E antes que perguntem, não, não quero falar sobre isso também.
— Uau, vejo que o astral tá lá em cima hoje, hein? — Quintus ajeitou-se na cadeira, sentindo aquela familiar tensão no ar que aparecia quando seus amigos estavam claramente escondendo algo.
Era como tentar entender a lógica do Enem: tinha tensão, polêmica e provavelmente uma pegadinha no meio — Bom, eu chamei porque tenho uma grande notícia! Adivinhem quem conseguiu um par para a festa da Illusia?
O silêncio que se seguiu foi tão profundo que o jovem Maximus podia jurar ter ouvido o som de expectativas morrendo do outro lado da tela. Gustavo ficou tão imóvel que dava pra usar ele de cone no meio da rua, e a tela escura de Leon permanecia… bem, escura.
— Vocês ouviram o que eu disse?” — insistiu Quintus — Eu vou sair com uma garota! Não vão fazer nenhuma piadinha?
Foi então que o futuro cunhado do jovem Maximus, desde de que não avisem a Mirela, soltou uma risada tão forçada que dava pra ouvir o VAR revisando o constrangimento.
— Ah, claro! E eu sou o novo Batman! — disse ele, revirando os olhos com tanta força que parecia que iam sair rolando — Quem seria essa pessoa imaginária? Não me diga que é aquela sua amiguinha virtual… como é mesmo o nome dela? Snowflake? Snowball? Snowy?”
— ‘Snowbear!’ — corrigiu Quintus, sentindo o rosto esquentar — E sim, é ela mesma. Por coincidência, ou sei lá, coisa do destino, ela estará na cidade hoje e aceitou ir comigo.
— Hehe! — a risada que veio da tela escura de Leon foi curta e seca.
— Cara, você sabe que ‘ela’ provavelmente é um homem de 45 anos que mora no porão da mãe e coleciona figurinhas de anime em almofadas de tamanho real, né? — a voz dele soou da escuridão, como um oráculo cético entregando verdades amargas.
— Lembra da Regra 29 da internet? — complementou Gustavo, agora ajeitando os óculos como quem se prepara para dar uma palestra sobre um tema que domina completamente — Não existem mulheres na internet. São apenas homens gordos disfarçados. E se forem crianças, são agentes Federais prontos para pegar um pedófilo desavisado.
— E não venha com aquela história de que ela é diferente! — Leon interrompeu Quintus que já estava com a boca aberta para protestar — Igual da última vez, quando você jurou que tinha feito ‘amizade verdadeira’ com aquela galera do servidor de RPG.
— Ah sim, os famosos amigos virtuais! — zombou Gustavo, fazendo aspas com os dedos enquanto inclinava a cabeça como se tentasse ouvir fofoca pelo fone do vizinho — Como poderia esquecer do seu harém virtual? Aquele bando do Discord que vive dizendo ‘só falta marcar’ desde 2019, mas que nem sabe se o outro tem pernas.
— Não é um harém! — protestou, parecendo um semáforo revoltado tentando impedir o caos — E diferente da ‘Snowbear’, esses são apenas amigos… São apenas pessoas com quem fiz trabalhos e conversava durante as aulas.
— Certo, certo — concordou Leon sem convicção, sua silhueta balançando na escuridão como se estivesse segurando uma risada — Como aquele cara, o… como era mesmo? Neko alguma coisa? Aposto que ele também é uma garota que por ‘coincidência absurda e completamente inverossímil’ vai aparecer na cidade qualquer dia desses.
— Neko Yasha. — corrigiu Quintus com a precisão de quem defende a honra de um parente distante — E ele é bem legal, ok? Um pouco intenso às vezes, especialmente quando começa a divagar sobre teorias médicas duvidosas. Outro dia ele soltou que ‘dar o bumbum demais causa Alzheimer’. Quase engasguei com o refrigerante.
— E nem vou perguntar como essa conversa começou. — riu Gustavo — Mas me lembro dele das aulas online. Não é aquele que vive em um triângulo amoroso com… ‘Rem’ e ‘XXX’, se não me engano?
— Exato! — confirmou o jovem Maximus — Embora eu nunca tenha entendido se é real ou algum tipo de fanfic que ele criou na cabeça. De qualquer forma, espero que ele esteja lá hoje.
— E aquele cara misterioso, dono da escola? — continuou Leon sem esperar resposta — O tal ASUS? Eu nunca vi o rosto dele também. Você que conversa tanto com ele, pode nos dizer se ele é real?
— Claro que não! — decretou Gustavo, com a confiança de quem já tinha razão antes mesmo da pergunta — Com certeza é um robô. Lembram como ele sempre respondia exatamente com as mesmas frases? ‘Obrigado pelo feedback, vamos considerar sua sugestão’, ‘Estamos cientes do problema e trabalhando para resolvê-lo’…
— Nada haver! ele só é muito tímido. — sugeriu Quintus defendendo o indefensável como sempre — Tipo o Blue, lembram dele? Tão tímido que ligava a câmera apenas para mostrar um desenho dele mesmo em vez do rosto real. Aquele desenho horrível de anime que parecia ter sido feito com a mão esquerda enquanto dirigia em uma estrada de terra.
— E o Nyck? — acrescentou Gustavo com um sorriso maligno — Aquele que vivia dizendo que tinha medo de ser ‘brutalmente molestado’ se aparecesse em público porque era ‘gostoso demais’? E quando finalmente pedimos uma foto dele, mandou aquela imagem claramente roubada de um modelo de cueca da Calvin Klein com a cabeça mal recortada no Photoshop?
Os três caíram na gargalhada, lembrando de todas as personalidades excêntricas que haviam conhecido durante o ano de aulas virtuais. Era como um zoológico humano digital, cheio de espécimes raros que só poderiam sobreviver atrás das telas de computador.
Era estranho pensar que, apesar de nunca terem encontrado essas pessoas cara a cara, conheciam tantos detalhes sobre suas vidas, personalidades e manias.
— Sabe o que é mais louco? — refletiu Quintus — Passei um ano inteiro interagindo com todas essas pessoas através de telas, e hoje vou poder finalmente conhecer algumas delas pessoalmente. É como se personagens de um livro de repente ganhassem vida.
— Ou como se avatares de videogame de repente se materializassem no mundo real. — complementou Leon.
— Ou como se você abrisse a porta da geladeira e encontrasse todos os seus emojis favoritos se materializando na manteiga. — acrescentou Gustavo, recebendo olhares confusos dos outros dois.
— Cara, às vezes eu realmente me preocupo com você. — disse Leon, a penumbra de seu rosto brevemente distorcida pelo movimento de desaprovação.
— O quê? É uma metáfora perfeitamente válida! — defendeu-se o futuro cunhado de Quintus.
— Só espero que ninguém seja muito diferente do que parece online. — voltou Gustavo ao assunto original — Seria decepcionante descobrir que o Neko Yasha, na verdade, é um senhorzinho de 70 anos que mal sabe ligar o computador.
— Regra 28 da internet, meu amigo. — lembrou Leon com um ar sombrio — Sempre questione o sexo de uma pessoa online, porque na internet todo mundo pode ser qualquer um.
— Então estamos assumindo que ‘Snowbear’ pode ser um cara de 120 quilos chamado Cleiton que trabalha numa loja de pneus? — perguntou, arqueando uma sobrancelha.
— Obrigado pelo lembrete animador. — resmungou, sentindo a ansiedade crescer novamente.
— Ei, pelo menos se o Neko Yasha for um velhinho de 70 anos, ele pode te dar balas de hortelã e contar histórias sobre como era a vida antes do Wi-Fi — brincou Gustavo. — Imagina ele falando: ‘Nos meus tempos, a gente só dava o bumbum ao vivo, não causava Alzheimer e a gente lembrava disso muito bem!’
A risada que se seguiu foi tão alta que Quintus teve que tirar os fones de ouvido.
— Você está com medo? — perguntou Leon, depois que as risadas finalmente cessaram.
O jovem Maximus hesitou. Poderia facilmente dar uma resposta engraçada ou sarcástica, como sempre fazia quando as coisas ficavam muito sérias ou pessoais.
Poderia dizer que estava mais preparado para uma batalha com o Thanos do que para descobrir que sua crush virtual era na verdade um cara chamado Cleiton cheirando a óleo de motor. Mas algo na forma como Leon perguntou, direto e sem rodeios, fez com que ele respondesse com a mesma honestidade.
— Estou apavorado! — admitiu — Tenho medo de que Snowbear não apareça. Tenho medo de que ela apareça e seja completamente diferente do que imaginei. Tenho medo de que seja exatamente como imaginei e não goste de mim. Tenho medo de tropeçar, gaguejar, derramar ponche no vestido de alguém, ou descobrir que tem alface nos meus dentes após três horas de conversa. Basicamente, estou com medo de ser eu mesmo, porque historicamente, isso não tem dado muito certo.
— Olha… — disse Gustavo, seu tom surpreendentemente gentil — Nós te conhecemos há anos. Você é estranho, desajeitado, e às vezes fala coisas tão aleatórias que nos perguntamos se existe um gerador de frases quebrado dentro da sua cabeça.
— Isso era para me fazer sentir melhor? — interrompeu Quintus.
— É para isso que servem os amigos. — respondeu Gustavo com um sorriso torto que claramente causou dor em seu rosto machucado — Para arruinar suas fantasias auto-depreciativas.
— E também para te impedir de usar aquela colônia que comprou no camelô. — acrescentou Leon — A que cheira como se um frasco de desinfetante tivesse um caso com uma árvore de Natal.
— ‘Avanço’ é um clássico atemporal! — protestou o jovem Maximus.
— Falando em fantasias… — interrompeu Leon — Você não deveria começar a se arrumar? Quanto tempo falta para essa sua amiga imaginária chegar? 2 horas?
— Uma hora e trinta e oito minutos e… dezessete segundos — respondeu Quintus, checando não apenas o relógio, mas também o cronômetro que havia iniciado no momento exato em que Snowbear confirmou o encontro.
— Olha, se você está ansioso assim, pode confessar que inventou essa garota. Não tem problema. É menos constrangedor do que ficar cronometrando a chegada de alguém que todos nós sabemos que não existe.
Leon e Gustavo concordaram, rindo como se aquilo fosse a piada do ano. As mãos de Quintus apertaram o celular com força.
— Só porque vocês nunca viram uma garota interessada em conversar com vocês, não significa que elas não existam. — rebateu o jovem Maximus, já arrependido de ter compartilhado a notícia — E como vocês parecem ser especialistas em tragédias sociais, imagino que já tenham arranjado companhia para a festa também, certo?
O silêncio retornou, agora carregado de um constrangimento tão denso que parecia ter textura, cheiro e CPF próprio.
— Nós… não vamos à festa. — disse Gustavo finalmente, sua voz baixando tanto que parecia um sussurro confessional.
Quintus quase caiu da cadeira, literalmente inclinando-se para trás com tanta força que teve que se agarrar à mesa para não ir ao chão.
— Como assim não vão? É praticamente o evento social do século! Todo mundo vai estar lá! — exclamou ele, o desespero evidente em cada sílaba — Vocês são meus melhores amigos! Se vocês não forem, com quem eu vou ficar quando, inevitavelmente, meu par da internet revelar ser um perfil falso ou simplesmente me abandonar ao perceber o desastre ambulante que eu sou?
A tela de Leon continuava escura, mas Quintus podia jurar que ouviu algo como um resmungo reprimido. Gustavo, por outro lado, agora parecia extremamente interessado em algo fora do enquadramento da câmera.
— Desembucha! O que aconteceu? — pressionou — Vocês dois estão agindo como se tivessem assaltado um banco e estivessem escondidos da polícia.
— ESTAMOS DE CASTIGO! — gritou o futuro cunhado de Quintus de repente, as palavras explodindo como se não conseguisse mais contê-las — Feliz agora?
Quintus piscou algumas vezes, processando a informação como um computador antigo abrindo um arquivo pesado.
— De castigo? Vocês têm 17 anos! Quem coloca adolescentes de 17 anos de castigo em pleno século XXI?
— Meus pais… — respondeu Gustavo ao mesmo tempo que a voz de Leon dizia ‘Minha avó’ da escuridão.
— Mas… por quê? — Quintus estava genuinamente confuso. Seus amigos não eram exatamente exemplos de comportamento, mas também não eram do tipo que causava problemas sérios o suficiente para punições desse nível.
Foi então que a tela escura finalmente se iluminou, revelando um rosto que fez o jovem Maximus soltar um grito abafado. Leon estava com o olho direito roxo, um curativo no nariz e o que parecia ser o início de um hematoma no queixo.
— PELO AMOR DE DEUS, O QUE ACONTECEU COM VOCÊ? — Quintus praticamente colou o rosto na tela do celular, como se pudesse atravessá-la para examinar melhor o amigo.
— Aconteceu que fomos enganados como dois idiotas. — respondeu Leon com uma voz que misturava raiva e vergonha em proporções iguais — E agora você vai mostrar a sua tela para o Gustavo, porque o idiota aqui também não quer mostrar o estrago.
Relutantemente, o futuro cunhado de Quintus virou o celular, revelando um olho roxo ainda mais impressionante que o de Leon, um lábio inchado e o que parecia ser um dente frontal ligeiramente lascado.
— Meu Deus, vocês foram atropelados por um ônibus? — Quintus estava genuinamente chocado.
— Pior! — respondeu Gustavo, voltando a mostrar seu rosto machucado — Descobrimos que a Regra 30 da internet é verdadeira: ‘Não existem mulheres na internet’… especialmente quando elas prometem suruba grátis!
— E também aprendemos a Lei do Golpe: toda oferta boa demais pra ser verdade vem com brinde, promessa absurda e prejuízo acima de 500 reais. No fim, além da dignidade, perdemos 2.500 cada um só pra evitar que a garota do job ferrasse nossa vida na delegacia. — disse Leon, ajeitando a bolsa de gelo.
— Como assim? — perguntou intrigado Quintus expressando confusão.
— Basta a palavra da mulher para um homem ir preso. — como quem escuta o próprio destino sendo anunciado pelo próprio Faustão: Errrouuu! — Resumindo… — explicou Gustavo, com um suspiro derrotado — Fomos enganados, humilhados e caluniados. Nossa ganância fez o nosso bom senso evaporar. Era como ganhar na loteria tendo apenas 24 horas para reivindicar o prêmio… sei lá, parecia fazer sentido…
— A parte boa? — disse, rindo para não chorar — Agora somos oficialmente o primeiro casal gay da Illusia. As fotos no motel viralizaram. Meu pai quase engasgou com o pastel, minha mãe passou a chamar minha irmã de ‘última esperança uterina’, e minha avó está fazendo lembrancinhas com nossos rostos.
— E vocês têm alguma ideia de quem armou isso tudo?
— Temos nossas suspeitas. — disse Leon finalmente, depois de dividir um olhar cúmplice com Gustavo — Lembra do Yeisu?
O nome caiu como uma bomba na consciência de Quintus. Claro! Yeisu, o nerd de biologia que se vestia de elfa no restaurante medieval. O mesmo que havia flertado com ele e que ele havia descoberto durante o banho revelador de hoje.
— Ele estava no motel também? — perguntou, já temendo a resposta.
Nesse momento, antes que a resposta viesse, a campainha da casa de Quintus começou a tocar incessantemente, interrompendo as conversas deles.
— Alguém está desesperado aí. — comentou Leon na videochamada.
E como se não bastasse o toque na campainha foi seguido de murros e chutes no portão de entrada. Alguém estava realmente enfurecido.
— Que porra é essa! Parece que o ‘Incrível Hulk’ está tendo um ataque de ciúmes com minha porta!
Antes que o jovem Maximus pudesse se dirigir ao local com o celular na mão para ver o que estava acontecendo, uma voz masculina furiosa se pronunciou:
— QUINTUS, EU VI AS MENSAGENS! SEU TALARICO! ACHOU QUE IA ME DEIXAR FORA DESSA?
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