Capítulo 52 - Asas de Gelo
THERMON AGOURO
Após vários dias de navegação, atracamos a oeste do continente Aurora. Claramente perdi as contas de quanto tempo estávamos no mar.
Era final de tarde e não havia nuvens no céu.
A paisagem era um misto de árvores baixas e pasto seco. O clima de cerrado era bem diferente do que estava habituado. O sol castigava, e a secura do ar lembrava o deserto.
— Aqui perto tem um local que eu usava para acampar entre missões, podemos levar o barco lá — meu pai, Regi, orientou.
— Que saudade de casa… Estou farta deste calor insuportável dos continentes! — Jouci havia peregrinado por metade do continente Sáfaro, na companhia de meu pai, tinha todos os motivos para estar cansada.
— Seria legal se tivéssemos um dispositivo para nos comunicarmos com pessoas a longas distâncias, assim não teríamos que atravessar o planeta para falar com alguém… Este planeta é muito grande! — Comentei.
Ao chegarmos na área indicada por Regi, vimos uma mata ciliar mais abundante, que protegia um pequeno córrego. Este corpo d’água se encontrava com o mar, o que era bem conveniente.
Usamos nossas habilidades para controlar água e forçamos a embarcação pelo filete d’água, que levava até o esconderijo de Regi.
Pouco tempo depois, encontramos o esconderijo.
O barco quase não coube na entrada da pequena gruta.O local era de difícil acesso, mesmo seguindo por entre o córrego, que subimos navegando contra a corrente. Seria improvável encontrarem nossa embarcação até voltarmos ali.
— Vamos descansar aqui. Amanhã partimos para o norte — Regi já não usava suas ataduras. Não havia motivo para se esconder.
— Obrigado por isso, sogro! — Jouci brincou.
Ela pegou sua mochila e a jogou em um canto da gruta. Usou a parte macia do objeto como um travesseiro e se deitou.
— Tem ideia de por onde devemos ir, pai?
Chamá-lo de “pai” era difícil. Ele não tinha memórias suficientes de mim para me ver como um filho, mas eu tinha muitas lembranças dele como meu pai. Mesmo assim a estranheza era palpável.
Regi forçou duas tosses, claramente incomodado com o modo como o chamei. Eu sabia que não era um incômodo de irritação. Estava mais para um incomodo como: “Eu queria reagir apropriadamente a isso, mas ainda não te vejo como um filho…”.
Eu não via problemas nisso. Ele foi, e sempre será, meu pai.
Ele respondeu:
— Sim. Devemos seguir em direção noroeste, até encontrar a primeira província humana. Não tem erro.
— Espero que não tentem nos matar assim que nos virem… — Jouci falou, ainda deitava em sua bagagem.
— Estamos aqui como diplomatas. Mais de uma vez, durante nossas viagens, vi que os humanos podem ser racionais e razoáveis. Até mesmo Alvo foi assim durante nosso combate. Espero encontrar humanos “não-bárbaros” no caminho.
Descansamos sem nos preocupar com possíveis perigos lá fora.
Mesmo com todo o calor e desconforto, dormir ao lado de meu pai e de Jouci trazia uma sensação estranha de “lar”. Me fazia bem essa sensação.
Após a noite de descanso, acordamos renovados para nossa peregrinação.
Jouci cortou o silêncio da manhã, enquanto organizávamos as bagagens:
— Lembro que a capital humana se chama Porto-Norte. Se é um porto, porque não fomos direto para lá?
— Nesta época do ano é impossível viajar na área central do mar Felpo, que banha Porto-Norte. Nestes meses o local se torna a rota de migração das Orcas-de-pedra, e nenhuma embarcação tem a coragem de passar por lá.
— Espera, elas não são uma calamidade, como as vespas-da-noite e o mímico? — Lembrei.
— Exato. O bando de Orcas-de-pedra é muito numeroso e destrutivo. Nada que se mexe perto delas costuma sobreviver muito tempo. São como piranhas no mar.. Por onde passam a fauna e flora são engolidas — com essa descrição, feita por Regi, fiquei contente em não ter que passar perto de tais bestas vorazes.
A viagem seguiu a pé. Sabíamos que demoraria, pelo menos, um mês para chegarmos aos domínios humanos, então precisávamos nos apressar.
Conseguimos avançar bastante em uma semana
Nosso ritmo estava muito bom.
Minhas companhias pareciam acostumadas com esse tipo de viagem, já eu estava muito cansado. Ficar preso e desnutrido por um mês não fez bem ao meu condicionamento físico.
Eventualmente víamos assentamentos ao longe. Poderiam ser de Elfos, anões ou humanos, mas não queríamos chegar tão perto para descobrir.
Na noite do oitavo dia no continente Aurora, encontramos um rio muito caudaloso. O fluxo de água era tão grande, que o barulho do líquido contra as margens iria atrapalhar nosso sono. Decidimos ficar longe dele por enquanto.
Assim que preparamos a fogueira para esquentarmos nosso jantar, Jouci me perguntou:
— Como abordaremos Alvo? Claro, assumindo que ele não nos mate assim que nos encontrar…
— “Olá, regicida. Há quanto tempo… Lembra de quando falou para eu não aparecer mais na sua frente? Então, aconteceram algumas coisas desde então, e gostaria que arriscasse sua vida para enfrentar um inimigo dos deuses! Pode vir conosco?”. Acha que assim está bom?
A situação não era boa, e as perspectivas não eram as melhores, mas consegui que meus companheiros rissem um pouco.
Jouci gargalhou, limpou o lacrimejar dos cantos dos olhos, e disse:
— Se fosse tão fácil assim, apenas um pombo correio resolveria…
— Voar resolveria, mas nossas caronas aladas seguiram com os rapazes no outro continente — Regi se referia a An’u, Elear e Maso, que se arriscavam sozinhos, se infiltrando novamente na Rosa-dos-ventos.
— Estou com saudades de Krane. Ela nos ajudou tanto… — Jouci observava o céu noturno, como se procurasse o Empatucano.
— Sabe, estamos enfrentando um oponente perigoso, a mando de deuses, mas ainda acho estranho essa ajuda que Krane nos deu. Foi conveniente, claro, mas ela disse para Maso que estava seguindo ordens… Quem poderia comandar um ser como aquele? — Eu trouxe o assunto à tona.
Jouci se mexeu ao meu lado, sentada em um toco de madeira, e disse:
— Acho que os deuses estão olhando por nós a mais tempo do que imaginamos.
— Seja como for, foi um grande auxílio — meu pai comentou.
— Thermon, você consegue fazer tanta coisa com suas habilidades. Não consegue fazer um bloco de gelo levitar nós três? Assim poderíamos voar… — Jouci perguntou, em tom de brincadeira.
— Já tentei fazer algo parecido, mas é como tentar se equilibrar em uma tora de madeira em cima da água. Não importa se estou completamente equilibrado, do nada, o equilíbrio é quebrado e sou jogado contra o chão.
— E se usar dois blocos, um contra-equilibrando o outro? — Ela deu esta ideia, sem pensar muito.
Eu congelei no lugar.
Era óbvio, se um apoio não funcionava, era só usar dois ou mais…
— Não pode ser tão fácil… Não acredito nisso.
Levantei e me afastei da fogueira. Jouci e Regi me olhavam com atenção.
Comandei algumas poucas centenas de litros de água do rio para perto de mim, e criei um bloco retangular de gelo, um pouco maior do que eu. Este era o tipo de “prancha”, que sempre usei para testar o voo com minhas habilidade, mas nunca dava certo.
Usando a ideia da minha companheira, criei um segundo bloco. Em tese, se eu controlasse eles juntos, o resultado seria o mesmo que minhas tentativas falhas do passado, mas e seu eu controlasse cada um de forma independente, um balanceando o outro?
Manipulei os blocos e os apoiei um no outro. O encontro dos dois blocos formou um “V”, com ângulo bem aberto.
Deixei o gelo no chão e subi na estrutura.
— Tenha cuidado, Thermon. Não temos curandeiros no nosso grupo — Jouci brincou.
— Terei isso em mente.
Ordenei o gelo subir um metro acima do chão e quase caí para trás, mas entendi onde estava o desequilíbrio, e ajustei antes de cair de costas.
Jouci e Regi seguraram o riso, pois a cena era patética.
Estranhamente estava mais fácil controlar meu “voo” com a ideia de Jouci, então fiquei confiante, e subi dez metros mais alto.
Jouci suspirou de susto quando subi esta altura.
Tentei avançar e me surpreendi com a velocidade. Quando olhei para trás, meu grupo estava a centenas de metros de distância.
Voltei onde meu grupo estava, com a mesma velocidade e gritei do alto:
— PESSOAL, PARECE QUE NOSSA VIAGEM VAI SER MAIS CURTA DO QUE ESTÁVAMOS IMAGINANDO.
Me aproximei mais deles e desci do gelo com um salto.
— Viu o que acontece quando me ouve? — Jouci cruzou os braços. O gesto me lembrou de Talamaris, que fazia muito isso. — Ah, e só para não perder o costume: “Devolva meus dias de caminhada!” — Ela se aproximou e puxou minha orelha direita.
— Ei… Pare com isso!
Regi e Jouci gargalharam.
Eu estava eufórico. Teríamos como nos locomover com agilidade, o que nos ajudaria a encontrar aliados.
Ao pensar no tempo de viagem, subiu um frio na espinha, pois lembrei que tínhamos um prazo a cumprir. Ainda não havia passado nem um dos dezoito meses, definidos pelo deus Verde, mas, lembrar que nosso tempo era finito, não trouxe uma boa sensação.
— Acha que consegue levar todos nós nesses blocos de gelo? — meu pai perguntou.
— Querem testar?
Já era madrugada quando paramos de voar.
Primeiro eu nos carregava em duplas, por segurança. Depois de um tempo consegui levar nós três.
Sentia um frio na barriga toda vez que descia muito rápido. De certa forma foi bem divertido.
Percebi que conseguia chegar a velocidades extremas, mas o vento era quase cortante, então eu teria que ser mais cauteloso quanto a isso.
Assim que terminamos o último voo teste, Jouci falou, bastante animada:
— Vamos dormir. Amanhã teremos um dia cheio!
— Estou tão animado, que não sei se consigo dormir. Até mesmo viajar entre continentes parece algo simples agora!
— Essa animação toda me deixou bastante cansado. Vou dormir no meu iglu. Se cuidem, vocês dois — Regi foi em direção ao seu pequeno abrigo feito de gelo.
Jouci e eu estávamos sozinhos pela primeira vez em dias.
— Fiquei mais animada com a viagem. Não só por agora conseguimos nos locomover mais rápido, é que eu estava começando a me desesperar… Um ano e meio pode ser bastante tempo, mas não parecia o suficiente.
— Agradeça as minhas habilidades super maneiras de Escolhido!
— Para de ser idiota, to falando sério!
— Eu sei. É que estou muito feliz. Muito mesmo.
Ela se rendeu a minha alegria contagiante. Deu um sorriso sem graça, e relaxou os ombros. Foi quase como ver ela tirar um iceberg das costas.
— É, realmente… Com suas habilidades tudo será mais fácil. Feliz por ter você ao meu lado.
Depois dessa frase, ela se aproximou e me deu um longo e apaixonado beijo.
Após ela se afastar, enrubesci.
Eu e Jouci estávamos cada vez mais próximos. Sempre que podíamos estávamos perto um do outro, o que é bem fácil, quando se viaja junto.
— Estou com saudades de casa, sabe… — Ela puxou assunto.
— Seria mentira se eu disse que também não sinto falta daquele mar de gelo sem fim. As paisagens dos continentes são muito escuras para meus olhos. Falta claridade.
— Verdade, você tem olhos de velho, quase tão escuros quanto a noite… Você é um velhote!
Olhei ela com uma expressão irritada, e falei:
— O tapa que me deu em Lires, o puxão de orelha de uns instantes atrás, e agora um xingamento… Esse é o tipo de coisa que mereço por ficar ao seu lado? — Tentei empregar o máximo de drama na voz.
— Deveria me agradecer. Já está velho e caquético. Ninguém além de mim iria querer nada com você — ela não acreditava nisso, mas, mesmo assim, senti uma pontada agonia.
— Ai, essa doeu no fundo do peito… Vou ali no canto, chorar por ser velho.
Quando fingi que iria me distanciar, ela me puxou para mais um beijo apaixonado.
Nos afastamos do abrigo de gelo de Regi, para termos um pouco mais de privacidade. Fizemos um segundo iglu só para nós dois.
Quase não dormimos aquela noite.
No dia seguinte, preparamos toda a bagagem e desfizemos nosso acampamento.
Criei as bases do aparato que usaríamos para viajar. Dessa vez dobrei o quantidade de gelo, assim teríamos espaço o suficiente para todos nós, sem nos espremermos.
Usei três tocos de madeira para criar assentos no centro da estrutura, assim não precisaríamos ficar em pé, nos equilibrando.
— Deveríamos dar um nome para essa geringonça que inventamos. Ficar chamando de “blocos de gelo voadores” não é prático — comentei.
— Eu dei a ideia e Thermon a executou. Que tal meu querido sogrinho criar um nome para isso? — Jouci falou entre risadinhas.
— Não sei não… Não sou bom com nomes.
— Ah, gostei da ideia de Jouci, pai. Pelo menos tenta!
— Ta… Deixem-me pensar… O que também voa?
— Aves, folhas, morcegos, insetos… — Listei o que me veio à mente.
— Não esqueça de Primeiro, o arauto de Vanir. Ele também voa — Jouci falou, em tom zombeteiro. Eu e Regi olhamos para ela, com expressões irritadas. — Tabom, tabom. Me desculpem — Ela ergueu as mãos, em rendição.
— Continuando… O que esses animais têm em comum são as asas… E o formato, quase em “V”, até me lembra asas… Que tal algo mais literal, como “Asas de Gelo”? Assim poderíamos nos referir ao aparato como “Asas” sempre que necessário.
— É perfeito! — Concluí.
— O que estamos esperando. Vamos subir logo nas Asas de Thermon! — Jouci usou um tom meio brincalhão, então eu não entendi muito bem o que ela queria dizer… Decidi ignorar.
— Todos a bordo! — Fui o primeiro a subir nas Asas de Gelo.
“…”
Mímico, vulgo “Mizinho” — Calamidade da floresta
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