Índice de Capítulo

    A perseguição saiu do quintal do Sr. Armando para a rua, onde Quintus agora ziguezagueava entre pedestres horrorizados na pequena bicicleta rosa, enquanto Nyck o perseguia com a determinação de um boleto no fim de mês, ignorando obstáculos, leis da física e qualquer noção de cansaço.

    — PARA DE CORRER, SEU COVARDE! — berrava o xereta ciumento, que aparentemente não precisava de oxigênio para funcionar.

    O jovem Maximus olhou para trás, vendo o rosto enfurecido de seu perseguidor cada vez mais próximo, e sentiu uma urgência súbita de fazer as pazes com todos os deuses em que nunca acreditou.

    A perseguição continuou por mais três quarteirões, com Quintus pedalando feito um daqueles ratos chiques para estimação em uma roda girando a mil por hora, e Nyck mantendo o ritmo alucinante com a determinação de um robô assassino programado para uma única missão.

    — VOCÊ ESTÁ OLHANDO PARA ELA AGORA, NÃO ESTÁ? — gritou Nyck, apontando para a própria camiseta enquanto corria — EU VI VOCÊ OLHANDO PARA O ROSTO DELA ESTAMPADO NA MINHA CAMISA! PENSA QUE NÃO VI SEU DESEJO? VOCÊ OLHOU PARA ELA COMO SE… COMO SE FOSSE… SEI LÁ, UM… PRATO DE COMIDA!

    Quintus nem sequer tinha notado a estampa na camiseta, ocupado demais tentando não morrer ou transformar seus testículos em panquecas no processo de fuga. Mas a acusação era tão absurda que ele não conseguiu se conter:

    — EU NEM ESTOU OLHANDO PRA VOCÊ, CARALHO! ESTOU TENTANDO NÃO MORRER NESSA BICICLETA DE BARBIE!

    Foi então que avistou sua salvação: uma descida íngreme logo à frente. Com uma última explosão de energia, ele pedalou ainda mais rápido, ganhando velocidade suficiente para disparar colina abaixo tal qual um míssil rosa de péssimo design aerodinâmico.

    A pequena bicicleta ganhou velocidade alarmante, a cestinha começou a vibrar da mesma forma que se estivesse prestes a decolar, e as fitas coloridas penduradas no guidão chicoteavam o ar. Por um breve momento, Quintus se sentiu o próprio Ayrton Senna, caso os pilotos de Fórmula 1 corressem em veículos ridiculamente pequenos e cor-de-rosa.

    Olhando para trás, ele viu Nyck parar no topo da descida, finalmente atingindo os limites de sua resistência sobre-humana. 

    O ciumento inseguro dobrou-se para frente, apoiando as mãos nos joelhos, ofegando como quem foi trocentas vezes à Receita Federal, enfrentou fila, protocolo, senha e vigilância armada só para tentar justificar uma nota de R$ 8,50 de algodão comprado na farmácia, sem sucesso, e ainda saiu sob suspeita de evasão fiscal.

    — VOCÊ… NÃO… VAI… ESCAPAR… PARA SEMPRE! — gritou entre respirações laboriosas, a voz agora distante.

    E então, à maneira de quem tivesse sido atingido por um raio de clareza, Nyck caiu de joelhos. Seu rosto transformou-se em uma máscara de êxtase.

    — Espera… espera um segundo… — murmurou, olhos arregalados fixos em um ponto invisível no horizonte — AGORA ENTENDO TUDO!

    Quintus, ainda pedalando mas diminuindo o ritmo para tentar entender o que estava acontecendo, viu Nyck levantar os braços para o céu feito um profeta tendo uma visão divina.

    — ELA ESTÁ QUERENDO SUBIR O NÍVEL! — gritou o invasor de privacidade, agora com lágrimas escorrendo pelo rosto — SÓ PODE SER ISSO! EU JÁ PASSEI PELO ESTÁGIO DE DOR EXTERNA, DOR INTERNA… AGORA SÃO AS DORES NA MINHA MASCULINIDADE!

    Intrigado e perturbado em partes iguais, o jovem Maximus diminuiu ainda mais a velocidade, mantendo uma distância segura, mas perto o suficiente para ouvir a aparente crise de identidade de seu perseguidor.

    — VOCÊ É NOSSO BOTE SALVA-VIDAS! — proclamou pegajoso ciumento, apontando para Quintus com uma expressão de quem acabou de descobrir o significado da vida — ISSO VAI SER PRAZEROSO… VER VOCÊ AÇOITANDO MEU MEDO DE PERDÊ-LA, MEU EGOÍSMO DE QUERER ELA SÓ PARA MIM, MINHA ARROGÂNCIA EM PERDER PARA UM MERDA COMO VOCÊ!

    Para o seu absoluto horror, Nyck passou a língua pelo próprio rosto com um deleite tão distorcido que beirava o obsceno.

    — AGORA EU ENTENDO! E TAMBÉM TE QUERO! JUNTOS VAMOS NOS DIVERTIR BASTANTE!

    Quintus sentiu uma onda fria descer pela espinha tal qual se o universo tivesse acabado de sussurrar um ‘boa sorte’ bem irônico no seu ouvido. Aquilo era muito pior do que ser espancado. Muito, muito pior.

    — NEM FERRANDO! — gritou, voltando a pedalar com a energia renovada do puro terror, decidido a colocar a maior distância possível entre ele e aquela epifania perturbadora.

    Só quando o fôlego começou a faltar e o coração desacelerou o suficiente para ouvir seus próprios pensamentos, o jovem Maximus permitiu-se um sorriso de vitória enquanto a bicicleta ganhava ainda mais velocidade descida abaixo, o vento batendo em seu rosto igual o doce aroma da liberdade. Ele tinha conseguido! Tinha sobrevivido! Tinha…

    Esquecido completamente que no final daquela descida havia uma lombada.

    O impacto foi algo digno de um estudo científico sobre trajetórias balísticas. A minúscula bicicleta atingiu a lombada a uma velocidade que seus fabricantes jamais tinham previsto, lançando Quintus pelos ares à semelhança de um astronauta improvisado sendo ejetado de sua nave.

    Por um glorioso segundo, ele voou. O mundo pareceu desacelerar enquanto ele pairava no ar, contemplando as escolhas de vida que o tinham levado àquele momento específico. E então, a gravidade, essa velha amiga implacável, reassumiu o controle.

    Felizmente, sua queda foi amortecida por um arbusto particularmente denso e, felizmente, não espinhoso. Enfiado até a cintura no arbusto, pernas para cima, Quintus permitiu-se um momento de reflexão existencial.

    “Recobrei a consciência para isso? Para fugir de um maníaco ciumento em uma bicicleta infantil e terminar enfiado em um arbusto com o cu dolorido e a dignidade completamente destroçada?”

    Depois de alguns minutos recuperando o fôlego e garantindo que todos os seus membros ainda estavam funcionando, Quintus conseguiu se desenterrar do arbusto. A bicicleta rosa tinha sobrevivido surpreendentemente bem ao acidente, embora o guidão estivesse agora ligeiramente torto.

    — Desculpa, pequena guerreira. — murmurou para a bicicleta, endireitando o guidão o melhor que pôde — Você foi uma campeã hoje.

    Com cuidado, ele começou a empurrar a bicicleta de volta para onde tinha vindo, planejando devolvê-la ao quintal do Sr. Armando e depois voltar para casa por um caminho alternativo que garantisse que Nyck não o encontraria novamente.

    Enquanto caminhava, Quintus refletia profundamente sobre a natureza do ciúme, ou pelo menos tão profundamente quanto alguém que acabou de voar de uma bicicleta rosa e aterrissar de cabeça num arbusto poderia refletir. 

    Para ele, que tinha a experiência romântica de uma ameba e a virgindade mais preservada que relíquia em museu, o ciúme era feito um controle remoto universal: todo mundo acha que consegue fazer funcionar, mas no final só quebra a TV e deixa todo mundo irritado. Nyck parecia ser daqueles caras que instalariam câmeras de segurança até no vaso sanitário para ter certeza que ninguém estava flertando com a privada dele.

    Quando finalmente chegou de volta à casa do Sr. Armando, o jovem Maximus devolveu a bicicleta rosa ao seu lugar original, acrescentando mentalmente ‘roubo temporário de propriedade infantil’ à lista cada vez maior de pequenos crimes acidentais que havia cometido em sua curta vida.

    Olhando em todas as direções para garantir que o caminho estava livre de ciumentos psicóticos, Quintus seguiu para casa por uma rota alternativa, praticamente se arrastando pelos cantos.

    Quando finalmente chegou em casa, exausto, suado e com partes do corpo doloridas que nem sabia que existiam, a primeira coisa que notou foi o silêncio. Aquele tipo de silêncio pesado que normalmente precede uma explosão catastrófica.

    — Finalmente você apareceu! — a voz de sua mãe o fez congelar na entrada da sala. 

    Glorizelda Menezes estava sentada no sofá, com aquela expressão que só ela conseguia fazer: uma mistura perfeita de decepção, irritação e uma pitada sutil de vontade de cometer um infanticídio tardio.

    — Mãe! Eu… eu posso explicar! — começou, mesmo sem ter a menor ideia de por onde começar sua explicação.

    — Explicar o quê? — Glorizelda ergueu uma sobrancelha — Que você deixou uma jovem e sua família esperando por meia hora na nossa porta, sem nem ao menos ter a decência de atender o telefone?

    Foi então que a realidade atingiu Quintus tal qual um tijolo na cara. O celular! Ele tinha deixado o maldito celular em cima da mesa quando fugiu pela janela! E Snowbear… Oh, não! Snowbear tinha vindo, como combinado, e ele não estava em casa para recebê-la!

    — Snowbear esteve aqui? — perguntou, sentindo o desespero crescer em seu peito à semelhança de um tumor maligno.

    — Não só esteve aqui, como trouxe os pais juntos! — respondeu Glorizelda, cada palavra mais afiada que a anterior — Uma família adorável, devo dizer. Esperaram pacientemente por trinta minutos, enquanto eu tentava ligar para você sem sucesso. Acabaram indo embora, extremamente desapontados, devo acrescentar.

    Quintus sentiu seu estômago despencar até o subsolo. A única coisa boa que tinha acontecido em sua vida, a única garota que tinha aceitado ir com ele à festa da Illusia, e ele tinha estragado tudo por causa de uma perseguição ridícula com um maníaco ciumento.

    — Eu… eu posso ligar para ela, explicar o que aconteceu…

    — Explicar o quê exatamente? — Glorizelda cruzou os braços — Que você preferiu sair para dar um passeio em vez de recebê-la? Que você é incapaz de cumprir um compromisso simples? Que você…

    — Como ela é? — interrompeu, desesperado por qualquer informação sobre a garota misteriosa.

    Glorizelda estreitou os olhos, como se tentasse decidir se o filho merecia mesmo essa informação.

    — Para que você quer saber? Se quisesse, tinha vindo recebê-la. — Ela se levantou do sofá com a graça de uma rainha indignada — Reflita sobre suas prioridades, Quintus Maximus. E da próxima vez que marcar um compromisso, tenha a decência de honrá-lo.

    Com essas palavras, ela saiu da sala, deixando o jovem Maximus sozinho com seu desespero. Ele se jogou no sofá, enterrando o rosto entre as mãos, pensando: 

    “Como tinha conseguido estragar tudo de forma tão espetacular?”

    Seu celular, recuperado da mesa onde o tinha deixado, mostrava dezenas de notificações. Mensagens de Gustavo e Leon querendo saber se ele ainda estava vivo. E, mais importante, três mensagens de um número desconhecido.

    “Olá, Quintus! Sou eu, Snowbear. Estou a caminho da sua casa com meus pais!”

    “Estamos na frente da sua casa. Sua mãe é muito simpática!”

    “Acho que você deve estar ocupado. Não se preocupe, entendo. Talvez possamos nos encontrar diretamente na festa? Ou deixa para outra ocasião.”

    A última mensagem tinha sido enviada vinte minutos atrás. Quintus sentiu um pouco de esperança:

    “Talvez ainda desse tempo de encontrá-la na festa? Mas e se ela tivesse desistido completamente?”

    Foi então que seus olhos pousaram no enorme urso de pelúcia no canto da sala. Uma ideia absurda começou a retornar a sua mente. Uma ideia tão ridícula, tão potencialmente humilhante, que só poderia ter surgido no cérebro de alguém que já tinha esgotado todas as opções racionais.

    — Bem, já perdi minha dignidade hoje mesmo… — murmurou para si mesmo, enquanto se levantava e caminhava em direção ao urso gigante — Talvez seja hora de abraçar o caos completamente.

    Com uma determinação nascida do puro desespero, Quintus agarrou o urso gigante pelo braço felpudo.

    — Vamos lá, grandão. Você acaba de se tornar meu acompanhante para a festa da Illusia.

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