Índice de Capítulo

    O Bastardo mantinha-se na proa de seu navio, as vestes negras ondulando ao vento salgado, o rosto exposto como se desafiasse os céus a lhe derrubarem primeiro. Atrás dele, sua frota inteira se alinhava como uma muralha viva, com velas desfraldadas e canhões prontos. Os homens olhavam para o horizonte com nervos em chamas, alguns apontando, outros recuando um passo, o que viam era impossível de ignorar.

    Uma muralha de água. O próprio mar que usaram como arma agora se voltava contra eles.

    — Aí está — murmurou ele, o olhar firme, fixo na parede azulada que ganhava corpo e altura, como um monstro marinho sendo invocado da fúria dos injustiçados.

    Do seu lado, Harun rangeu os dentes.

    — Eles devolveram tudo. Usaram a própria força contra nós. Malditos…

    — Não. — O Bastardo ergueu a mão, interrompendo-o. — Eles apenas fizeram o que fariam. Gladius é previsível. Corajoso, fiel, tolo… mas previsível.

    O tsunami crescia mais rápido agora, ganhando corpo e velocidade. Navios menores já balançavam, o mar alterando suas rotas à força. O céu, antes claro, parecia ter sido engolido por nuvens encharcadas da própria revolta. Uma tempestade que não caía de cima — mas que brotava debaixo.

    — Senhor, se essa coisa nos atingir… — alertou um dos comandantes de bordo, apavorado.

    O Bastardo virou o rosto devagar, seu semblante carregado de tédio. — Se essa coisa nos atingir, significa que vocês confiaram demais na força bruta.

    Ele então caminhou até o mastro central, estalando os dedos com firmeza. Ao seu comando, quatro figuras emergiram das sombras da embarcação. Não eram soldados comuns. Suas capas ondulavam como fumaça presa ao mundo físico, e seus olhos não refletiam medo, apenas… obediência.

    — Chegou a hora de usarmos aquilo que a prisão de Onkotho esqueceu que o mundo aprendeu. — O Bastardo ergueu o braço e apontou para frente. — Contenham. Usem o ‘Desvio Dourado’.

    As figuras saltaram da embarcação com uma sincronia perfeita. Nem pareciam tocar o mar — surfavam sobre ele, correndo como se o oceano fosse pedra sólida.

    O Bastardo observava.

    A muralha de água rugia, quebrando o ar com sua força crua. Mas ele não piscou. Estava ali, imóvel, a poucos segundos de ser engolido — e ainda assim, o sorriso surgiu. Pequeno, torto, quase imperceptível.

    — A diferença entre Gladius e eu — sussurrou, para si mesmo — é que ele luta pelo que deve ser protegido… enquanto eu já aceitei que tudo precisa ser destruído antes de haver algo novo.

    A onda estava a segundos de colidir. As figuras diante da frota ergueram os braços em uníssono, desenhando símbolos no ar, traçando linhas que se tornaram douradas, vibrantes, cravadas de energia viva.

    O mar gritou. E então… rachou.

    A muralha dividiu-se em duas, cada metade desviada para as laterais. A água explodiu para os flancos, tão perto dos navios que salpicou seus conveses, mas não os tocou com força. Um caminho se abriu no meio do tsunami — direto até a prisão.

    O Bastardo firmou os pés na madeira, os olhos agora completamente acesos.

    — Então vamos, Gladius. Que comece seu fim. – Ele nem precisou gritar, seus homens fizeram por ele.

    O som invadindo o espaço tomado pela água e pelo vento, mesmo que fortificado pela natureza dos homens do outro lado. Não havia nada que aquela prisão pudesse fazer para parar seu ataque. Era inevitável, como o próprio tempo passando sobre eles.

    Era sempre assim, Bastardo sentia.

    Nada poderia impedir o tempo.

    — Explodam as torres – sua ordem foi direta. – E quero as paredes deles destruída antes mesmo de eu tocar meus pés naquele chiqueiro que eles chamam de prisão. Cloud, se navios aparecerem, mande o Glossário tomar conta dele.

    Seu braço direito, Cloud, concordou, um pouco resoluto.

    — Ele disse que queria estar presente com o senhor.

    — Quando eu mandar, ele vai estar. – Bastardo já estava esperando as Pedras Lunares na sua frente. – Até lá, ele vai ficar no mar.

    O mar ainda recuava, forçado pela técnica dos quatro conjuradores do Bastardo. O caminho entre a frota e a prisão fora aberto como uma ferida viva no oceano, um canal estreito onde a batalha parecia fadada a explodir a qualquer segundo.

    Mas Gladius também já esperava por isso. Como sempre, precisava estar um passo a frente dos dois passos de seu inimigo.

    As torres da prisão de Onkotho estremeceram.

    Elas tinham sido erguidas como sentinelas ancestrais, feitas de pedra escurecida, cobertas por musgo congelado, com runas apagadas que agora voltavam a brilhar num azul incandescente. Eram a primeira barricada para aqueles que queriam uma derrota amarga.

    A primeira luz acendeu-se no topo da torre leste. Um som grave, quase um uivo, atravessou o ar — e então, como se fossem bocas vivas, os canhões giratórios nas laterais da estrutura se abriram.

    Uma rajada de água. Gladius riu. Mas não qualquer água.

    Ela vinha densa, fervente, como se tivesse atravessado o núcleo da própria terra. A pressão era tanta que o disparo deixava uma trilha de vapor no ar. E quando acertou o primeiro navio da fileira lateral esquerda da frota do Bastardo, o som que se ouviu não foi o de estilhaços, mas de madeira derretendo.

    — O quê…? — murmurou Harun, na embarcação do Bastardo, vendo o vapor subir como um clarão de inferno.

    Outros três disparos seguiram, vindo da torre norte e da torre oeste. Um após o outro, martelando os flancos da frota como punhos de um titã oceânico. Os navios colidiam entre si, as cordas se desfaziam, os gritos dos marinheiros tentando se salvar competiam com o rugido dos disparos.

    Mas o que aconteceu depois silenciou até o caos.

    No mar aberto à frente da frota, a água começou a brilhar.

    Era uma luz pálida no início. Algo que poderia ser confundido com o reflexo do sol. Mas então ela se intensificou, concentrando-se num único ponto, bem no centro do canal criado pelas técnicas dos conjuradores.

    Os ventos, até então agitados, cessaram abruptamente. As velas das embarcações esvaziaram como pulmões mortos. O mar parou de se mover — não por calmaria, mas por reverência.

    Como se algo estivesse se erguendo ali.

    — Senhor… — sussurrou um dos soldados do Bastardo, segurando-se nas cordas da embarcação. — O vento… ele sumiu.

    O Bastardo não respondeu de imediato. Seus olhos estavam fixos no ponto de luz que brotava das profundezas do oceano, pulsando como uma estrela afogada. Não era um farol. Não era um reflexo. Aquilo era antigo… e vivo.

    Ele cerrou os dentes, contendo uma risada que quase escapava.

    — De todas as merdas que o Bulianto coletou… ele deixou o Aparador de Ar aqui. — O tom era ácido, mas não havia surpresa — apenas a confirmação de algo que ele já desconfiava. — Então é assim que ele quer jogar? Ótimo. Já estava começando a achar que seria fácil demais.

    Sem tirar os olhos do brilho crescente, ergueu-se sobre o convés de seu navio e berrou, a voz atravessando os ventos parados:

    — Usem a Tecnologia!

    O comando reverberou como trovão. De navio em navio, os capitães repetiram a ordem, vociferando para suas tripulações, seus gritos se espalhando em perfeita sincronia, como o disparo de uma única arma com dezenas de bocas.

    E então, todos os navios começaram a se alinhar.

    As fileiras formavam um semicírculo, dando espaço à criatura no mar, mas preparando uma recepção à altura. O Bastardo ergueu uma das mãos com teatralidade, como se controlasse cada navio com fios invisíveis.

    — Os Divinos nos deram essa belezinha de tecnologia sem nem saber o que faziam — disse, agora com um sorriso torto nos lábios. — E nós vamos usá-la da maneira certa. Me diz uma coisa, Gladius… — ele olhou para o brilho no horizonte, como se o próprio inimigo estivesse ali, observando — …gosta da modernidade?

    Do centro da frota, o convés de um dos maiores navios se abriu, e uma estrutura começou a emergir com estalos metálicos. Era alta, robusta, como o esqueleto de uma arma esquecida nos desertos do tempo. Suas pontas eram arredondadas, cobertas de anéis concêntricos que giravam em sentidos opostos. A parte traseira exibia uma fileira única de projéteis colossais, encaixados em um pente contínuo, como dentes de um predador adormecido.

    Cada bala tinha dois pistões em sua base, ambos conectados a botões iluminados que começavam a piscar em vermelho.

    O Bastardo apontou para frente com o queixo erguido, orgulhoso como um rei diante de seu trono bélico.

    — Contemple o poder dos antigos Reis. — E então, sua voz desceu como uma sentença. — E sofra como eles sofreram.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota